Elas já compõem cerca de 20% dos profissionais de TI no Brasil mas ainda convivem com o assédio e a discriminação
Quando iniciei minha pesquisa de doutorado em Ciências Sociais sobre trabalho e gênero no setor de TI o que mais ouvia era “Mas não existe discriminação contra as mulheres. Convivemos muito bem”. Essa fala reativa geralmente abria a conversa com meus entrevistados tão logo eu explicasse que eu queria entender, entre outras coisas, como se desenrolavam as relações entre profissionais homens e mulheres já que elas são minoria no setor. Elas compõem cerca de 20% do total dos profissionais de TI no Brasil.
A ideia de igualdade de tratamentos e de oportunidades, no entanto, era acompanhada por discursos que reforçavam diferenças: as mulheres seriam melhores atendendo clientes, as mulheres seriam melhores trabalhando como analistas, as mulheres seriam menos capazes de programar. Entre outros achados, pude notar que a discriminação das capacidades técnicas das mulheres cria uma divisão sexual do trabalho dentro do setor: enquanto eles cuidam da parte hard da TI, elas cuidam da soft. Algumas das mulheres com as quais conversei sofriam porque não conseguiam se realizar profissionalmente: elas eram sutilmente impedidas de programar porque sempre eram realocadas nas tarefas de gerenciamento de equipe e de relacionamento com o cliente – o que não as levava, no entanto, a ganhar mais do que eles. Uma frase comum entre os profissionais do setor é que “elas sabem como atrair novos clientes, sabem como manter seu interesse vivo”.
"Pude notar que a discriminação das capacidades técnicas das mulheres cria uma divisão sexual do trabalho dentro do setor: enquanto eles cuidam da parte hard da TI, elas cuidam da soft"
Não demorou para eu perceber que o papel sedutor que se atribuía às mulheres, papel este essencial para a manutenção dos negócios de uma empresa, não apenas alimentava a desconfiança que seus colegas possuíam nas suas capacidades técnicas como também respingava nas relações de trabalho cotidianas. Insinuações homofóbicas e histórias de assédio sexual sempre apareciam nas entrevistas com as mulheres. “Mas são mais piadinhas, a gente tem que aprender a conviver”, a maioria dizia. A homofobia se apoiava na ideia preconceituosa de que mulher que atua nesse setor é masculinizada e, portanto, lésbica. O assédio se apoiava na ideia de que uma mulher que está em um ambiente masculinizado está disponível.
Muitas das minhas entrevistadas contaram como usavam táticas muito específicas para apagarem a referência de que eram mulheres: seja banindo elementos estéticos que algumas gostavam de usar, como esmalte, maquiagem, joias, roupas florais e coloridas; seja adotando uma personalidade mais dura e menos emotiva; seja anulando a construção de uma relação de amizade e companheirismo para evitar qualquer possibilidade de interpretação errada dos homens. Elas faziam, como define a filósofa Judith Butler, uma performance de gênero que apagava as marcas que costumamos atribuir ao universo feminino e conseguiam, assim, ter sobrevida em um espaço altamente masculinizado.
Algumas das meninas contaram que mentiam sobre ter namorados para mostrar que eram “sérias” e que evitavam falar sobre paquera mesmo quando estavam fora da empresa para que seus colegas não interpretassem suas falas erroneamente e as lessem como disponíveis. Muitas me diziam que mesmo quando apagavam o gênero no local de trabalho, sofriam, porque aí eram vistas como “um deles” e incluídas nas piadas sexistas e nos comentários grosseiros sobre as mulheres do escritório.
As armaduras que elas construíam para sobreviver no dia-a-dia de trabalho eram uma reação ao ambiente machista e discriminatório no qual atuavam e ao qual buscavam se adaptar da melhor maneira possível. Mas essas estratégias, que à primeira vista podem parecer como a solução da lavoura ao leitor mais apressado, são a tradução de um ambiente corporativo que pouco se preocupa em equalizar as relações de gênero no trabalho e a combater o preconceito, a discriminação e o assédio.
As acusações de sexismo ao Github, que vieram à tona nas últimas semanas, evidenciam esse modelo de gestão de recursos humanos nas empresas: apesar do desligamento do Presidente da empresa após as denúncias de discriminação de gênero, não houve preocupação em tornar a história mais transparente nem ao menos foi exposto um novo plano de conduta empresarial que evitasse que casos como aquele se repetissem. Para abafar o problema, ele foi particularizado, tratado como exceção, uma fórmula que pode ajudar a salvar a reputação da empresa emergencialmente, mas que é muito pouco efetiva no combate às raízes do problema.
'Muitas me diziam que mesmo quando apagavam o gênero no local de trabalho, sofriam, porque aí eram vistas como “um deles” e incluídas nas piadas sexistas e nos comentários grosseiros sobre as mulheres do escritório'
Outro caso recente envia ao público uma mensagem semelhante: a violenta agressão pública do CEO da RadiumOne à sua namorada, sua continuidade no cargo e na condução dos negócios da companhia. Mais uma vez, o caso foi resolvido com seu afastamento apenas quando a pressão pública cresceu sobre a empresa e sobre seus parceiros de negócios – e oito meses após o caso ter sido divulgado. Apesar de o caso de violência ter ocorrido fora da empresa, que mensagem ela pode passar às mulheres que nela atuam quando decidem que não há uma crise de imagem quando seu CEO trata uma mulher com violência? O que se pode esperar da condução de um caso de violência de gênero dentro do ambiente de trabalho de uma empresa que envia uma mensagem como essa?
Apesar da solução encontrada nos dois casos, é importante pensarmos em como ela foi fruto da pressão de fora e do quanto foi gerenciada como uma crise de imagem. A maneira como foram conduzidos enquanto exceções, desvios raros de conduta e casos isolados só ajuda a reforçar a ideia de que os constantes casos de discriminação e a desigualdade de gênero presentes no mundo corporativo são fruto de um delírio coletivo. O remédio para estes problemas está longe de ser solucionado com pedidos de desculpas como os divulgados por essas empresas.
Admitir que a diferença entre os sexos ainda gera desigualdade no mercado de trabalho e construir políticas reais de combate ao assédio e à discriminação seriam a única maneira de essas e outras empresas construírem um ambiente de trabalho equitativo e igualitário. Uma pena que ambas não tenham aproveitado a oportunidade.
*Bárbara Castro é Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp e desenvolveu parte de sua pesquisa na Open University, na Inglaterra. Em sua tese, estudou as relações de trabalho e gênero no setor de TI. O Ada é um site de tecnologia para mulheres e está toda semana no site da Tpm http://ada.vc. Fanpage: www.facebook.com/adaevc