O dia em que minha filha cresceu
Ao ver a minha filha se despedir da infância, eu tentava encontrar um novo jeito de ser mãe, enquanto ela queria descobrir quem era. A única certeza é que eu não era mais tão importante assim para ela
Eu queria ter enchido a casa e o mundo de filhos. Tipo: lotado o planeta de pessoas sensíveis, preocupadas com o aquecimento global, o racismo, e sobretudo pessoas que olham os outros no fundo dos olhos. Sabendo que aquela era uma escolha verdadeiramente minha, tudo ótimo. Tudo lindo. Mas não rolou.
Depois da minha primeira e única filha, que tive aos 30, passei dez anos naquela viagem angustiante de tentar engravidar, sofrer sucessivos abortos espontâneos e ser avaliada e diagnosticada por uma medicina invasiva que só fazia aumentar a minha ansiedade. Não tem nada pior do que ser chamada de "tentante" e ouvir, no meio desse processo pouco humanizado e angustiante, que você não pode ficar ansiosa. Ah, tá.
Apesar de toda essa tristeza, tinha ela! A minha filha geminiana animada para vida. Enquanto tentava entender porque o meu corpo não atendia aos meus anseios de povoar o planeta Terra, a gente se divertia juntas. Se divertia muito. Eu queria aproveitar cada momento da infância da filha como se fosse o único. Uma mulher muito preocupada em colecionar memórias doces, como em um dia de tempestade em São Paulo, quando eu a convenci a se atirar junto comigo de roupa e tudo na piscina do prédio. Não sei até hoje se aquilo foi uma temeridade ou não… Dizem que raios podem matar.
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Fui criada por uma mulher da geração boomer que encarava a maternidade como uma coisa mais natural e menos neurótica. Quando fiquei grávida, prometi para mim mesma, por exemplo, que jamais deixaria a minha filha perto daquelas balas soft roxas enormes, que eu engolia escondida embaixo da mesa, quando criança – aquilo, sim, que era perigo! Sim, eu fiz tudo diferente da minha mãe. Eu quis ser muito. Eu quis ser tudo. Eu quis ser demais. Até que minha filha começou a crescer.
Ela entrou naquela idade entre a infância e a adolescência, e o meu demais passou a não servir para ela. Quando essa hora chegou, fui invadida por muitos outros sentimentos para os quais não estava nem um pouco preparada. Ser mãe é não estar preparada. Nunca. Para nada. Mas ver a minha filha se despedir da infância foi uma das sensações mais agridoces que já experimentei. De um lado, as tão sonhadas horas livres para colocar em prática qualquer desejo que fosse só meu, muito meu – e eu de fato estava esperando ansiosamente por essa fase. Do outro, um estranhamento sem fim por deixar de ser tão importante na vida dela. Eu nunca tinha sido tão importante assim para ninguém. E esse sentimento é quase viciante – especialmente para uma mulher leonina que se jogou profundamente no papel da maternidade.
Apesar de tanta intensidade, tanto grude, eu sabia que filhos a gente cria para o mundo. Mas naquela época eu não tinha a menor ideia do que fazer. Porque uma hora ela chegava em casa chorando como uma criança pequena pedindo colo, e, no segundo seguinte, ela já estava achando que aquele colo era demais. Foi um turbilhão, para mim. Eu tentava encontrar um novo jeito de ser mãe, enquanto ela queria descobrir quem ela era. A única certeza é que eu não era mais tão importante assim para ela. E os pulos de roupa e tudo na água tinham ficado para trás.
Como assim ela não precisava mais de mim? Quem eu seria depois de passar tanto tempo da minha vida buscando filha na escola? Se eu tô conseguindo escrever isso aqui sem derrubar uma lágrima, é porque dei um jeito de colocar esse, e muitos outros lutos, pra fora com a minha escrita. Em 2016, quando minha filha fez onze anos, eu lancei meu primeiro livro “O dia em que a minha vida mudou por causa de um chocolate comprado nas Ilhas Maldivas”, com uma protagonista com a mesma idade da minha filha. Assim como ela, esse livro mudou a minha vida. Ele foi premiado, virou peça também com prêmios, e agora uma série diária do Canal Gloob, disponível no Globoplay. Acho que de uma certa forma é uma história em que muitos adultos e crianças se encontram. Tem muita confusão de mãe ali. Uma confusão que nunca acaba… Pelo contrário, ganha novas nuances.
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A adolescência dela chegou chegando, e mais uma vez me pegou de jeito. Junto com os quinze anos da minha filha, vieram os meus calores. Então, enquanto ela era bombardeada com uma enxurrada de hormônios com os quais ainda estava aprendendo a lidar, os meus próprios hormônios despencavam vertiginosamente. Éramos duas mulheres em diferentes fases da vida tentando se entender. Ela virando uma jovem cheia de curvas, novas expressões e vontades, e eu ficando mais velha em um mundo etarista que acha que a palavra "velha" é xingamento.
Foi intenso. Foi desafiador. E também muito poderoso. Eu escrevi outros livros depois desse. O meu quarto romance publicado, o “Sozinha”, é sobre uma história de mãe e filha, que é também uma história de luto. Já perdi muita gente para a morte. Conheço essa palavra desde os quatro anos de idade. Já fiz muita psicanálise e terapia. Mas nada disso me preparou para esse novo momento em que a palavra mãe começa a ter um outro sentido. Ainda bem, se não, não teria graça. Qual vai ser agora? A ver.
Créditos
Imagem principal: Caroline Bittencourt
Escritora e roteirista, Keka Reis é especialista no assunto mãe e filha. Não à toa, tem três ficções publicadas sobre o assunto, além de estar à frente da série “O Dia Em Que A Minha Vida Mudou”, do canal Gloob (Globoplay), inspirada em seu livro homônimo