Quero te falar isso, Estela

por Milly Lacombe
Tpm #179

O mundo aqui fora não anda muito bom, ou justo. Mas a vida segue valendo ser vivida

Teca, meu amor. Escrevo essa carta às vésperas de sua formação no Ensino Médio. Em meus planos, estaria aí, testemunhando seu ritual de passagem para a universidade e vendo você discursar em público. Saber que você foi a escolhida como porta-voz de centenas de colegas de classe me matou de orgulho. Espero que a Nonna ou sua mãe me mandem logo o vídeo (que elas certamente gravarão) de seu discurso de formatura. Vou chorar como chorei no dia em que te conheci, com poucas semanas de existência, no colo de sua mãe, numa manhã de primavera em 2000; a primeira sobrinha depois de dois sobrinhos. Naquela época, era eu que morava fora; hoje você estuda na gringa e eu escrevo para você a partir da nossa pátria.

Não era mesmo possível prever o que aconteceria em sua vida. A gente tem, claro, sonhos para nossos descendentes, mas, nesse mundo tão maluco, como podemos fazer qualquer tipo de antecipação? E você cresceu para se tornar uma mulher cheia de personalidade e de afetos. Uma mulher brilhante, sensível e corajosa. Cresceu para se tornar uma mulher porque, como ensinou Simone de Beauvoir, a gente não nasce mulher, a gente se torna mulher.

“Uma coisa eu preciso dizer: uma hora a vida vai complicar”
Milly Lacombe

Agora, sua vida está prestes a se transformar como talvez ainda não tenha se transformado até aqui. Muita gente fica tentada a dizer que nada será como antes, mas alguma coisas serão, sim, como antes, como, por exemplo, o amor de seus pais e o fato de que você sempre terá no mundo um lugar para onde poderá voltar quando a vida complicar.

Uma coisa eu preciso dizer: uma hora a vida vai complicar. Não é exatamente essa a coisa mais adequada a ser dita em cartas de formatura, mas você não é uma mulher de rodeios e me inspira a seguir por essa trilha.

Haverá momentos de angústia, de tristeza, de solidão, de fracassos. E haverá muitos outros de felicidade, alegria, comunhão e sucessos. O truque é que você só poderá saber que passa por um deles depois de ter experimentado o outro.

Não tenha, aliás, medo de sentir. Grite. Chore. Gargalhe. Apaixone-se. Perca-se em outra pessoa e encontre-se em você. Talvez existam apenas três sentimentos que devam ser evitados: rancor, amargura e recalque. Esses são aqueles que não nos movem para lugar algum, não nos fazem crescer, evoluir e que, normalmente, falam sobre colocar nos outros e no mundo responsabilidades que são, afinal, nossas. Porque embora não tenhamos controle sobre muitas coisas, ou sobre nada, temos uma tarefa eterna: assumir a responsabilidade pelas coisas que acontecem nas nossas vidas e tentar entender como podemos melhorar com elas. “Que lição posso tirar disso?” é uma pergunta que eu encorajo você a fazer sempre que a vida der aquela complicada.


Deixa ela

De uma mulher a sociedade espera coisas como ser gentil, falar baixo, não rir muito alto, não ser muito engraçada nem inteligente demais a ponto de chamar a atenção. Nossa qualidade mais valorizada é a de sermos agradáveis. Ignore a lista: seja o que quiser, como quiser. Sente de pernas abertas se assim desejar. Raspe a cabeça se um dia tiver vontade. Fale alto, seja desagradável quando necessário, não se deixe jamais interromper, não se deixe silenciar, não deixe que homens passem o dia explicando coisas que você compreende melhor do que eles.

Veja o mundo e a sociedade para além do que nos foi apresentado por homens brancos cis heteronormativos. Permita-se enxergar a vida elaborada também pelas lentes de feministas negras, de feministas lésbicas, de pessoas trans, de travestis, de prostitutas, de operárias. Ouças as arrebatadoras histórias que essas pessoas têm para contar e, a partir delas, construa o seu mundo.

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E não tenha medo. O medo, esse sentimento que paralisa e que é tão bem usado pelas instituições para que concordemos em sermos vigiados e controlados, não precisa ser entretido. O medo a gente sente e deixa ir, porque, se a gente se entrega a entretê-lo, ele fica maior e mais forte. E a verdade mesmo é que a vida não é para ser levada a sério. A vida é engraçada, só que, para que percebamos isso, ela exige da gente um certo tipo de humor, uma certa capacidade de aceitá-la em todos os seus mistérios, em todas as suas tristezas, em todas as suas surpresas. Haverá ainda muitas pelo caminho. Pessoas chegarão, pessoas partirão. E você renascerá muitas vezes.

Quem é você?

Escolher uma universidade ou, como eles dizem, “o que queremos ser na vida”, parece sempre ser uma ação definitiva, mas ela raramente é. O que queremos ser na vida não é determinado pela carreira, ou pela possibilidade de uma carreira. O que queremos ser na vida é determinado por aquilo que entendemos como valores e princípios.

““Que lição posso tirar disso?” é uma pergunta que eu encorajo você a fazer sempre que a vida der aquela complicada.
”

E a gente só define valores e princípios se pudermos frequentar um espaço que seja só nosso, um espaço de solidão, de silêncio e de reflexão, alheio ao noticiário, alheio ao barulho que nos ofusca os sentidos. É nesse espaço meditativo que vamos elaborar nossos afetos e entender para onde queremos destinar nossos recursos. A gente finalmente encontra aquilo pelo que viveremos quando percebemos aquilo pelo que morreríamos.

Quando você luta pelo que acha justo, quando topa se expor, você se permite ver sem máscaras. É assustador ficar nua e desprotegida no meio da multidão, mas a vida tem uma certa mania de premiar os justos e corajosos. Só que tem um truque: o tempo da vida não é o seu, não é o meu, não é o que esperamos. A vida possui um tempo próprio de revelar verdades e premiar os corajosos. Renda-se a esse ritmo; é o “seja feita a tua vontade”.

“O medo a gente sente e deixa ir, porque, se a gente se entrega a entretê-lo, ele fica maior e mais forte”
Milly Lacombe

O mundo aqui fora não anda muito bom, ou justo. Mas a vida segue valendo ser vivida. Nunca deixe de olhar em volta. Nunca deixe de enxergar o outro. Nunca deixe de perceber que só seremos livres quando todos forem livres. Estamos, seres vivos, natureza e universo, conectados de formas que talvez jamais possamos entender, apenas sentir.

Privilégio gera oportunidade, e oportunidade gera responsabilidade. Aproveite os anos que começam agora: você sairá deles uma mulher ainda maior e inundada da capacidade de mudar a sociedade. É assim, aliás, que sociedades mudam. Quando pessoas como você se nutrem de uma causa e, apaixonadamente, acreditam que podem fazer deste um planeta melhor, mais inclusivo, mais cheio de belezas e de feminino.

Eu amo e admiro muito você. Arrebenta, meu amor.  

Créditos

Imagem principal: Bel Andrade Lima

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