Elas escrevem sobre mulheres

por Camila Eiroa

Três autoras brasileiras falam sobre seus livros, as dificuldades para as mulheres na literatura e no feminismo

Para escrever sobre mulheres, basta uma caneta e um papel. Ou um computador. Simples, não é? Então por que é tão difícil encontrar a história de mulheres importantes nas prateleiras de livrarias? Será que os resultados do Google escondem que grandes feitos foram feitos por mulheres? Mas que mulheres são essas? Se muitas daquelas que tiveram papel importante para a história foram invisibilizadas, assim como a importância do feminismo para a construção da sociedade que conhecemos hoje, algumas brasileiras estão lutando para quebrar essa realidade. É o caso de Jarid Arraes, Débora Thomé, Angélica Kalil e Mariamma Fonseca.

O que elas têm em comum são os livros que publicaram. Jarid retratou a vida de heroínas negras em cordéis e fez tanto sucesso que juntou 15 deles no Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, ilustrado por Gabriela Pires e lançado em junho deste ano. Já Débora optou por retratar mulheres brasileiras dos mais variados mundos com linguagem leve, dedicada ao público infantil. Seu livro, 50 brasileiras incríveis para conhecer antes de crescer, tem ilustrações coloridas e pequenas biografias, de Carolina Maria de Jesus e Dandara a Fernanda Montenegro.

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Por fim, Angélica (que dirigiu) e Mariamma (que ilustrou) resolveram abrir uma campanha de financiamento coletivo para publicar entrevistas de um canal do YouTube mantido por elas, o Você é feminista e não sabe. Afinal, precisamos entender a palavra sem o estigma negativo que existe. São conversas com diversas mulheres que falam sobre o feminismo em contextos políticos e sociais. Laerte, Djamila Ribeiro e Manuela D'ávila são algumas das entrevistadas.

Conversamos com as três autoras sobre as dificuldades e impactos positivos de seus livros. Leia abaixo:

Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis

A escritora cearense Jarid Arraes diz, na lata: "Tudo o que eu escrever será feminista, porque eu sou feminista". Para ela, toda literatura é política, e seu trabalho não é diferente. Foi através de cordéis que retratou a vida de 15 mulheres negras que transformaram a história e foram duramente invisibilizadas. Antes de virar livro, Jarid vendia as narrativas das Heroínas negras brasileiras em cordéis avulsos e, segundo ela, vendeu aproximadamente 20 mil exemplares em dois anos. "As pessoas queriam ler essas histórias, porque elas importam", conta. Hoje seu livro, editado pela Pólen Livros, é adotado inclusive em salas de aula.

Qual a dificuldade de ser uma mulher publicando um livro com temática feminina? Sempre acompanho os lançamentos das grandes editoras nacionais e, para cada dez livros publicados no mês, oito são de autores homens enquanto apenas dois são de mulheres. Muitas vezes não são mulheres brasileiras. A dificuldade está na lógica do mercado.

No seu caso, o foco do livro são mulheres negras. Aumenta a dificuldade? O fato de serem mulheres negras protagonistas — e uma mulher negra escritora — com certeza levanta dificuldades extras. Se você olhar a proporção de mulheres negras publicadas pelas editoras, convidadas para eventos literários ou premiadas, a situação fica muito gritante. É por isso que sou tão assertiva quando falo da discriminação que existe no mercado editorial. Precisamos acertar isso em em cheio.

O que falta para as mulheres na literatura? Faltam oportunidades iguais. Falta equidade, falta que a gente seja vista e respeitada como os homens são. Falta que o assédio de escritores e editores contra mulheres que escrevem, editam e trabalham com livros seja reconhecido e combatido. Falta que a gente seja considerada escritora, artista, que nossa obra seja considerada literatura humana, total, e não um nicho.

E quais são os presentes de ver concretizado um livro como o seu? O meu maior orgulho é ver meu livro sendo adotado por escolas, chegando até pessoas que não conheciam nenhuma dessas heroínas. Isso traz uma transformação que me contagia, sabe? O que eu queria era ajudar a reconhecer essas heroínas, porque eu não tive acesso a essas histórias. Se tivesse conhecido antes, muita coisa poderia ter sido diferente na minha vida, no meu processo de reconhecimento como mulher negra e como escritora. É emocionante perceber que meu livro tem contribuído nisso para tanta gente. Sou muito consciente do papel político que existe na minha literatura.

Você é feminista e não sabe

Quem tem medo da palavra feminismo? Em 2015 surgiu, no YouTube, o canal Você é feminista e não sabe. Feito sem recursos, mas com muito afeto — segundo as criadoras Angélica Kalil e Mariamma Fonseca — o projeto reúne entrevistas em vídeo com o feminismo sendo abordado por diversas mulheres através de temáticas como o feminismo e a psicanálise, os direitos humanos, a mulher negra, a violência doméstica, maternidade, mulher lésbica e até mitologia. O objetivo é tirar a carga negativa que a palavra feminismo ainda tem para muitas pessoas. O canal acaba de virar um livro ilustrado que reúne 15 entrevistas e foi viabilizado através de campanha no Catarse. Como conteúdo extra, como biografias e textos de apoio, são cerca de 120 páginas, com mais de 60 ilustrações.

Qual a dificuldade de ser uma mulher publicando um livro com temática feminina? Tudo que é da ordem da mulher e do feminino é visto como menor. Para viabilizar projetos — não apenas na área da literatura, mas em qualquer campo — parece que sempre paira um sentido de desimportância em relação aos temas dos quais queremos falar. E quando o projeto é feminista, ou seja, se propõe a repensar o lugar de gênero destinado à mulher, passa a gerar um desconforto maior ainda por parte de quem pode viabilizá-lo.

Como foi conseguir bater a meta no Catarse para concretizar o livro? Foi muito emocionante, pois atingimos o valor total do projeto apenas com apoios de pessoas físicas, em sua grande maioria mulheres. Como já prevíamos, não tivemos nenhum apoio empresarial, apesar de termos tentado bastante. Por termos o feminismo já no título, intuímos que só conseguiríamos os recursos necessários através de financiamento coletivo. E foi o que aconteceu.

O que falta para as mulheres na literatura? Para as mulheres, não falta nada. Falta, como em todas as áreas, que sejamos levadas em consideração. Que nossos discursos não sejam menosprezados.

Muita gente é feminista sem saber? Sim. Em um mundo regido pelo poder do masculino sobre o feminino é natural que se evite o contato com o significado desta palavra, que vem acompanhada de uma carga muito negativa. Mas, quando a gente entende o que significa o feminismo, fica claro que sem ele é impossível caminhar em direção a uma cultura menos violenta.

50 brasileiras incríveis para conhecer antes de crescer

Com linguagem simples, ilustrações coloridas — todas feitas por mulheres — e personagens que marcaram a história mas nem sempre são conhecidas, o 50 brasileiras é quase uma enciclopédia. Débora Thomé, autora do livro, reuniu 50 mulheres famosas e não famosas que transformaram a arte, a ciência, a tecnologia e muito mais com uma leitura especialmente pensada e dedicada ao público infantil. Entre elas, estão Pagu, Maria Carolina de Jesus, Nise da Silveira, a jogadora Marta e até Roussef. Para a autora, é importante falar com as crianças para conseguir quebrar os estereótipos de gênero que são impostos enquanto sociedade. "Eu gosto muito de estabelecer as pontes, por isso quis escrever sobre mulheres fortes. Nem todas que estão lá são feministas", conta.

Qual a dificuldade de ser uma mulher publicando um livro com temática feminina? O maior problema está na recepção do livro, sempre. Estamos tão acostumados com livros de homens falando sobre homens que as mulheres também podem ler, que não damos tanta atenção para livros feitos por e sobre as mulheres. Quando falo do meu livro, sempre preciso explicar que ele também é um livro para meninos, não apenas para meninas. De alguma maneira as pessoas recebem o livro e pensam: “Ah, é pra menina!”. Eu quero que os rapazes também leiam! Não é um nicho. A mulher é sempre o outro do homem.

Por que falar sobre essas mulheres para o público infantil? A ideia de você fazer um livro para crianças é tentar transformar, desde muito cedo, a certeza de que mulheres têm por destino casar, ter filhos e ter uma função secundária, sem um papel relevante na construção da sociedade. O que se entende através da história é que a mulher tem um papel doméstico e que o espaço de fora pertencia ao homem, por isso é importante mostrar que existiam e existem muitas mulheres na sociedade que interferem na história. Ensinar as meninas que elas podem ser e estar onde quiserem. São as princesas com as quais eu sonhei.

O que falta para as mulheres na literatura? Eu estou acabando de chegar na literatura, esse é o meu terceiro livro. Mas o que eu observo é que a gente precisa pensar nas autoras. O que falta não são as mulheres produzindo, elas estão produzindo muita coisa boa no mundo todo, mas as editoras precisam reconhecer e pagar semelhante ao que pagam para os homens. No Brasil isso é muito complicado porque nosso mercado é muito pequeno, mas é preciso pensar em ter um maior reconhecimento para as mulheres.

E quais são os presentes de ver concretizado um livro como o seu? Pessoalmente, eu tinha o sonho de escrever desde muito nova. Quando eu vi o livro pronto, foi um encontro comigo. Já pelo público estou sendo surpreendida pelos adultos. Muitas mães têm vindo até mim dizendo que querem ler para os filhos meninos, inclusive, para que eles possam conversar e ter o que trocar com as meninas. Os pais, na verdade, não chegam até o livro como as mães. Com as crianças, percebo que elas ficam muito comovidas pelo esporte e por personagens históricos também. Tem a surpresa delas conhecerem as mulheres que estão no livro e se identificarem. Quando você vê que o seu livro causa esse tipo de reflexão, sobre um assunto tão importante, mesmo que de forma muito sutil e delicada, é um sonho.

Créditos

Imagem principal: Laura Athayde

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