Ponto Firme, projeto que ensina crochê a detentos, abre o São Paulo Fashion Week
No final de 2015, o estilista pernambucano Gustavo Silvestre, 40 anos, entrou na penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos, São Paulo, com o objetivo de, voluntariamente, ensinar detentos a fazer crochê.
Com formação em moda, mas praticamente nenhuma experiência em pedagogia, perguntou aos sentenciados: “Alguém aqui tem uma pessoa na família que saiba fazer crochê?”. Todos disseram que sim, menos um.
No fim da aula, o aluno que não levantou a mão devolveu outra pergunta ao novo professor: “Você sabe se existe alguma coisa sobre crochê no ranking do Guiness Book?”. Silvestre não tinha a resposta, mas foi com este questionamento que passou a conhecer melhor o detento Tiago. “Percebi ali que eles já estavam pensando grande e, desde aquele segundo, tive a certeza de que não seria apenas uma aulinha de crochê.”
Silvestre estava certo: Tiago segue como participante deste projeto, batizado de Ponto Firme. Os dois, ao lado de mais outros 19 detentos, abrem neste sábado (21 de abril), a 45ª edição do São Paulo Fashion Week.
O curso de 72 horas, que é dividido em 24 encontros, ensina aos sentenciados a história do crochê, seus pontos básicos e transforma 12 horas do trabalho de cada um dos participantes em um dia de desconto em suas penas. A iniciativa procura não só proporcionar o conhecimento de um novo ofício como tocar também em pontos a autoestima dos alunos.
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“Já fizemos de tudo com o crochê lá dentro, começamos com conjuntinhos de tapete para banheiro, produzimos bichinhos japoneses, chamados de amigurumi, e já conseguimos até montar uma exposição inteira com peças criadas por eles, no bairro de Pinheiros”, conta Silvestre. O foco agora é mostrar toda esta produção na passarela.
“Como vim da moda, não quis impor este tema logo de cara. Fiquei relutando até a ideia partir deles. Um dia, começaram a mostrar um vestido, uma regata que tinham feito e partimos para a produção de roupas”, lembra. “Mostrei a técnica do crochê aplicado na moulage, um tipo de modelagem criada diretamente no corpo, e eles ficaram malucos”, conta. “Quando vimos estávamos mergulhados nesta brincadeira”.
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Em frente a unidade prisional, a modelo Gisele Bündchen aparece numa propaganda de lingerie em um outdoor. “Eles olham para esta imagem há anos e um dia comentaram: ‘Já que estamos aqui fazendo roupa, por que não chamamos a Gisele para desfilar?’. Falei que um desfile eu conseguiria fazer, que a Gisele eu não garantia, mas que adorava a ideia e que era uma loucura”.
E para a loucura acontecer os 20 alunos tiveram um intensivão sobre processo criativo, comandado por Karlla Girotto, artista plástica que também já atuou como estilista. “Karlla explicou para eles que uma coleção é muito parecida com um filme, com um começo, meio e fim. Perguntou qual história eles queriam contar e todos decidiram falar sobre o próprio cotidiano na prisão. Tive receio e quis tomar cuidado com o lugar que eles ocupam, porque os caras estão em uma situação difícil dentro do sistema carcerário. Mas trouxeram, ao mesmo tempo, pontos tristes e bonitos, que são potentes e carregados de poesia”, conta Gustavo.
O primeiro look da coleção, batizada de A Muralha – uma alusão ao muro pelo qual ninguém passa e onde se concentra os agentes da linha de tiro no presídio –, é exatamente igual ao uniforme dos presos, mas feito em crochê. “Lembra a força de transformação que o crochê proporcionou lá dentro”, conta Silvestre. “Eles já ouviram muitas piadinhas, foram chamados de velha e de veado, mas foram corajosos e não arredaram o pé do curso.”
Além disso, todas as peças da coleção são carregadas de cor. “Os detentos argumentam que no presídio tudo é cinza, bege e branco e quem leva a cor pra dentro são as visitas, como os professores e os familiares.”
Na sequência, há uma série de camisetas com escritos dos alunos. “São os textos deles, com as letras deles, com muitos erros de português. Isso explica um pouco a situação toda, porque evidencia o baixíssimo grau de escolarização.” A coleção ainda se desdobra em outros dois temas: futebol e mulheres. Do primeiro, saem peças como a camiseta com brasões de diversos times estampados, mas todos em cor neutra para não rolar briga. Do segundo, surgem vestidos mais glamourosos, todos pensados nas maiores musas da prisão. “A preferida deles é a Sabrina Sato”, conta Silvestre.
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“É uma coleção que tem muito a ver com o sonho de liberdade. Ela desenha um caminho de esperança, uma vontade de sair de lá. É uma gana que mantém todos vivos.” No último dia 4, uma prévia do desfile aconteceu para os próprios alunos, dentro da penitenciária. “Foram 20 modelos passando pelo procedimento de segurança, um tumulto. Mas, no final, eu e eles desmoronamos. Era inacreditável que aquilo estava acontecendo.”
“Ter esse projeto no SPFW reafirma nosso compromisso com a sociedade de mostrar que a moda, o design e o fazer criativo podem realmente mudar a vida das pessoas”, avalia Paulo Borges, diretor criativo do evento. O Ponto Firme hoje depende principalmente de patrocínios externos. Para a montagem da coleção, Silvestre precisou do apoio das marcas. “Espero que com esta visibilidade a gente consiga um parceiro que nos ajude a bancar o projeto”, ele ressalta.
Dentre os planos futuros do estilista está a expansão do projeto para outras penitenciárias que possam alcançar mulheres e sentenciados transexuais. “Tem mudado a vida de quem participa. Dia desses um aluno meu comentou que tinha recebido a encomenda de um tapete e, que com o dinheiro, a sua mão ia conseguir visitá-lo. Isso é muito potente”, ele conta emocionado. Nunca foi apenas uma aula de crochê, mesmo.
Créditos
Imagem principal: Danilo Sorrino/Divulgação