É possível ser feliz sem filhos? Temos, de fato, um relógio pulsando no útero? Tpm foi às fontes e investigou a natureza e a boataria em torno do desejo de ser mãe
O escritor e mitólogo Joseph Campbell tinha uma grande certeza em relação a nós, mulheres. Segundo ele, “a mulher afastou-se da terra, desconectou-se da própria natureza e passou a andar longe de sua essência. Para as sociedades primitivas, a mulher dá à luz assim como a terra faz brotar as plantas”. Campbell foi um grande sábio dos nossos tempos. Dedicou a existência a pesquisar a importância dos mitos e ritos entre vários povos, primitivos e modernos – e o caos provocado pela falta das grandes crenças no mundo de hoje. Olhando ao redor com os olhos do mitólogo americano [1904-1987], não é difícil enxergar uma baita confusão. Somos, de fato, a primeira geração das mil e uma escolhas. E até maternidade virou uma questão – ou uma das questões. Boa parte de nós não mais simplesmente tem filhos. Temos uma fila de coisas para resolver antes: ter uma profissão, fazer carreira, achar respostas na terapia, experimentar modelos de relação, fazer viagens transformadoras e, então, decidir se queremos – ou não – ser mãe.
Um pouco da nossa recente história ajuda a entender como chegamos até aqui, a essa abundância de escolhas. E também joga luz sobre perguntas que acompanham o recente poder de decidir parir – ou não: ser mãe é um instinto básico ou um comportamento social? Podemos ser felizes sem filhos? Por que cultivamos esse desejo, às vezes, visceral de reproduzir? E por que muitas de nós não sentem desejo algum de propagar a espécie? O começo dessa era dos questionamentos, pelo menos no Brasil, tem data – ou década – de aniversário: anos 60. Bem no comecinho da década chegou por aqui o livro O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir [1908-1986], a revolucionária amante do filósofo Jean Paul Sartre. Ela levantava a bandeira da liberdade. Para Beauvoir, a mulher tinha que se libertar economicamente – e filhos eram um entrave, uma pedra no caminho, uma responsabilidade que não dava para assumir sem abrir mão de conquistas urgentes. Não podemos esquecer que eram tempos de briga feia. E a escritora foi uma das precursoras do movimento que olhamos com certa preguiça, mas que mudou o nosso rumo, o feminismo.
Essa bíblia da mulher contemporânea sacudiu, então, o embrionário movimento feminista local. E começaram a pipocar programas de TV, revistas e trabalhos acadêmicos repensando o tal papel da mulher. “A grande questão era a liberdade. Em 1963, estreou na revista Cláudia a coluna da Carmem Silva, ‘A Arte de Ser Mulher’, que discutia novos caminhos. Nunca havia se falado de corpo, de gozo, de mercado de trabalho”, diz Mirian Goldenberg, antropóloga e professora da UFRJ. “Tudo fluiu para a mulher repensar a vida: os movimentos feministas, a psicanálise, a contracultura... E todas essas coisas só foram possíveis porque, depois da pílula, inventada no fim dos anos 50, podia-se controlar a maternidade. Podia-se ser ou não ser mãe.” E foi a partir desse revisionismo do comportamento, segundo a teoria – e, sem dúvida, a prática de todo santo dia –, que nós evoluímos para o que vivemos hoje, uma certa busca pelo “caminho do meio”, um conceito budista que se aplica, em cheio, à aspiração de nossa geração. Traduzindo, estamos correndo atrás da nossa essência, a mesma essência que Campbell lamenta termos perdido, só que com uma perspectiva dos nossos tempos: a de que a escolha é uma realidade. Inclusive a escolha de ser ou não ser mãe.
Biologia da história
A possibilidade de escolha da maternidade não é algo só do mundo racional – uma questão de independência. Claro. Tem a mãe natureza. Todos os meses o nosso corpo se prepara para gerar uma criança. O ciclo funcional da mulher é como um relógio infalível, que começa a marcar o tempo no primeiro dia de sangramento e termina – e recomeça – com o início da próxima menstruação. Nesse intervalo, os hormônios entram em ebulição para deixar a casa arrumada para receber um embrião. Só que a pilha do relógio vai enfraquecendo com o passar dos anos. Somos, pode-se dizer, cronometradas pelo nosso organismo. Quando nascemos, temos cerca de 2 milhões de células primordiais – ou futuros possíveis óvulos. A cada menstruação, jogamos fora cerca de 800 dessas células. Além da perda mensal, há o envelhecimento dessas células.
O preparo biológico para parir é inegável, mas não é conclusivo: por que algumas mulheres ouvem as badaladas? E por que outras são surdas a elas? A apresentadora de TV Sílvia Poppovic, 50 anos, jura que ouviu. Até os 40 anos, andava ocupada para pensar em maternidade, com a profissão e viagens pelo mundo. Com 44, casada há quatro com o médico Marcello Bronstein, entrou em depressão.“No Ano-Novo de 1999, nós estávamos no Havaí e fiquei triste. Percebi que faltava um filho para dar sentido a minha vida. Chorei toda a viagem e Marcello resolveu me apoiar”, conta. Seis meses depois, ela estava grávida, com a ajuda da reprodução assistida. “Muitas mulheres precisam trabalhar e a correria as transforma em heroínas sem identidade. Elas perdem a noção de quem são. Me sinto abençoada por ter percebido e ido atrás dessa intuição”, comenta. Já a jornalista Isabel Vasconcellos, 54 anos, casada há 22 anos, nunca ouviu relógio algum. Filha de uma família liberal, que sempre a incentivou a ir à luta, decidiu cedo que não seria mãe. “Quando casei, até me questionei: quero ter filhos? É importante para mim ter filhos? Concluí que não. Me completo com o meu trabalho, o meu marido, os meus amigos. Sou feliz”, diz.
Investimento materno
Não é consenso, nem na prática, como se vê, e muito menos na teoria, que preparo biológico e instinto materno sejam sinônimos. Da psicanálise à antropologia, da sociobiologia à etologia, há teses questionando o tal amor – incondicional – de mãe. A hipótese mais recente – e mais em moda – é que não existe instinto materno e, sim, investimento materno. Traduzindo, somos influenciadas pela cultura em que vivemos – e temos filhos e cuidamos deles baseadas em um raciocínio puramente matemático: custo e benefício. Uma das precursoras desse pensamento é a sociobióloga americana Sarah Blaffer Hrdy, da Universidade da Califórnia. Ela dedicou as 700 páginas do livro Mãe Natureza para provar a teoria de que as mulheres não amam instintivamente seus filhos. Segundo ela, o instinto materno, tal como o concebemos – uma determinação genética inevitável –, não é fato, mas boato. Para chegar à conclusão, ela vasculhou o comportamento de mães nas mais variadas espécies e culturas. E atestou um fato: mesmo que inconscientemente, somos mães quando há um equilíbrio entre nossas ambições e as demandas da maternidade.
As pesquisas da etóloga Rosana Suemi Tokumaru, doutora em psicologia experimental pela USP, seguem a mesma toada. “Temos uma he-rança biológica. Só que ela não vem sozinha. Essa herança acompanha o desenvolvimento da mulher dentro do grupo social”, explica. “A base do instinto é o preparo biológico associado à disponibilidade para o cuidado. E essa disponibilidade é modulada pelas condições sociais e culturais. Instinto não é absoluto.” Ou seja, não parimos somente para preservar a espécie. Parimos para dar satisfação para os nossos avós, pais, maridos, amigos – e quando cuidar não fere nossos projetos. No rol de argumentos de Tokumaru, não faltam exemplos para demonstrar que somos, digamos, produto do meio com útero. Entre as índias parakanãs, do sudeste do Pará, as mulheres matam suas crias quando lhes convêm. “Elas cometem infanticídio quando têm filhos seguidos e não podem cuidar, quando a criança nasce com deficiência e quando têm gêmeos. Na tribo, há a lenda de que uma alma não pode se dividir em dois corpos”, conta.
Soa cruel, bárbaro, coisa de mulher não civilizada. Mas nós também, segundo as teóricas da maternidade, não temos nossos filhos por um puro desejo de ser mãe – e não cuidamos dos bebês sem olhar o nosso lado. “A maternidade, em muitos casos, é um investimento na velhice. Na nossa sociedade, até certa idade, a mulher compete com o homem. Quando acorda, quer ter filhos. Não é um grito das entranhas. Por um lado, essa mulher teme perder a experiência que a mãe teve, a avó teve. Por outro, teme a solidão”, diz a psicanalista paulistana Verônica Mautner. “Não ser mãe ainda é um defeito social. A mulher se sente incapaz. Quando tento explorar a consciência do desejo, elas dizem que querem ter alguém para cuidar, amam o marido e querem dar um filho a ele, precisam de companhia...”, completa a psicóloga, especialista em reprodução assistida, Vera Maluf.
A moral da história parece simples: somos o resultado da associação da biologia e das exigências do mundo em que vivemos. E vivemos num mundo cheio de escolhas, sem papéis definidos. Então o jeito é cada uma abrir o seu caminho. A líder espiritual monja Coen, seguidora do zen-budismo, experimentou os dois lados da moeda. Aos 17 anos, foi mãe de Fábia, hoje com 41. Nos dois primeiros anos, não saiu de casa. “Vivi o paraíso. Amamentei até os 9 meses e sentia um prazer imenso”, conta. Quando Fábia fez 7 anos, Coen foi estudar na Inglaterra e ficou um ano e meio longe. “No avião, vomitei três vezes. Sentia um aperto”, lembra. A próxima separação foi de sete anos. “Fui trabalhar nos Estados Unidos e a gente se via só três meses por ano”, diz. Até que veio a separação – quase – definitiva. Monja Coen radicou-se no Japão para o aprendizado budista e só vinha ao Brasil por uma semana a cada dois anos. Foram 12 anos de distância. “A minha abdicação da maternidade foi paulatina. Eu me sentia partida. Mas sabia que a Fábia estava bem cuidada. E não adiantava estar ao lado dela e não estar presente. No budismo a gente aprende que o grande motor da infelicidade é a dualidade dos desejos”, diz. Trocando em miúdos, o sofrimento é querer tudo ao mesmo tempo. É não saber escolher.