Tudo nela jorra e encanta: a poesia de Ryane Leão

por Daniela Arrais

Poeta preta, lésbica e best-seller, ela vendeu mais de 40 mil exemplares de seu primeiro livro e agora se prepara para lançar o segundo. Vem ler em primeira mão!

"Todas as revoluções que eu desejo começam em mim." É assim que Ryane Leão inicia seu novo livro, Jamais peço desculpas por me derramar, que será lançado pela editora Planeta no próximo dia 01 de novembro. A escritora, que aprendeu a se valer das redes sociais para jorrar toda sua potência, faz agora um mergulho em suas raízes, nas suas dores - e na redescoberta do amor também. Sua poesia tem a capacidade de abrir um canal direto com quem lê. As páginas passam e nos vemos em pensamentos e emoções. É uma escrita que gera identificação, formando quase um clube invisível das mulheres exaustas que ainda assim insistem em viver com poesia. 

Em entrevista à Tpm, Ryane conta que qualquer livro vem de algumas coisas que estão engasgadas. "O primeiro [Tudo nela brilha e queima] veio como impulso. O segundo, que está sendo lançado porque o primeiro foi muito bem, deu para elaborar mais. O primeiro foi de cura e resgate. Esse também é, mas de outra forma. Tô explorando mais as coisas boas, os prazeres, e como eles ensinam também." 

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Ryane escreve como quem não tem medo e se joga na vida. Pergunto como ela se conectou com sua potência. "Sempre acreditei muito no que eu escrevia, apesar de muitas pessoas terem desacreditado no caminho. E ainda escrevo em primeira pessoa, isso faz com que eu chegue mais rápido nas pessoas." Sua cura, seus processos, o que vivencia, tudo é refletido nessa escrita. Ela conta que recebe mensagens de gente que rompeu relações abusivas depois de ler seus poemas. "Poesia é uma ferramenta muito grande de reconstrução. Se eu me reconstruo consigo ajudar outras mulheres."

Há 12 anos Ryane começou a escrever um blog. Depois migrou para o Facebook, ao mesmo tempo em que lembrou do quanto gostava de arte de rua - e resolveu colar lambe-lambe por São Paulo. "Fiz isso por 4, 5 anos. Foi incrível." Hoje, faz oficinas de lambe para mulheres, incentivando-as a colocarem suas palavras no mundo. Nesse meio tempo, criou o perfil de Instagram @ondejazzmeucoracao, em que reúne mais de 483 mil pessoas. "A gente vai existindo em vários lugares, e as pessoas vão nos encontrando em um lambe, uma hashtag, um livro. Gosto dessas multiplicidades." 

E é como múltipla que ela se coloca. "Acho importante falar que existe uma mulher negra e lésbica que é best-seller", diz Ryane, que vendeu 40 mil exemplares do seu primeiro livro. "Nós mulheres negras que temos vozes audíveis precisamos fazer isso. Ainda são poucas que estão sendo ouvidas. Quando participo de mesas, de eventos, sempre me coloco como mulher preta e lésbica. Me coloco porque preciso que outras se coloquem. Tem tantas se escondendo ainda. Por timidez, por silenciamento. Vou fundo nas minhas dores, faço questão de falar dos meus afetos, me posiciono." O segundo livro fala mais disso, pois Ryane redescobriu o amor depois de muito tempo.

Entre suas inspirações, estão Ijeoma Awuaku Umebinyuo ("Fala muito de resistência. Não no sentido de que temos que resistir, mas que já resistimos há muito tempo"), Rupi Kaur ("Foi ela que abriu as portas para mim."). E brasileiras também. "Gosto muito de Luz Ribeiro, Mel Duarte, Bell Puã. Tem muitas mulheres negras publicando, mas nem todas têm visibilidade", diz ela, lembrando também da explosão dos "instapoetas". "Tem muitos caras que escrevem bobagem e alcançam muita gente. As pessoas estão mais atentas para ouvir homens brancos. E muitos usam eu-lírico feminino ou falam que a mulher tem que se amar. Não é uma poesia que se faz estrada."

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O que fazer, então, para se destacar, para ser lida, para publicar? Usar as redes sociais a seu favor é um começo. Lembrar que toda história importa, também. "A gente cresce achando que nossas narrativas não são importantes. E são. Precisamos continuar a pesar no mundo. Se entenda primeiro. Saiba sua verdade, se você está pronta para encará-la, se está pronta para ser reflexo de outras pessoas. Escrita é processo de encontro, de cura. Você não precisa se encontrar perfeitamente para começar, não acho que tem linha de chegada nesse processo, estamos em constante transformação. Prossiga sabendo quem você é. Mais importante do que entender o mundo é saber quem a gente é." 

Quando pergunto sobre futuro, sobre o que ela espera com seu trabalho, a resposta é poesia, com chamada para ação. "Espero que outras mulheres contem suas histórias, que seja uma continuidade de voz. Do que adianta se parar em mim?", reflete. "Espero também ajudar minha mãe, estar perto de outras mulheres que falam e de outras que ainda não falam. E amplificar essas vozes. Que a gente continue contando nossa história até que isso leve a uma mudança estrutural. Espero que as pessoas que estão nas margens continuem ou comecem a contar suas histórias. Poesia é um trabalho para os que virão." Que estejamos atentos para perceber essa força. 

Outras poetas para seguir

Para colocar mais poesia no seu feed do Instagram, Ryane Leão indica poetas para seguir.

@desde.o.principio: "A poeta Gênesis visita nosso dentro com a leveza de um redemoinho. Desmonta e remonta. É sobre saber a força do que nos sopra." 

 @luzribeiropoesia: "A poeta Luz Ribeiro é o chamado ancestral de tudo que nos cerca, o aviso para que a gente encontre sempre com o mar."

@melduartepoesia. "A poeta Mel Duarte nos relembra das coisas bonitas ao nosso redor, o que nos movimenta, o que dá vida ao nossos dias."

@negafya: "A poeta Negafya nos tira do lugar e nos coloca de frente com o sagrado. É sobre vivências e construções de novas narrativas."

@bell.pua. "A poeta Bell Puã constrói novos eixos, traz referências regionais e reconecta suas raízes com as nossas."

 @mcdallfarra: "A poeta e MC Carol Dall Farra é o resgate do que tentaram nos convencer ter perdido. Ainda estamos aqui (sempre estivemos)." 

@keyballah: "A poeta Key Ballah me disse uma vez: o ar fresco queima a tristeza. E eu aprendi mais sobre amor próprio do que em qualquer outro dia."

@nayyirah.waheed. "A poeta Nayyirah nos faz perguntar às nossas dores o porquê de ainda latejarem. Se encarar para curar."

 

 Poemas do novo livro

 A autora destaca alguns poemas do livro "Jamais peço desculpas por me derramar":

 

de que valerão meus escritos

se outras não falarem

não se contarem

não dançarem

não se manifestarem

não protestarem

não se erguerem

 

de que valerão meus escritos

se eu me esquecer de direcioná-los

para aquelas que engolem silêncios a seco

que escondidas oram ao impossível

que no ônibus às cinco da manhã

fecham os olhos e sonham rumos

que focam em tapar os vergões

que nunca soltaram do peito os leões

que estão habituadas a vestir

inseguranças

 

eu que agora tenho a voz audível

não falarei por ninguém

convidarei para virem ao meu lado

para não deixarem se apagar

ou desencorajar

 

de que valerão os meus escritos

se eu não convocá-las

se eu ignorar da onde vim

se eu parar em mim

*

você precisa ser mais parecida com a água

não tem que ser porto seguro a todo instante

pode ser correnteza e aproveitar pra levar algumas coisas embora

pode ser onda grande no oceano e afogar o que já não importa

se desfazer nas margens

em grandes pedras

ultrapassá-las

pra notar que nada te impede

vez em quando virar uma cachoeira

daquelas enormes e inalcançáveis

ou então lagoa calma mas distante

só nada quem pegar a trilha

você pode ser aquele fluxo de água que desce entre

as frestas de uma rocha

e mostra que algumas rachaduras são necessárias

para que a beleza nasça

quente ou fria

abundante ou serena

jamais peça desculpas

por se derramar

*

 tenho muitos nomes

estou em inconstante

transformação

nada me condensa

e pairo onde me inspiro

ultimamente o prazer

tem me convencido

de que ensina bem mais

que o pesar

Créditos

Imagem principal: Divulgação

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