Cientista brasileira contra o universo cor de rosa em que vivem as meninas
Astrofísica da Nasa, Duília de Mello, de 50 anos, declarou guerra às princesas. Ela quer mostrar às crianças que há uma infinidade de carreiras pouco exploradas e estimuladas que podem ser seguidas, principalmente, pelas meninas.
Nascida em Jundiaí, no interior de São Paulo, e criada no subúrbio de Brás de Pina, no Rio, a cientista acaba de lançar na internet, em inglês e português, o livro infantil As aventuras de Pedro, uma pedra espacial. No ano passado, ela criou a ONG Mulher das Estrelas, com o objetivo de disponibilizar em escolas brasileiras uma rede de mentores de especialidades como física, robótica e matemática.
Duília trabalha há 13 anos na Nasa, desde que foi cursar o pós-doutorado no Instituto do Telescópio Espacial Hubble. Ela é pesquisadora do Goddard Space Flight Center (que gerencia as comunicações com os astronautas da Estação Espacial Internacional) e especialista na análise de imagens do Hubble. Atualmente, estuda registros das profundezas do Universo para encontrar pistas sobre a formação da Via Láctea.
A cientista foi responsável pela descoberta da supernova SN 1997D e participou também da detecção das ‘bolhas azuis’ – como são chamadas as estrelas solitárias, que não têm galáxias. Há três anos, ela foi escolhida como uma das dez mulheres que mudaram o Brasil no ranking elaborado pela Barnard College, da Universidade de Columbia, nos EUA.
Nesta entrevista, feita por Skype, dos Estados Unidos, onde vive, Duília fala sobre a carreira de cientista da Nasa, feminismo e princesas: “Elas são umas inúteis.”
Existe assédio sexual na ciência? Sim, claro. A gente sempre alerta as meninas mais jovens sobre isso e elas sempre acham que é coisa da geração passada. Até que acontece com elas. Recentemente, tivemos vários casos reportados na mídia americana e os homens que cometeram assédio foram demitidos ou afastados. Infelizmente estes são apenas os casos que saíram na mídia, mas existem muitos outros que não saem. Nós fazemos treinamento todos os anos na Nasa e na Universidade (Católica da América, onde dá aulas) para saber como lidar com o problema de assédio no ambiente de trabalho e como reportar para os superiores.
O ambiente hoje na ciência ainda é predominantemente masculino? Na universidade somos 11 professores no departamento de Física e apenas duas mulheres. Na Nasa, o número é bem maior. No Goddard Space Flight Center são 10 mil empregados. Mas, de contato direto, tenho 20 colaboradores, dos quais 12 são homens e oito são mulheres. E minhas estudantes de doutorado são mulheres: Amy e Heather.
Em que você está trabalhando agora? Faço parte da equipe que analisa imagens das profundezas do Universo tiradas pelo Telescópio Espacial Hubble. Com essas imagens, estamos procurando por evidências que nos ensinem como a nossa galáxia, a Via Láctea, se formou. Além disso, também trabalho com galáxias em processo de colisão e estou investigando como essas colisões afetam a evolução das galáxias.
Você estudou astronomia no Brasil nos anos 80. Teve algum problema com essa escolha pelo fato de ser mulher? Olha, nem pensei nesse assunto quando optei por astronomia. Eu era boa aluna e achava que seria capaz de superar qualquer barreira. Na minha turma eram mais homens, claro, mas tinham mulheres também. E tínhamos muitas professoras mulheres. Na pós foi a mesma coisa, minha orientadora era mulher. No doutorado na USP havia várias mulheres. Vou te dizer que foi só quando saí do Brasil que comecei a notar a que a participação de homens e mulheres na astronomia era desproporcional.
Em que momento você percebeu isso? Eu estava estudando nos Estados Unidos e fui ao Observatório Europeu, no Chile, o maior do mundo. E, quando entrei no refeitório, tinha umas 100 pessoas sentadas, todas elas eram homens. Não havia nenhuma mulher, só eu. Hoje melhorou, claro, 40% são mulheres.
Mas por que você só foi notar isso no exterior e não no Brasil, que é tradicionalmente um país mais machista? Acho que a questão não é essa. O problema é que muitas mulheres entram na profissão, mas não necessariamente seguem adiante. E quanto mais adiante você vai, tem menos mulheres. Elas entram na faculdade, fazem pós, mas não seguem carreira. Ou elas até seguem, mas não passam pelas promoções. Então, vai ficando desproporcional.
A questão dos países latinos, de tradição mais machista, não é necessariamente um entrave? Curiosamente, as mulheres dos países latinos – e aí estou incluindo também Espanha, Itália e França, não apenas da América Latina – conseguem ir mais adiante na carreira. Elas têm muito mais apoio da família. Têm uma rede de apoio que envolve avós, tios, a família toda. Mesmo na América Latina, elas têm creches, babás, elas terceirizam. Isso não acontece nos Estados Unidos ou nos países nórdicos. Lá, o que ocorre muito é que as mães trabalharem meio período, por exemplo. E não dá para ser cientista meio período. É um trabalho de tempo integral.
Mas, os países nórdicos não são os mais feministas? E não têm uma rede de apoio muito maior, com licença maternidade longa, boas creches e escolas? Pois é. E, mesmo assim, o país que tem a menor proporção de mulheres cientistas é a Suécia. Já discuti muito com as suecas por causa disso. Sabe, o meu marido, o Tom, é sueco e eu morei lá três anos. Elas têm um ano de licença maternidade; tempo que podem dividir com o marido. E eles dividem mesmo. Depois têm creches ótimas. Mas, o que elas dizem é que elas não fazem ciência porque não querem, não gostam. Eu acho que não é bem isso. Acho que, no fundo, elas sabem que lá na frente as condições não serão muito favoráveis. Enfim, existem questões regionais também a serem levadas em conta. O fato é que em todo país do mundo ser cientista é visto ainda como coisa de menino.
É possível lutar contra as princesas? Muitos pais dizem que é impossível derrotá-las, que é muito difícil dar outros exemplos às filhas mulheres... Eu culpo a Disney (risos). Sério, as meninas são bombardeadas o tempo todo com essas princesas. Ficam usando as roupas das princesas. A Disney propaga essa imagem. E a princesa, na verdade, é uma inútil que fica esperando ser salva pelo príncipe. Já há algumas iniciativas legais, como as da Mattel e da Lego (que criaram bonecas cientistas). Mas acho que o mais importante é deixar a criança escolher e, sobretudo, seguir o talento dela. Porque elas podem fazer tudo o que quiserem, desde que tenham talento para aquilo. Então, a pessoa não pode ser astronauta se não gostar de matemática. Acho que primeira pergunta que deve ser feita à criança é: do que você gosta? Elas precisam conhecer as coisas para saber do que gostam.
Esse é o objetivo da sua ONG Mulher das Estrelas, certo? Mostrar mais alternativas às crianças. Sim, para que cada vez mais crianças consigam superar as adversidades e se interessar por carreiras científicas, criei no ano passado a ONG, reunindo uma rede de mentores de diferentes especialidades, como física, matemática e robótica. Já temos 20 profissionais nos ajudando. A ideia é estimular a criação de clube de ciências e competições científicas entre as escolas, com curadoria à distância desses especialistas. Quero poder ajudar as crianças que não tiveram tanta sorte quanto eu.
E foi por isso também que você resolveu escrever um livro infantil? O filho de uma amiga minha cientista fez um ano e resolvi dar um livro de presente. Aí, fui a uma livraria e vi que não tinha nada muito interessante. Acabei comprando um livro sobre uma baleia. Mas fiquei com isso na cabeça. E resolvi escrever. Meu livro já está disponível na internet, de graça, em português e inglês. O protagonista é o Pedro, um meteorito brasileiro, que vive na minha estante. E ele vai mostrar para a Pedrita, que é uma pedra do Deserto do Atacama, o Sistema Solar. O livro traz também a mensagem de que tudo bem ser diferente, já que o Pedro é uma pedra espacial, não terrestre.
Você não teve filhos por conta da carreira em tempo integral? Não. Na verdade, eu não posso ter filhos. Mas não ter filhos não é a regra entre os cientistas. A maioria tem filhos. Tenho uma amiga que tem quatro. As pessoas dão um jeito. O que eu costumo dizer é que não existe isso de momento certo. Durante o doutorado é complicado? Claro que é. Mas não é impossível. A solução é ter o parceiro certo, dividir as tarefas. É difícil para todo mundo. Mas, como eu disse, não é impossível se houver parceria.
E se você tivesse uma filha, deixaria ela se vestir de princesa? Não, me recusaria. Mas eu iria criar uma criança infeliz, com certeza. (risos)