O Afeganistão depois do Talibã

por Marcela Paes

Jornalista Adriana Carranca lança livro sobre a situação do país pela ótica dos afegãos

Para a maioria das pessoas uma viagem ao Afeganistão seria a coisa mais improvável a se fazer. Já uma segunda ida ao país - sem nenhuma obrigação, somente por prazer - estaria próximo do impossível. Felizmente, dentre a maioria existe alguém como Adriana Carranca.

Após uma curta primeira incursão em 2008, a jornalista voltou ao Afeganistão para reencontrar as pessoas que conheceu e contar suas histórias. Cheio de personagens complexos, o livro O Afeganistão Depois do Talibã, mostra a atual situação do país depois da ocupação das tropas americanas. Mais do que um livro informativo, a obra ganha força ao entrar no campo humano e mostrar trajetórias de superação e luta no imprevisível mosaico do conflito.

Entrevistamos Adriana por e-mail e falamos sobre suas impressões, sua opinião sobre a ocupação, a opressão das mulheres e os momentos felizes que acontecem em meio ao caos de um país em constante reconstrução.

Tpm: Você foi para uma zona de conflito pela primeira vez, para fazer uma reportagem especial, em novembro de 2008. Como surgiu a ideia de ir pra lá?

Adriana Carranca: Depois do 11 de Setembro todas as atenções do mundo – e dos jornalistas – se voltaram para o Afeganistão. Eu queria compreender melhor o que levou aos atentados. Não entendia por que a reação dos EUA foi lançar-se em uma guerra em território afegão, se não havia nenhum afegão entre os 19 terroristas do 11 de setembro, assim como não há afegãos envolvidos em ações de terrorismo internacional. Uma guerra de 41 países desenvolvidos para caçar um único homem, o saudita Osama bin Laden, me parecia improvável e ele poderia nem estar mais no Afeganistão – como saberíamos mais tarde, estava no Paquistão. Por que os afegãos protegeriam Bin Laden? Quem eram aqueles homens chamados talibãs, que escondiam as mulheres sob burcas? Eu achava tudo aquilo uma loucura. Também tinha curiosidade em saber como é a vida cotidiana em uma zona de guerra e o que pensavam aquelas mulheres. Então, fui fazer um curso de jornalismo internacional da Reuters, em Londres, e, de lá, embarquei de férias para a Índia, já com a intenção de chegar mais perto do Afeganistão... De Nova Délhi liguei para o meu editor: “Estou indo para o Afeganistão, ok?”. A resposta dele foi: “Se eu disser não, você vai de qualquer jeito! Então, vá”. Eu tinha ido para o Irã de férias no ano anterior, então, ele sabia... [risos] Por causa dos riscos, avisou: “Só uma semana!”. Eu fiquei um mês. Cabul te dá uma falsa sensação de segurança... Na época, havia 70 pessoas sequestradas, entre elas um repórter do NY Times. Tinham ocorrido os assassinatos de uma missionária britânica, de agentes de assistência humanitária e de dois americanos, e não se sabia ainda se aquilo era uma caça deliberada aos estrangeiros no país. O hotel onde me hospedei da primeira vez foi bombardeado pouco depois, por oito suicidas. Na segunda viagem eu aprendi a viver mais como eles e entre eles, sem parecer tão estrangeira. 

Em um trecho do livro você fala do medo que teve ao embarcar pela primeira vez para o Afeganistão e da busca por sinas divinos que a fizessem desistir da viagem. Mesmo após perder seu passaporte no aeroporto e ter sido advertida pelo correspondente e jornalista Mathew Rosenberg, você não desistiu. O que a fez ser tão persistente?

Eu estava mesmo morrendo de medo. Não sei como não desisti. Mas, olhando para trás, hoje vejo que tudo aquilo foi uma provação. Algo meio divino mesmo, que me fez perceber o quanto eu queria estar ali. É uma sensação boa de quando a gente faz o que gosta, busca o que quer, vai atrás do que está no coração, mesmo sem compreender os motivos!

Você afirma no livro que duas em cada três mulheres afegãs são vítimas de stress pós-traumático e depressão decorrentes dos conflitos e da falta de perspectiva. Foi isso o que você viu por lá?

Com certeza! A dor das mulheres, dos afegãos em geral, é tão grande que é possível enxergá-la. Mas eles têm uma capacidade imensa de superação, talvez desenvolvida ao longo de tantos anos de guerra. O ser humano, em geral, tem esse dom de se adaptar a quaisquer condições e lá isso está muito aguçado, à flor da pele mesmo. É isso ou morrer.

Em uma passagem, no depoimento da médica Massouda, ela conta que ficou muito feliz quando o Afeganistão foi invadido pelos Estados Unidos. Esse sentimento mudou? Qual é a opinião dos afegãos sobre os americanos?

Os afegãos celebraram mesmo a chegada dos estrangeiros! A vida sob o regime dos talibãs era muito dura! E quando os EUA chegaram, o povo achou que os americanos transformariam o Afeganistão e uma Nova York da Ásia Central! Dez anos depois da ocupação e queda do regime talibã, eles se sentem largados à própria sorte. Não entendem como as tropas de 41 nações desenvolvidas, lideradas pelos EUA, não foram capazes de protegê-los e de transformar o país em um lugar melhor para se viver.

E você? O que acha da ocupação?

Acho que foi um erro estratégico e um crime. Muitas violações de direitos humanos foram cometidas nesse conflito e a comunidade internacional se calou. Talvez pelo choque do que foi o 11 de Setembro, um atentado brutal. E ninguém sabia ainda muito bem como lidar com o terrorismo global. Os afegãos pagaram o preço.

O livro traz histórias de mulheres fortes como a historiadora Fatema e da própria médica Massouda, que é um exemplo de resistência. Você aprendeu algo com elas?

As afegãs não se rendem ao sofrimento. A Massouda diz: “Meu lema é continuar, continuar, continuar...” E é muito perverso que o mundo olhe para elas e só veja o véu – o hijab, a burca. Este é o menor dos problemas delas, se é que é um problema. As afegãs lutam contra a miséria, as injustiças da guerra, o direito de igualdade, de estudar e trabalhar... O Ocidente aponta o dedo para os afegãos, mas uma das iniciativas mais bacanas que eu conheci, o primeiro time de boxe feminino do Afeganistão, que treina no mesmo estádio onde as mulheres antes eram executadas pelos talibãs, continua sem incentivo algum, sem patrocínio externo.

A situação das mulheres piorou muito com a dominação do Talibã. Você acha, que nesse sentido estritamente, ocorreu uma melhora após a ocupação?

Sem dúvida as mulheres estão mais livres. As meninas voltaram para a escola. Mas hoje, uma década após a chegada dos estrangeiros, há 7 milhões de meninos e meninas em idade escolar fora das salas de aula; entre os 5 milhões de alunos matriculados em 2011, apenas 1,5 milhão são meninas. No ensino médio, a desproporção era ainda maior: uma aluna para cada 20 meninos. E 72% dos afegãos continuam analfabetos, 85% não têm luz elétrica em casa e vivem o isolamento que isso traz. Pelo menos 70% dos casamentos são forçados para as mulheres e 57% delas ainda se casam com menos de 16 anos, idade mínima definida pela nova Constituição, aprovada em 2004. Em 100 mil grávidas, 1,1 mil morrem durante a gestação. Nas áreas rurais, predominantes, a taxa de mortalidade entre as gestantes chega a 6,5 mil para cada 100 mil, de longe o maior do mundo. Se chegam ao parto, 135 em cada mil perdem o bebê - 75% delas por falta de cuidados básicos. Cada afegã tem sete gestações e perde dois filhos, em média. Os partos (81%) são feitos em casa. Muitos bebês têm anomalias porque as mães não têm tempo de amamentar entre uma gravidez e outra, são desnutridas, automedicam-se e se casam com parentes próximos. Isso, em uma década de ocupação estrangeira!

Em meio ao clima tenso do país você teve algum momento completamente tranquilo e feliz em sua passagem por lá?

Muitos. Eu gostava de ficar no jardim. Não é comum ver meninos dedicados às flores, mas os afegãos adoram plantar rosas. Na frente da casa onde me hospedei dessa vez tinha acabado de abrir uma galeria de artes – é isso o que digo, os afegãos sempre surpreendem! A iniciativa foi de Rameen, um jovem que passou a maior parte da vida refugiado nos EUA e voltou ao Afeganistão para tentar fazer algo por seu país depois da queda do regime Talibã. Ele percorre o país em busca de artistas e tem procurado divulgá-los no exterior. Nessa casa em Cabul ele realiza exposições e vende peças para os estrangeiros que vivem ou passam pelo país. É um casarão antigo tradicional. Cada cômodo é decorado e tem arte afegã. Eu arrumei um professor de dari (idioma local) e ia lá todas as tardes ter aulas no jardim. Também quando estava entre as mulheres, na casa delas, na cozinha, na sala, testemunhando a vida em família, era muito gostoso!

Uma frase do livro me impressionou: "Os afegãos pedem desculpas por tudo, por terem nascido. A guerra destrói cidades e vidas, mas também destroi a autoestima do homens". Ao mesmo tempo, você afirma que os afegãos são um povo inconquistável. Como você os enxerga?

Os afegãos têm mais de 2 mil anos de histórias naquelas terras. Durante todos estes anos muitos conquistadores tentaram dominá-los, sem sucesso. São predominantemente trinos nômades, ou que eram nômades no passado, que conhecem cada metro daquelas terras, dominam as montanhas, estão adaptados ao clima e se tornaram guerreiros fenomenais aprendendo a defender-se dos invasores. Então, chega o Ocidente e diz que tudo o que eles fazem está errado, que o país é subdesenvolvido, que é preciso ter estradas, consumo, democracia, feminismo, liberdade sexual. Tudo isso é ótimo, mas existe um mundo e 2 mil anos entre os afegãos e o Ocidente. E eles estão perdidos entre estes dois mundos, entre a era medieval em que vivem e o século 21. É isso: os afegãos se sentem perdidos!

No meio de toda tensão, após o trabalho, o que você fazia para relaxar quando chegava no quarto?

Eu dormia – quando os helicópteros e aviões militares deixavam. Lia um pouco – sob a luz da minha lanterna, pois não tinha luz na casa. Pensava no que tinha visto durante o dia. Escrevia meu diário. E me preparava para o dia seguinte.

Quais são os seus próximos projetos? Mais uma viagem para o Afeganistão na lista?

Quero voltar, sim. Gostaria de ir a Herat, a cidade persa quase na fronteira com o Irã, e Bamyian, o vale dos Budas gigantes, destruídos pelo Talibã, o que não consegui por restrições de segurança. Quero rever os personagens do livro e saber sobre sua vida – se bem que os acompanho sempre, à distância.

Vai lá: O Afeganistão depois do Talibã

Abaixo você vê Adriana falando sobre aspectos da situação no Afeganistão:





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