Surdez na tela
Crisálida, primeira série brasileira de ficção em Libras e português, quer divulgar a Língua Brasileira de Sinais e a cultura surda
Segundo dados do IBGE de 2010, 5,2% da população brasileira possui deficiência auditiva. Destes, 2,6 milhões são surdos. Foi pensando em dar mais espaço à Língua Brasileira de Sinais e à cultura surda que os produtores audiovisuais catarinenses Alessandra da Rosa Pinho e Serginho Melo desenvolveram a série Crisálida. Primeira série brasileira de ficção em libras e em português, ela tem o quarto e último episódio da primeira temporada exibido nesta quinta-feira, 17, na TV Cultura.
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Os temas tratados na série são os mais cotidianos: relacionamentos amorosos, familiares e mercado de trabalho, porém vistos pela ótica dos surdos. Para os criadores, um dos principais objetivos era que o produto não fosse algo assistencialista. "Crisálida é uma série de entretenimento onde o surdo é personagem principal, mas com problemas do cotidiano, que qualquer pessoa pode passar", explica Alessandra, roteirista da série.
Ela conta que a ideia surgiu quando fazia um curso de libras na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Queria descobrir uma profissão que me permitisse ajudar as pessoas, sendo intérprete, por exemplo”, diz a catarinense, que trabalha com produção audiovisual há 20 anos e, junto ao seu companheiro, Serginho, comanda a Raça Livre Produções. “No entanto, ao entender mais, vi que não estava ajudando ninguém, porque os surdos não precisam de ajuda.”
Por ser um projeto independente, o casal teve que esperar uma oportunidade para que a ideia saísse do papel. Em 2014, graças a um edital municipal, eles conseguiram desenvolver o episódio piloto, mas foi só em 2016, depois de ganhar alguns prêmios e se associarem a outras duas produtoras, a Arapy Produções e a TVi Televisão e Cinema foi possível produzir a primeira temporada.
O elenco conta com mais de vinte pessoas surdas, que em sua maioria ainda não haviam tido contato com o teatro. “Por uma questão de representatividade, uma premissa da série é que todo personagem surdo é interpretado por um ator surdo”, diz Serginho Melo, que, além de dirigir, também participou do roteiro da série. Para ele, a experiência de trabalhar com os surdos foi uma surpresa maravilhosa. “Eles são muito expressivos, porque a libras não se resume aos sinais que são feitos com as mãos. Dependendo da expressão facial, eles dizem outra coisa”, afirma.
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Além de fazer parte da programação da TV Cultura, a série já foi exibida em mais de 30 universidades que possuem o curso de Libras. “Recebi muitas mensagens de surdos dizendo que esse é o trabalho em que eles se sentem mais representados e que esse é um momento histórico da comunidade surda brasileira”, diz Alessandra, reforçando que esse era um dos principais objetivos de Crisálida. Para que isso fosse possível, desde o processo de roteiro, eles contaram com o trabalho do consultor surdo João Gabriel Ferreira. “A presença dele foi muito importante, porque, por mais que eu estivesse super envolvida com a pauta, não sou surda”, explica.
Repercussão
“Recebi muitas mensagens de surdos dizendo que esse é o trabalho em que eles se sentem mais representados ”
Alessandra da Rosa Pinho
No entanto, os comentários que eles mais recebem são de ouvintes que, após assistirem a série, se sentiram instigados a aprender a Língua Brasileira de Sinais. “É um produto que fala sobre os surdos, mas o público alvo são os ouvintes”, diz Serginho. “Talvez Crisálida ajude a abrir a mente das pessoas em relação à Libras, de saber que as pessoas surdas estão aí e convivendo com a gente. Porque durante muito tempo, eles viviam isolados nas suas casas”, completa Alessandra.
Para eles, uma das maiores realizações é perceber que, de alguma forma, estimularam a produção audiovisual feita por pessoas surdas. “A partir da série, começamos a observar que os surdos estão se movimentando, não só como atores, mas também como diretores”, conta Alessandra. No entanto, ela acredita que ainda é preciso que aconteçam muitas mudanças na área para que ela inclua essa parte da população. “O ponto inicial é criarmos personagens surdos e saber que eles são capazes, sim, de exercer essa função.”
A roteirista também pontua que a acessibilidade é algo exigido pela ANCINE, mas, por ser um processo caro, é muitas vezes visto como um problema em vez de uma solução. “As pessoas fazem pensando apenas em cumprir uma lei, não enxergando os surdos como consumidores de fato. Se começarmos a entender que existem pessoas assistindo aquele produto, talvez déssemos mais valor.”
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O principal objetivo deles agora é a segunda temporada. “O projeto sempre foi maior que estes quatro episódios, porém tivemos que nos adaptar e reduzir para o orçamento que tínhamos em mãos”, explica Serginho. “Não vou dizer que é fácil, pois por ser um projeto independente, dependemos de editais públicos. Mas estamos trabalhando e torcendo para que tudo dê certo.”
Créditos
Imagem principal: Divulgação