Laura Carvalho lança livro sobre a economia da crise
Sem futurologia, a economista carioca reflete sobre o momento atual e suas consequências: "Não há razões para esperar que esse mundo pós-pandemia vá ser mais justo"
A carioca Laura Carvalho é uma voz potente entre os economistas brasileiros. Depois do sucesso de seu primeiro livro, Valsa brasileira: do boom ao caos econômico, ela lança agora Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado, em que reflete sobre as possíveis consequências da pandemia para a compreensão do papel do Estado no Brasil.
Lançado pela editora Todavia, o livro é um e-book e integra a Coleção 2020 — Ensaios sobre a pandemia, que reúne textos de pensadores brasileiros sobre o momento. Devem sair ainda novos títulos da arquiteta e urbanista Joice Berth, da psicanalista Maria Homem, do escritor Ricardo Terto e do jornalista Guga Chacra, entre outros.
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Sem futurologia, Laura oferece uma reflexão necessária sobre o momento que estamos enfrentando – e o que ainda está por vir. "Não há razões para esperar que esse mundo pós-pandemia vá ser mais justo", diz. Trocamos uma ideia com a economista sobre o confuso cenário político e econômico do Brasil e separamos um trecho exclusivo do livro, se liga:
Tpm. Qual o desafio de escrever sobre uma crise enquanto ela acontece?
Laura Carvalho. Aceitei o desafio de escrever sobre o presente sem querer fazer interpretações definitivas e muito menos exercícios de futurologia. Busquei pensar sobre o que a pandemia tem nos mostrado sobre as desigualdades e carências históricas que o Brasil não resolveu. A ideia do livro é mais mostrar essa perspectiva do papel do Estado do que realmente tratar da conjuntura atual. Não ficar apenas na interpretação da realidade e sim construir um projeto. Quais instrumentos foram importantes agora? Quais estavam faltando? O que ficou claro que é importante? Pra onde a gente deveria estar destinando mais recursos? A organização do livro foi essa, e também a de partir da história contemporânea para ensinar conceitos de economia.
E quais são os papéis do Estado que você considera importantes? Primeiro o papel do Estado como estabilizador da economia. Todas as crises econômicas ajudam a mostrar que o setor privado, quando entra em crise, assume posturas defensivas e é o Estado que consegue gastar e se endividar para evitar um colapso maior. O segundo é o papel como investidor na infraestrutura do país – aí o exemplo que essa pandemia traz bem claro é o do saneamento básico. Temos carências evidentes que fazem com que famílias inteiras não tenham acesso à água e esgoto. Fora as questões de moradia e de transporte público, que ajudam na disseminação do vírus nas periferias. O terceiro papel é o de protetor dos mais vulneráveis, proteção social. E aí o exemplo é o auxílio emergencial. A pandemia mostrou uma massa de trabalhadores em situação de vulnerabilidade extrema, com renda volátil e empregos informais. Vários elementos mostram que a gente precisa pensar em um sistema de proteção de renda básica. Outro papel do Estado é o de prestador de serviço. E o SUS é o exemplo que está sendo valorizado. Mas a gente viu lacunas de desigualdade regionais muito fortes em relação ao acesso ao serviço. O último é o estado empreendedor, que envolve o desenvolvimento tecnológico e científico. A pandemia mostrou que não temos capacidade de produzir os insumos médicos necessários.
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Você acha que a pandemia terá como efeito uma crise no neoliberalismo? A crise de 2008 já tinha começado a questionar a ideia neoliberal dos mercados autorregulados, que predomina desde os anos 80. Essa pandemia acelera essa crise do neoliberalismo, sem dúvida. Tratar da volta do Estado tem a ver com isso. As respostas que os países estão dando mostram uma ruptura com a tradição de considerar que o setor privado sozinho vai fazer a melhor alocação dos recursos para a sociedade.
Por que o título do livro é Curto-circuito? Ele tem duplo sentido. O curto-circuito macroeconômico, quebrando o elo entre produtores e consumidores, mas também o curto-circuito que isso provocou no bolsonarismo e nesse pilar do Estado mínimo e do fundamentalismo de mercado, que contribuiu para eleger o Bolsonaro. A crise exigiu desse governo uma atuação que rompeu com a estratégia anterior. O Estado entrou gastando e se endividará para isso. Foi um certo revés para o governo, que foi pego no contrapé e agora talvez tenha dificuldade de cortar as medidas, como o auxílio emergencial, que pode ser mantido e dar origem a um programa mais amplo de transferência de renda. O custo político de retirar esses estímulos é muito alto.
Como você imagina a realidade econômica depois da pandemia? Não há razões para esperar que esse mundo pós-pandemia vá ser mais justo. A gente vai ver mais desigualdade. Sobre mercado de trabalho, está evidente que tendências como a "uberização" devem ser fortalecer. Essas plataformas estão regendo e organizando o trabalho sem direito nenhum, com jornadas muito acima do que seria digno e pagamentos indignos. O trabalho remoto, que agora tantas empresas entenderam que é viável, também pode precarizar relações trabalhistas via "pejotização" e quebra de elos entre empregadores e empregados, que antes eram mais sólidos. Surge a demanda de pensar formas de como proteger os trabalhadores. Inclusive a renda básica universal é uma das maneiras de fazer isso, dar um piso de renda que garanta a sobrevivência pros trabalhadores, para que eles ganhem algum poder de negociação e possam não aceitar as condições indignas.
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Ao lado de outros pensadores, você escreveu um artigo sobre o fascismo à brasileira. O que isso significa? Dá para buscar diferenças e semelhanças do momento atual com o fascismo que já experimentamos no Brasil e já compreendemos de alguma maneira na história. O Movimento Integralista, dos anos 30, que é consensualmente definido como fascismo, tem diferenças em relação ao fascismo europeu, mas tinha um discurso estatista que atribuía grande papel ao Estado. Mas o bolsonarismo é distinto por ter esse pilar do neoliberalismo acoplado. Será que é viável um fascismo que não tenha esse nacionalismo econômico, que inclusive se sujeite a interesses norte-americanos, como é o caso da política externa brasileira hoje? A resposta que a gente oferece é que não há nenhuma contradição nisso, o fascismo é compreendido a partir de seus contextos históricas. O Mussolini, nos anos 20, começa com um ministro da Fazenda liberal, que fez rodadas de privatizações e abertura comercial, medidas defendidas hoje pelo Paulo Guedes. Depois, nos anos 30, com a grande depressão, o governo começa a ter uma interferência maior. Esses processos são dinâmicos e a gente não sabe pra onde o bolsonarismo vai em relação à política econômica. Muitos apostam em uma guinada, com um papel maior dos militares nos próximos anos nesse setor. Esse tipo de movimento, que é movido a paixões de uma base fiel, não costuma ser tão preciosista no conteúdo e na ideologia. Há uma importância maior para a forma, para a conquista da base a partir da construção de inimigos internos. Não necessariamente o fundamentalismo de mercado do Guedes seja essencial ao projeto autoritário do governo Bolsonaro. Pode haver a decisão de abandonar esse pilar, caso se julgue que a construção de um apelo popular com políticas de transferência de renda mais ampla sirva ao projeto.
Leia um trecho do livro:
"A pandemia que se abateu sobre os diferentes países do mundo no início do ano de 2020 trouxe consequências inéditas para a economia global. Ao contrário das crises de 1929 e 2008, o colapso econômico de 2020 não é fruto do contágio da economia real por uma crise originada no setor financeiro, mas do contágio da economia real por uma crise de saúde pública ou, simples assim, do contágio por um vírus.
Pandemias anteriores de alta gravidade tampouco têm efeitos comparáveis, na medida em que se deram em um mundo muito menos globalizado, com menor integração comercial e financeira entre os países. Assim, em meio ao que deve tornar se a maior queda da história do PIB mundial, o debate econômico foi chacoalhado como em poucas ocasiões anteriores. Em particular, temas e questionamentos ao modo como o sistema capitalista tem sido administrado desde os anos 1980, que já vinham sendo trazidos à tona desde a crise financeira global de 2008-9, ganharam uma concretude trágica.
Sobram evidências de que a pandemia não é tão democrática quanto muitos gostam de fazer parecer. Sim, ela está prejudicando a vida de todos, mas os mais pobres sofrem muito mais os seus impactos na saúde e na economia. No caso da gripe espanhola, uma pesquisa publicada na revista médica The Lancet sugere que as taxas de mortalidade foram até trinta vezes maiores em regiões mais pobres. A pandemia de 2009 do H1N1 não foi tão diferente: um estudo de 2013 apontou uma taxa de mortalidade vinte vezes maior em países da América do Sul que na Europa, por exemplo. Ou seja, os países com a menor dotação de recursos para enfrentar a crise atual, sobretudo se levarmos em conta a enorme fuga de capitais para países ricos em meio à incerteza nos mercados financeiros, sofrem os efeitos mais devastadores da pandemia.
Mas não são apenas as desigualdades globais que se tornam visíveis a olho nu. Dentro de cada país, os mais vulneráveis também estão mais sujeitos aos impactos da crise econômica e de saúde pública. Um estudo publicado em maio de 2020 por pesquisadores do FMI analisou os dados de 175 países de cinco pandemias anteriores — Sars (2003), H1N1 (2009), Mers (2012), Ebola (2014) e Zika (2016) — e estimou um aumento de quase 1,5% na desigualdade medida pelo índice de Gini nos cinco anos que sucedem esses episódios.
Além da perda de renda e trabalho, a base da pirâmide social, que no Brasil tem uma nítida dimensão racial e de gênero, está mais sujeita à contaminação e a desenvolver casos mais graves da infecção por Covid-19. Isso porque o risco de contaminação é maior pelo número de pessoas que dividem o mesmo dormitório, pelo uso de transporte público, pela falta de saneamento básico e pela dificuldade de manter o isolamento sem reduzir sua renda para abaixo do nível mínimo de subsistência. Já a gravidade dos casos e, portanto, a probabilidade de óbito dependem da existência de comorbidades (doenças crônicas associadas) e do acesso à saúde. No Brasil, a proporção de pessoas com comorbidades associadas à Covid-19 aumenta significativamente entre os menos escolarizados (54% para quem só frequentou o ensino fundamental, ante 34% para quem frequentou o ensino superior) e o número de leitos de UTI no SUS é quase cinco vezes menor do que na rede privada.
Nesse contexto, a valorização súbita dos sistemas públicos de saúde, das redes de proteção social, das políticas de desenvolvimento produtivo e tecnológico e, de forma geral, do papel do Estado na alocação dos recursos da sociedade tem levado alguns analistas a considerar essa crise como um golpe fatal no neoliberalismo ou, quem sabe, no próprio capitalismo. Para muitos, a trágica pandemia ajudaria a parir um belo mundo novo, bem mais justo e sustentável. No entanto, as desigualdades exacerbadas pela crise, os patamares mais elevados de dívida pública deixados como herança pelo seu combate e o fortalecimento de tendências ao autoritarismo e ao nacionalismo apresentam-se como obstáculos vistosos para uma transformação social significativa.
Nesse sentido, o caso brasileiro é singular. Primeiro, por- que a pandemia se abateu sobre uma economia que nem sequer havia se recuperado da recessão de 2015-6. Pior. A semiestagnação da renda entre 2017 e 2019 já era por natureza desigualitária: enquanto os mais pobres ainda sofriam queda em seus rendimentos, o meio e o topo da pirâmide recuperavam-se muito lentamente. Segundo, porque a crise é gerida por uma equipe econômica adepta de uma ideologia anacrônica de Estado mínimo e um presidente contrário às evidências científicas. Aqui, uma falsa oposição entre morte física e morte econômica embasou uma resposta inadequada em ambos os campos.
É verdade que, como avaliou o jornal britânico Financial Times em reportagem sobre o Brasil publicada em 28 de abril, o Ministério da Economia foi “forçado a reconciliar sua identidade ‘Chicago Boy’ de livre mercado com a necessidade de vultosa intervenção governamental”. Medidas fiscais substantivas foram adotadas — ou enfiadas goela abaixo pelo Congresso —, provocando um curto-circuito no bolsonarismo. Mas a resposta adequada a uma crise como esta não exige apenas relaxar regras orçamentárias em meio à calamidade, e sim repensar o próprio papel do Estado na sociedade e na economia para superar carências históricas que a pandemia tornou cristalinas.
Neste breve livro, escrito em meio ao turbilhão de uma crise sanitária, social e econômica com consequências ainda nebulosas, o objetivo é apresentar, à luz do contexto brasileiro, cinco funções do Estado que a pandemia ajudou a revelar. São elas: estabilizador da economia, investidor em infraestrutura física e social, protetor dos mais vulneráveis, provedor de serviços à população e, por fim, empreendedor. Tais funções estão inter-relacionadas e certamente não exaurem as atribuições do Estado em sociedades democráticas, mas servem de ponto de partida tanto para a análise de nossas lacunas e desigualdades estruturais, quanto para a formulação de uma agenda econômica para o curto e o longo prazo no Brasil."
Créditos
Imagem principal: Felipe Felizardo