Como uma dança fez Milly Lacombe entender onde liberdade e segurança se encontram
Diante da notícia que tinha acabado de receber, não havia mais nada a ser feito. E, como sempre acontece quando temos que tomar decisões radicais com base naquela cartilha de conduta ética que carregamos por aí, tratava-se de uma escolha bastante simples. Mas, antes de pedir demissão em solidariedade a um amigo querido, um telefonema se fazia necessário; era para o meu objeto de obsessão, que ficaria com o fardo de ter que arcar solitariamente, por um período indeterminado, com as contas da casa. E a depositária de minha libido precisou que eu dissesse apenas duas palavras para determinar: "Vá agora mesmo fazer o que tem que ser feito. Ficaremos bem".
Como a prudência sempre me visitou com a regularidade com que técnicos da Net aparecem em nossas casas no dia e na hora marcados, o salário razoavelmente bom para padrões jornalísticos não flertou diabolicamente com minha moralidade, e lá fui eu para o RH de um conhecido portal seminacional comunicar que iria sair.
Embora não tenham ficado surpresos com a atitude, tentaram me convencer a permanecer trabalhando para a oponente empresa de tecnologia - ainda que preferissem que eu tivesse escrito aqui empresa de comunicação -, ao que eu respondi impulsivamente: "Nem se quadruplicarem o meu salário", o que era provavelmente uma mentira porque, convenhamos, ganhar quatro vezes mais da noite para o dia faz você querer abrir o tal livrinho da conduta moral e reescrever algumas partes ali mesmo.
Ao descer os 12 andares que me levariam pela última vez para o térreo e, escrachadamente, passar pela catraca pela derradeira vez, olhei para cima, vi um céu surpreendentemente azul para março e entendi perfeitamente o que estava sentindo.
Tinha 16 anos quando, ao beijar a boca de uma outra mulher, experimentei esse mesmo gosto. Naquela tarde de dezembro em 1982, dentro de um pequeno quarto na alameda Joaquim Eugênio de Lima, percebi que liberdade e segurança são conceitos opostos. A possibilidade de ver minha mãe entrar no quarto e me flagrar em ato transgressor e de enlouquecimento total era nítida como uma manhã de verão. Ainda assim, queria que aquele beijo nunca mais terminasse. Com ele, estava aprendendo a ser livre e, com ele, começava a entender que a verdadeira liberdade só existe quando teimamos em respeitar quem somos e o que sentimos.
O encontro
Vinte e oito anos depois, andando por uma dessas ruas lotadas de engravatados correndo para cumprir os 60 minutos de almoço impostos pelo contratante, sentia outra vez o gosto da liberdade que pinta quando nos deixamos guiar pelo instinto e pela paixão. Ao pedir demissão de forma tão impulsiva, eu tinha aberto mão de uma boa dose de segurança por um punhado de liberdade e, agora, no meio de uma segunda-feira de março, estava voltando para casa.
Antes, parei para comprar flores porque sei como você gosta de flores, e como eu gosto de ver seus olhinhos sorrirem quando você entra em casa e vê flores. Aí, fui colocando as flores nos vasinhos que pude encontrar pelo caminho - meio desajeitadamente porque essa é minha marca registrada -, preparei o jantar - macarrão, porque não me resta outro artifício culinário -, coloquei a mesa, algumas flores ao centro, abri uma garrafa de vinho e, com o coração batendo rápido demais - condição cardíaca que é meu estado natural desde que te conheci -, esperei você chegar.
Você então entrou e, como faz todos os dias, me abraçou, me beijou a testa, as bochechas, a boca e depois, olhando dentro dos meus olhos, disse que estava orgulhosa de mim antes de me abraçar outra vez.
Mas foi apenas quando você me tirou para dançar no meio da sala, foi apenas quando você me conduziu bem devagar para lá e para cá, corpo colado ao meu, que entendi o que talvez seja, entre todas as coisas, a mais essencial: em você, e em mais lugar nenhum, liberdade e segurança conseguiram, finalmente, se encontrar.
Dançando bem no meio da nossa sala, agarrada a você como quem se agarra à vida, fechei os olhos, respirei fundo e sorri.
Milly Lacombe, 42 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com