por Nathalia Zaccaro

Ketty Valêncio inaugurou a livraria Africanidades, em que vende apenas livros escritos por autores negros

As mais antigas lembranças de Ketty Valêncio remontam sua primeira infância. Quando pequena, deitada na cama, ouvia sua mãe ler histórias das yabás, as orixás femininas. Tradição se mantendo viva via história oral. Apesar de amar as narrativas e personagens, ela não tinha muitos livros naquela época. Edições escritas ou protagonizadas por negros eram ainda mais raras. Mesmo assim, Ketty alimentou seu fascínio pela literatura e, com 18 anos, optou por cursar biblioteconomia. “Trabalhei por anos em bibliotecas universitárias e escolares e percebia que os poucos livros de autores negros que existiam ali simplesmente não eram lidos. Não eram reconhecidos nem valorizados”, relembra.

A vontade de fazer circularem livros de autoras como Angela Davis, Maria Firmina dos Reis e Jarid Arraes, só para citar algumas, fez Ketty agir. Ela fez um MBA na Fundação Getulio Vargas, aprendeu sobre empreendedorismo e bolou seu plano de negócios. “A literatura negra é invisibilizada como recorte e vi que existia ali um nicho de mercado”, conta.

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Em 2014, ela lançou a Africanidades, uma livraria virtual só com autores negros com a missão de “promover o resgate e a valorização das identidades negras brasileiras, africanas e também das mulheres através do universo dos livros e da cultura”. “Deu muito certo e comecei a participar de feiras e eventos. Percebi que o corpo a corpo, olho no olho, era fundamental. Pessoalmente dá para trocar mais informação, atingir mais gente. Gente que nunca pensou no assunto passa a se interessar pelo universo”, diz.

Como Ketty não é de deixar pra lá o que tem vontade de fazer, no último dia 9 ela inaugurou a primeira unidade física da Africanidades, na Rua Aimberê, em Perdizes, São Paulo. O primeiro dia teve sarau, cortejo de um grupo de coco, bate-papo e lançamento do romance Bará – na trilha do vento, da escritora Miriam Alves. “A ideia é que seja um espaço colaborativo para mulheres negras empreendedoras”, conta.

A Africanidades tem um acervo de 100 títulos que segue crescendo. “Estou sempre ligada em lançamentos, comprando novos livros. É um lance de poder, de escolha. Eu filtro a informação que vendo. Em grandes livrarias e editoras, quem faz esse trabalho faz a partir de um prisma de homens brancos heteronormativos e eu faço diferente”, diz.

O maior prazer de Ketty é garimpar autores desconhecidos, que até então não tinham caminhos para divulgar seus trabalhos. “Para mim, quanto mais anônimo for o autor, melhor. Minha linha é a do menos popular. É essa literatura que quero vender”, diz.  “Vou a saraus, eventos, vivo perguntando quem conhece quem. E, recentemente, muitos autores passaram a me procurar. Me sinto honrada quando isso acontece ”.

Um dos últimos achados de Ketty é a poeta Patricia Naia, radicada em Recife. “Ela tem uma poesia erótica escrita por uma mulher preta e lésbica. Faz os livros manualmente, grafita cada capa. É um trabalho lindo que acho que vai fazer muito barulho”, acredita. Ela lançou em 2017 seu primeiro livro, O Punho Fechado no Fio da Navalha, e escreve também no blog Legítima Defesa.  Outra dica de Ketty é a obra de Dinéia Pires-Santos. Teóloga nascida no interior da Bahia, ela lançou Na Cor da Pele, livro-desabafo definido como uma experiência que transcende as diferenças de cor que tanto marcaram nossa história.

Seguimos os sábios conselhos de Ketty e selecionamos três poemas publicados no blog da Patrícia. Se liga:

[ notas sobre uma transa de quarta-feira ]

bebi o fel dos olhos dela
mordi meus lábios
Tive sensação de estar entregue , que culminou num riso desconcertado.
Desenhei arrecifes ao redor da sua cintura
Amarrei os seus cabelos no meu pulso, para não deixá-la sair.
E entramos em nós, uma invasão consentida e abençoada pelos deuses.
Nossos corpos ficaram ao avesso:
Sangue, pele, vísceras,
nervos, veias, osso,
saliva.

[ amor vandal ]

vândalo, amor
duas mulheres,
ela e ela 
juntas, soltas
bruxas, loucas
em verbo: luta. 
amor é quando 
a gente 
põe fogo na estrada 
e faz barricada na porta da confusão.
afeto não precisa 
de mandato
explode no peito 
feito bomba
de efeito que não fere nem mata
que não é de moral,
mas é de respeito
amor, aqui, meu filho
é um pixo no muro com tinta preta

[ m. m. ]

sei que você quer dançar comigo,
posso manter segredo,
mas preciso dizer
que estou fascinada
pelo teu olhar amedrontado
atravessando as avenidas,
pelas tuas mãos frias em meu rosto
pela tua boca entre aberta 
no milésimo de segundo antes do riso
pelo fio inquieto do teu cabelo na testa,
teu vale
e tua me fascinam.
e eu sempre soube dessa dança
dessa música 
tocando no silêncio dos nossos encontros.
preciso dizer que
é muito bom falar contigo,
sobre arquitetura, saúde,
músicas novas,
sobre a cidade,
sobre pessoas que nunca vimos,
sobre as problemáticas que já existem
nos problemas corriqueiros,
você é muito boa para mim. 
te quero, não para assistir a TV  no domingo,
para escolher o café,
a romã
e pedalar procurando sombras
o que são kms de distância perto 
desse esboço imperfeito
daquilo que somos tão próximos
aqui?

Créditos

Imagem principal: Divulgação

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