Salma Jô, vocalista da banda Carne Doce, decidiu interromper uma gravidez em 2012. Hoje, ela transformou a experiência em uma das principais canções de seu novo álbum
Após varrer milhares de sites, ler centenas de alternativas e ser inundada por dúvidas que até hoje não cessaram, a vocalista Salma Jô, da banda Carne Doce, optou em fazer um aborto.
Era final de 2012. Ela, hoje com 29 anos, o marido e guitarrista Macloys e os três colegas de banda estavam prestes a lançar o primeiro EP do grupo recém-formado em Goiás. “Eu iria tentar, pela primeira vez, ter algo que podia chamar de meu e que realmente acreditava”, explica a cantora. “E pensava na mesquinhez que era concorrer um filho com um plano amador de carreira artística”.
Quase quatro anos depois, a compositora acostumada a cantar sobre racismo e sexualidade, transformou a experiência do aborto na música Artemísia, single do novo álbum Princesa, lançado no dia 24 de agosto.
A letra diz: “não vai nascer / porque eu não quero / porque eu não quero e basta eu não querer”. Apesar da densidade dos versos, a composição saiu com tranquilidade do papel, até. “Brinquei que tive o overview do ‘meu corpo, minhas regras’”, explica. “Um sentimento completamente egoísta que achei interessante explorar artisticamente.”
Como foi descobrir que você estava grávida? Fiquei grávida no final de 2012. O [meu marido] Mac deu sinal de que me apoiaria na decisão que eu tomasse, mas, assim como ele, eu também não queria o filho. Nós estávamos prestes a lançar o nosso primeiro EP, a começar a divulgar a banda e a assumir esse projeto publicamente. Era algo que tínhamos criado um monte de expectativas e planos. Eu estava ansiosa para, pela primeira vez, tentar algo que poderia chamar de meu, em que realmente acreditava. Durante uns três dias fiquei em dúvida. Pensava em Deus nas suas variadas formas (e não sou uma pessoa religiosa), pensava no quão mesquinho era disputar um filho com um plano amador de carreira artística. Ao mesmo tempo, varei sites atrás de todo tipo de informação e debate, inclusive os mais horríveis e menos recomendáveis. Encontrei o WomanOnWeb, que possui informações validadas por um médico e foi um super alívio. Não queria contar a ninguém, tinha vergonha e medo. Me isolei.
“Me parece que decidir pela maternidade, na melhor das hipóteses, mesmo com o apoio de uma família, é uma escolha que se faz de forma egoísta”
Salma Jô
E como foi decidir que queria fazer um aborto? Chegou um momento em que as dúvidas entre ter ou não ter filho continuaram (algumas ainda continuam). Já não me concentrava em outra coisa até que, uma hora, firmamos a decisão pelo aborto. Tomei todo tipo de chás e testei coisas que li por aí. Diminuí minha auto-proteção. Por fim, escolhemos um contato de e-mail na internet e compramos o remédio. Foi rápido e sem complicações, tranquilo até. Deu raiva por ser tão simples, mas tão custoso para ser feito. Comentei com poucas pessoas que essa experiência me fez lembrar um documentário sobre o efeito overview de astronautas que, ao verem a Terra do espaço, supostamente conseguem vê-la e conhecê-la realmente como um planeta - diferente de nós, que só podemos imaginá-la assim. Isso os transformava. Dentro do meu corpo havia uma gestação acontecendo, mas ao mesmo tempo vários outros órgãos, inclusive o meu cérebro, que rejeitavam e bolavam maneiras de interromper esse processo. Brinquei que tive o overview do "meu corpo, minhas regras". E foi esse sentimento que me levou a escrever a letra de Artemísia com tranquilidade. Um sentimento completamente egoísta que achei interessante explorar artisticamente.
Por que foi um sentimento egoísta? Por ser algo completamente individual. Pode ter uma cota de responsabilidade social, mas assumir a responsabilidade de ser mãe é individual. Cada mulher decide por si, de acordo com suas regras. Ela não pode deixar de ser egoísta se a missão à frente é a de ser mãe. Me parece que decidir pela maternidade, na melhor das hipóteses, mesmo com o apoio de uma família, é uma escolha que se faz de forma egoísta e solitária. Optar por não ser mãe também é.
Mas você ainda pensa em se tornar mãe? Às vezes sim, mas cada vez menos. Às vezes me apavora a ideia de que terei pouco tempo para tomar essa decisão. Eu tenho 29 anos. Eu gostaria de me tornar uma adulta responsável e decente antes desse prazo se esgotar, mas acho que isso não vai acontecer. Não estou com vontade nenhuma de ser mãe agora. Mas quando penso no futuro ainda parece estranho me tornar uma senhora sem filhos. Ainda soa estranho e solitário não deixar esse legado genético.
Por que tornar o aborto em uma música? Porque é autêntico, é humano. E eu particularmente gosto das coisas que são ditas inconfessáveis. Gosto de cavar cada vez mais fundo nos sentimentos.
Você sempre cantou em bandas formadas apenas por homens. Você já sofreu com machismo no meio musical? Sofri, mas pouca coisa, nada realmente violento. Em seis anos com bandas, em raras vezes, duas ou três, sofri algum assédio mais forte. O que acontecem são mais coisas irritantes, mas que na minha posição eu consigo contornar. Se chego num palco, é comum que esperem menos de mim como artista. São coisas tão pequenas que fica até difícil denunciá-las, mas não chegam a me tratar mal por isso. Depois da passagem de som e do show em si eu costumo já ter ganhado a galera, nem tanto pela minha competência vocal, mas porque fica evidente que eu gosto muito de estar ali. As pessoas respeitam isso. E os caras no geral ficam intimidados. Eu vou lá e canto "vem me foder" (parte da letra de Passivo) e eles vêm mansos depois (e isso definitivamente não é um convite, só a constatação de que percebem corretamente que não é mesmo um convite, mas entendem a letra e me respeitam como autora). Recebo umas cantadas tranquilas e não tenho problema com isso, acho que teria problemas se não recebesse nenhuma.
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Você já disse em uma entrevista: "Assim como muitas, eu também estive e estou estou revendo e analisando a minha própria condição como mulher”. Como você interpreta, agora como compositora que tocou em uma tema tão delicado, sua condição como mulher? Não tenho uma conclusão sobre. O divertido pra mim é que ao pensar essa condição política eu acabo fazendo política e compreendendo como ela funciona. Uma coisa que sinto por aí, em debates, é uma ilusão de que a mulher não tem afinidade com o poder e com a corrupção - de que ela não faz política. Por exemplo, acho uma forma de subestimar a mulher e reafirmar uma “mulher-vítima ideal” quando as pessoas chegam com essa teoria, sem base, de que a palavra da vítima deve ser acolhida e nunca questionada. Me interessa observar mulheres que são machistas, mulheres que obtêm poder investindo na submissão e passividade, mulheres que obtém poder simulando uma submissão. São contradições que alguns negam a existência, mas penso que são reveladoras dessa condição de ser mulher.
Créditos
Imagem principal: Rodrigo Gianesi
Rodrigo Gianesi