Diretora de fotografia já foi um bicho raro na fauna do cinema. Não por falta de talento, mas por machismo. Na base do grito e do trabalho duro, a nova geração brigou e conquistou espaço
É bem louco, mas nenhuma mulher nunca havia sido indicada ao Oscar de melhor direção de fotografia. Isso até o último dia 23, quando a americana Rachel Morrison foi lembrada por Mudbound: Lágrimas sobre o Mississipi, drama que narra histórias das tensões raciais no Mississipi do pós-guerra. Outros quase 600 filmes já haviam sido indicados na categoria. Todos fotografados por homens.
A histórica indicação de Morrison é também resultado da potente articulação feminina dentro do mercado cinematográfico americano, que passa pela luta contra o assédio e pela paridade de salários. “É muito significativo. É um espaço que demorou mais de 90 anos para ser conquistado”, diz Heloisa Passos, uma das principais diretoras de fotografia do cinema brasileiro, que assinou, entre outros títulos, o icônico Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz.
O universo da direção de fotografia é dos clubes masculinos mais fechados dentro da indústria do cinema – tanto gringa, quanto nacional. De acordo com pesquisa divulgada em janeiro deste ano pela Ancine, apenas 7,7% dos longas-metragens lançados em 2016 foram fotografados por mulheres. É um cenário ainda pior que o da direção, em que mulheres assinam 19,7% dos filmes (e vale lembrar que nenhum longa naquele ano foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra).
Em 2016, uma lista de promessas da direção de fotografia nacional 100% masculina, publicada pela produtora O2, funcionou como uma faísca para que dezenas de mulheres profissionais da área decidissem agir. Há apenas dois anos, uma das principais produtoras de cinema nacional não conhecia o trabalho de nenhuma boa diretora de fotografia. Elas não perdoaram. “Criamos uma base de dados com as fotógrafas de cada estado como um cala boca para quem diz que não existimos. É importante exercitarmos nossa autoafirmação. Temos que nos impor como diretoras de fotografia e afirmar o que sabemos fazer. Não vai ser um homem que vai dizer o que posso fazer. Se a gente for depender disso, a gente não trabalha”, diz Flora Dias, uma das fundadoras do Coletivo de Diretoras de Fotografia do Brasil (DAFB), criado nessa época.
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Esta semana o DAFB está promovendo o encontro Mulheres, câmeras e telas, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Workshops de iluminação, assistência de câmera, cor, drones e outros aspectos da profissão movimentaram mais de 600 interessadas. O grand finale será no próximo fim de semana (3 e 4/02) com uma discussão sobre a relação entre ser mulher e a produção de imagens e uma masterclass com Heloisa Passos que já tem mais de 200 inscritas.
Esse tipo de movimentação feminina em torno da carreira surpreende uma das pioneiras no mercado, Kátia Coelho, que começou a trabalhar nos anos 80, quando encontrar outra mulher em posição similar era quase impossível. “A nova geração de diretoras de foto é incrível, têm um poder de mobilização absurdo. Nunca imaginei que existiria uma palestra sobe o assunto com mais de 100 inscritas, é impressionante”, diz Kátia.
Muitos fatores afastaram estruturalmente as mulheres da direção de fotografia. Há 20 anos, por exemplo, o peso dos equipamentos era um possível empecilho, mas já superado pelo avanço das tecnologias das câmeras. O centro do problema é outro. “Rapidamente, as mulheres que se interessam pela profissão percebem que os diretores confiam menos nelas, que a equipe contesta mais o trabalho delas e que elas vão precisar brigar a vida inteira em desigualdade de oportunidades e sujeitas a assédio. Isso vai minando a profissionalização dessas mulheres na área”, explica Nina Tedesco, diretora de fotografia, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora da relação entre gênero e audiovisual.
Se infiltrar em um mercado tão fechado como o do cinema é sinônimo de precisar de indicações e de ter boas relações, especialmente com os homens, que ocupam a maioria dos cargos de poder da indústria. “Eu senti isso muito forte no começo, achava que não ia conseguir essas chancelas. Decidi não esperar o telefone tocar e abri minha produtora, dirigi meus projetos e, por conta dessa exclusão inicial, hoje desempenho outros papeis no cinema para além da fotografia. Mas percebo como trabalhei mais e ganhei menos do que colegas homens que começaram comigo”, relembra Heloisa.
Conseguir trabalhos é a primeira treta, mas não é a única. “Além da falta de reconhecimento, temos que lidar com o fato de que trabalhamos com orçamentos menores, com cachês menores, com produções menos preparadas. São pouquíssimas mulheres que trabalham com grandes orçamentos no Brasil”, argumenta Flora.
Profissionais negras precisam enfrentar ainda outras camadas de exclusão, não só nessa profissão, mas em todo o mercado cinematográfico. “O cinema é baseado em indicação, não é baseado em abertura de vaga ou seleção. É comum em um set a filha de alguém ser a estagiária e isso é privilégios de herança. Isso afasta a população negra desse universo”, avalia Joyce Prado, diretora de fotografia e diretora administrativa da Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro.
Para além das condições e possibilidades de trabalho dessas mulheres, o que está em jogo é como somos representadas, quase sempre pelos olhares masculinos, no cinema. E como isso impacta nossa subjetividade e nossa autoestima enquanto mulheres consumidoras de filmes. “Homens são fotografados diferentemente de mulheres. A principal diferença é que existe quase uma obrigação de deixar as atrizes bonitas, dentro de um padrão de beleza hegemônica”, explica Nina. E existem estratégias já consolidadas em manuais de fotografia para que isso aconteça. O uso da luz difusa, que esconde imperfeições e rugas na pele, é das táticas mais comuns tanto aqui quanto no cinema internacional.
Esse é um dos pontos principais do debate promovido pela DAFP no próximo sábado. “Minha especificidade como mulher se reflete na maneira como crio imagem? Digo que sim, sem dúvida. Eu, particularmente, já fui atriz, e isso muda fundamentalmente como eu aponto uma câmera para o corpo de uma mulher”, conta Flora. É claro que diretores de fotografia podem, e devem, continuar desenvolvendo seus olhares sobre mulheres e contando histórias a partir daí. Mas é fundamental que o olhar feminino esteja também representado. E que seja bem pago por isso.
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E tem muita mina talentosa trabalhando atrás das câmeras e garantido representatividade feminina no cinema nacional. Separamos algumas delas aqui:
Camila Cornelsen
Camila é curitibana, mas mora em São Paulo desde 2012, quando, em plena crise dos 30 anos, decidiu dar um tempo da sua banda, a Copacabana Club, e investir com tudo na carreira de diretora de fotografia. Ela já flertava com as lentes desde a infância, quando curtia passar os dias no laboratório de revelação do pai, também fotógrafo. Os primeiros trampos foram vinhetas para a MTV e videoclipes de amigos. A estética moderna e cheia de referências de Camila chamou atenção do mercado publicitário, que logo se apropriou de um dos formatos favoritos da curitibana, os gifs. “É meio maluco, os gifs em 3D que eu faço há mil anos entraram de repente numa moda.” Em 2014, rodou seu primeiro longa, Amores urbanos, ao lado da diretora Vera Egito, com quem dividiu a direção do clipe Lalá, da Karol Conka, no ano passado. Em agosto desse ano ela começa as filmagens de seu segundo longa-metragem.
Flora Dias
Flora Dias tem um extensa experiência em cinema de horror. Ela já rodou Sinfonia da necrópole, de 2014, que se passa em um cemitério e ano passado finalizou A Noite amarela, um suspense de horror paraibano. Seu trabalho mais comercial, porém, foi Califórnia, estreia da Marina Person na direção. “Tenho muito orgulho desse filme, ele tem uma cara pop, mas não é convencional.” É uma das principais articuladoras do Coletivo de Diretoras de Fotografia do Brasil.
Janice D'avila
Janice D'avila é parceira de duas potentes diretoras do cinema nacional: Petra Costa e Estela Renner. Um de seus primeiros trabalhos foi a fotografia de Elena, elogiado e sensível filme autobiográfico de Petra, que conquistou público e crítica. “Foi um trabalho de muita delicadeza, permitiu que eu desenvolvesse muito meu olhar.” Com Estela fez o profundo O começo da vida. Para a HBO, rodou uma série documental sobre assédio dentro de universidades e, com a Conspiração Filmes, acaba de finalizar um programa de TV sobre lutadoras de MMA. “Existe agora uma preocupação em colocar o ponto de vista feminino sobre questões que envolvem mulheres”, diz.
Kátia Coelho
Pioneira do cinema nacional, desbravou sozinha um terreno completamente machista. “Eu não tinha força para carregar todo o equipamento, então colocava a câmera em uma mochila de escoteiro.” Kátia foi assistente de câmera por nove anos, até que conquistou seu espaço entre os colegas e assinou títulos como A via láctea, com Marco Ricca e Alice Braga, e Como fazer um filme de amor, estrelado por Denise Fraga e Cássio Gabus Mendes.
Heloisa Passos
Uma das diretoras de fotografia que toca filmes com orçamentos maiores dentro do mercado nacional, ela é referência para as fotógrafas da nova geração. Segundo sua própria análise, dois filmes foram fundamentais em sua trajetória: o documentário Manda bala, sobre violência e corrupção no Brasil, que foi premiado em Sundance em 2007 e abriu portas para ela no mercado internacional, e o longa Viajo porque preciso, volto porque te amo, dos nordestinos Marcelo Gomes e Karim Aïnouz.
“Gravamos imagens no sertão do Ceará em 1999 para um projeto de pesquisa e, 10 anos depois, revisitei esse material e meu próprio olhar para a montagem do filme”, relembra. Agora, Heloisa se dedica ao documentário de nome provisório Impeachment, de Petra Costa, que acompanha os bastidores da crise política brasileira atual. “É um momento muito histórico do país. Estar com a câmera junto ao presidente e à presidente , às véspera do julgamento dele agora em Porto Alegre, é de desestabilizar. Está sendo uma experiência de vida.” Em abril, Heloisa lança Construindo Pontes, documentário dirigido por ela em que reflete sobre a conflituosa relação com seu pai, um engenheiro que teve o seu momento de glória durante a ditadura civil-militar brasileira.
Joyce Prado
Joyce se estabeleceu no mercado cinematográfico como produtora, mas toca em paralelo seus projetos pessoais e trabalhos como diretora de fotografia. Desde 2010 se dedica ao universo da música, rodando videoclipes, entrevistas e registros de shows. Dirigiu o clipe Um corpo no mundo, da elogiada cantora baiana Luedji Luna. “Esse trabalho foi o resultado de uma pesquisa minha sobre os imigrantes em São Paulo, o centro da cidade e as pessoas que transitam nesses espaços”, explica. Joyce é também diretora administrativa da Apan, a Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro.
Aqui, outras minas que tem trabalhos incríveis, se liga:
Barbara Alvez (uruguaia radicada no Brasil que assinou filmes como Que horas ela volta), Julia Zakia, Fernanda Frazão, Gabriela Mo, Isadora Brant, Fernanda Tanaka, Cris Lyra, Emilia Sauaia, Alina Lata e Milena Seta
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