Católicas pelo Direito de Decidir

por Gabriela Sá Pessoa

Conversamos com a socióloga Maria José Rosado, presidente da ONG que questiona doutrinas da Igreja em pelo menos dois assuntos espinhosos: aborto e direitos reprodutivos

As escadarias da Basílica Nossa Senhora do Carmo se impõem sobre a calçada par da Rua Martiniano de Carvalho. Do outro lado, à esquerda de quem sobe o endereço na Bela Vista, região central de São Paulo, um portão de ferro insinua uma vila entre dois prédios – quem segue a ruela estreita de paralelepípedo, encontra lá dentro, na casa número 11, a sede da ONG Católicas pelo Direito de Decidir (CDD).

Fundada em 1993, a organização se opõe às doutrinas da Igreja ao levantar o debate sobre assuntos espinhosos: aborto e direitos reprodutivos. E o faz especialmente em um momento de avalanche midiática com a vinda do papa Francisco ao Brasil para a Jornada Mundial da Juventude, encerrada há poucos dias. Ao lado de movimentos feministas, a CDD tem divulgado petições e documentos em defesa da aprovação do PLC 3. Esse projeto de lei prevê que todos os hospitais da rede pública estejam preparados para oferecer atendimento emergencial, integral e multidisciplinar a mulheres vítimas de violência sexual.

Na verdade, o PEC só reforça o aparato jurídico e de saúde já existente para nos atender nessas situações. Porém, no dia 17 de julho, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se reuniu com o governo com o intuito de pressioná-lo a vetar alguns pontos do texto, principalmente os que dizem respeito à “profilaxia da gravidez” (uso de pílula do dia seguinte) e à divulgação dos hospitais preparados para atender casos de violência. A presidenta Dilma Rousseff tem até amanhã, 1º/8, para sancionar o documento em meio a reclamações da bancada religiosa (católica e evangélica), que vê nessa medida um passo rumo à descriminalização do aborto no país.

Mas antes fossem só a defesa do PLC 3 e a distância de poucos metros asfaltados que separassem a Católicas e a Igreja. Nessas últimas duas décadas, elas enfrentaram resistência de setores conservadores, que poucas vezes as receberam para conversar. “Da nossa parte não há problema em dialogar. Uma vez fui convidada para ir à CNBB participar de uma mesa. Depois nos desconvidaram”, lembra a socióloga Maria José Rosado Nunes – a Zeca –, uma das fundadoras e hoje presidente da CDD. O currículo é dos mais gabaritados: ela é doutora em sociologia pela Escola de Altos Estudos em Sociologia de Paris, professora da pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-SP e foi uma das mulheres indicadas conjuntamente para receber o Nobel da Paz em 2005.

É Zeca quem nos recebe no sobrado, comprado há três anos pela ONG. Os recursos que mantêm o projeto funcionando vêm de editais públicos (do Ministério da Saúde e da Secretaria de Políticas para as Mulheres, por exemplo) e de fundações estrangeiras (uma placa metálica na entrada da sede agradece o apoio da Fundação Ford). Além da manutenção do prédio, esse dinheiro custeia os salários das ativistas e também as oficinas de direitos reprodutivos, pesquisas, publicações e vídeos produzidos pela organização.

"Nenhum padre, Papa ou cardeal substitui o dever que têm os católicos de tomar decisões recorrendo à sua própria consciência" 

Enquanto ela explica seu ponto de vista sobre como as coisas funcionam – na CDD, na Igreja, na política, no pontificado de Francisco –, a janela do primeiro andar mostra uma das torres da Basílica entre os prédios vizinhos. Só que nada, nem mesmo uma reunião marcada dali a poucos minutos, a desviam do tom de voz sempre firme com que critica o tratamento que o governo e as instituições religiosas têm dispensado aos direitos das mulheres. Na entrevista a seguir, ela fala sobre o direito ao aborto entre católicas, critica o posicionamento conservador da Igreja na política e esclarece como funcionam as esferas de decisão no catolicismo.

Tpm. A CDD foi criada há 20 anos. Você participou de todo o processo? Como foram as articulações?
Estou aqui desde o começo. Não só eu, foi uma criação de um grupo de mulheres que tinham uma história de relação forte com o catolicismo, especialmente da época em que a defesa da Igreja era pela justiça social e pela redemocratização do país contra a ditadura militar. Esse era o contexto da Igreja Católica. E o contexto do movimento feminista era a retomada nos anos 1980,com a volta de muitas mulheres feministas que haviam sido exiladas. Já fazia quase 10 anos que o feminismo estava se rearticulando no Brasil. Conhecemos o movimento Catholics for Choice, que havia começado nos Estados Unidos e presença na América Latina por meio de uma publicação que saía em espanhol, chamada Conciencia latinoamericana. Então discutimos entre o movimento de mulheres a necessidade de ter no Brasil uma voz que fosse pública e contraposta à voz oficial da Igreja Católica. Isso requeria duas coisas: investimento forte na mídia, porque um grupo de mulheres dispostas a entrar num movimento assim não era grande e a gente iria se contrapor a uma instituição poderosíssima. E mulheres que conhecessem a doutrina da Igreja, para falar de maneira adequada. Que não fossem apenas feministas, mas feministas conhecedoras da estrutura, da organização e da doutrina do catolicismo.

Vocês já eram ativas em grupos pastorais ou em projetos sociais organizados pelas paróquias?
Já, nas comunidades de base. Eram nelas que a Igreja investia como política pastoral. Depois ela passou a investir nos movimentos de caráter carismático e extremamente conservadores. E mesmo reacionários, como a Opus Dei, os Missionários de Cristo, que estiveram presentes na Jornada [Mundial da Juventude], o Canção Nova e outros movimentos carismáticos, tem também os padres cantores. Mudou completamente.

Na prática, como vocês viveram essa mudança nos últimos 20 anos?
Olha, no começo vários bispos que compunham a CNBB nos conheciam pessoalmente do tempo da Teologia da Libertação, das comunidades de base. De lá pra cá, a gente tem outra configuração da CNBB, muito mais conservadora. Eles agora têm como eixo da sua ação pastoral muito mais a reconquista de fiéis. Essa é até uma das coisas que acertadamente o papa Francisco tem dito: que a igreja saia das sacristias e vá pra junto do povo. Que ela volte a estar mais perto das comunidades. Porque, de fato, ela se afastou muito numa volta pra dentro de si mesma.

É possível notar que as mudanças propostas pelo Papa Francisco vêm acompanhadas de um novo tom? Ao embarcar de volta para a Itália, ele sinalizou compreensão em relação à comunidade gay.
Não. É uma mudança de estilo, não de fundo. Por exemplo, o que ele diz sobre os gays é o que a Igreja sempre diz. É a posição mais tradicional, a da compreensão, do acolhimento, da compaixão. Está longe de ser o discurso dos direitos. Não há nesse discurso uma paridade entre uniões homossexuais e heterossexuais, que é o que a sociedade quer no momento em que propõe o reconhecimento das uniões civis entre pessoas do mesmo sexo. O que a sociedade quer é uma equiparação e respeito aos direitos. O que a Igreja propõe é um acolhimento, compaixão, compreensão. Então o discurso é o mesmo.

Ou seja, ele também é um conservador.
Saiu um artigo do Juan Arías no El país excelente, em que ele faz uma distinção sobre quem é o Francisco, o Papa, e aquilo que falam do Papa. A mídia mistificou uma figura e criou uma que não corresponde àquela que foi o cardeal Bergoglio na Argentina. O máximo que acho que a gente pode dizer é que ele é um homem de hábitos mais simples e quer levar esse tipo de simplicidade para a forma de exercer o seu papado. Também me parece que é um homem decidido a atuar na mudança da Cúria, embora ele ainda não tenha dado nenhum passo concreto nesse sentido. E em relação ao combate à pedofilia. Excetuando-se isso, não há nenhuma sinalização de mudança em relação, por exemplo, à doutrina sexual que a Igreja considera em termos de moral e o que ela pensa sobre as mulheres. Ele acabou de afirmar “não” à ordenação de mulheres. Então acho que é uma grande ilusão, alimentada por setores da mesma Igreja, inclusive setores que foram parte do movimento chamado "progressista", e estão aí encantados com a figura do papa. Ele é um homem conservador. Não por acaso, fazia parte dos cardeais que estavam ali para eleger o papa – todos eles escolhidos a dedo, propositadamente, por João Paulo II e Bento XVI, dois papas extremamente conservadores.

"O que o Papa Francisco diz sobre os gays é o que a Igreja sempre diz. É a posição mais tradicional, a da compreensão, do acolhimento, da compaixão. E o que a sociedade quer é uma equiparação e respeito aos direitos" 

Vocês já foram chamadas para dialogar com essas alas mais conservadoras?
Não. Da nossa parte não há problema em dialogar, uma vez fui convidada para ir à CNBB participar de uma mesa e depois fomos desconvidadas. Embora meu nome constasse já na programação.

Uma pesquisa recente do Instituto Anis e da Universidade de Brasília apontou que 65% das mulheres que já tinham abortado se consideravam católicas. Neste mês, vocês divulgaram um levantamento encomendado ao IBOPE que apontava que a maioria dos pesquisados declaradamente católicos apoiavam o uso de métodos contraceptivos e o casamento homoafetivo. Quer dizer, essas pessoas têm opiniões diametralmente opostas ao que o Vaticano defende. A Igreja ainda pode dar respostas a esses fiéis?
Olha, poder, pode. Ela tem dentro dela elementos na sua doutrina que permitiriam mudar. E elementos da tradição mais antiga. Se vai usar ou não, é difícil de ver. Um empecilho pra isso é a questão do poder institucional. A Igreja Católica tem como base e fundamento a exclusão das mulheres, que tem como núcleo a negação da autonomia. É a negação da possibilidade de que as mulheres controlem a sua capacidade reprodutiva e, portanto, possam aceder ao aborto. Ora, quando a Igreja Católica fala contra a contraconcepção e não admite relações sexuais antes do casamento nem educação sexual nas escolas; quando é radicalmente oposta a qualquer possibilidade desse controle da sexualidade, e de qualquer forma de sexualidade que não a heteronormatividade e o tipo de família que se tem até agora, é uma forma de controlar a sua população - e as mulheres, de forma muito particular. Ela poderia mudar pela pressão dos fiéis. Porque todas as pesquisas demonstram uma defasagem enorme entre o que propõe a Igreja e a prática dos seus fiéis – que deveriam pressionar a instituição a mudar. Mas nada indica que esse papado vá tocar nesse sistema. Não há perspectiva no horizonte.

"Todas as pesquisas demonstram uma defasagem enorme entre o que propõe a Igreja e a prática dos seus fiéis – que deveriam pressionar a instituição a mudar. Mas nada indica que esse papado vá tocar nesse sistema"

É algo a se pensar o fato do Papa ser um homem da América Latina, onde a Igreja é um importante ator político e um “ponto de passagem” obrigatório nos debates. Isso acaba fortalecendo o discurso conservador na região? 
Sem dúvida. Acho que dá muito mais força, porque o Vaticano tem usado isso. Não por acaso o Espírito Santo “escolheu”, entre aspas, uma figura latino-americana mais simpática, mais simples. Essa figura é necessária nesse momento. E acho que a influência diluiu negativamente. O que quero dizer: a Igreja Católica tem muito menos fiéis e portanto tem muito menos poder. Só que o poder que ela tem é potencializado pelo crescimento de outras forças religiosas tão ou mais conservadoras do que ela. Então o quadro que a gente tem atualmente é o quadro de um conservadorismo religioso, mesmo de um reacionarismo religioso forte, com uma influencia político-social muito grande. No caso do Brasil, a aliança entre evangélicos conservadores e o setor ultraconservador católico é muito forte no Congresso Nacional.

E essas forças se unem em torno da PLC 3, que só reforça um sistema já vigente, para pressionar o governo usando como argumento os votos dos fiéis. Esse discurso faz tanta diferença assim para o eleitorado?
O problema que o governo tem com essa bancada religiosa não é tanto nas urnas como no Congresso. Essa bancada é capaz de travar a aprovação de projetos fundamentais para o governo. É o calcanhar de Aquiles do governo, uma bancada religiosa formada e articulada para tentar derrubar projetos que o governo considera fundamentais. O grande problema nessa história é que o que é negociado são sempre os direitos das mulheres. E muito especificamente a questão do aborto. Esse é um problema real: nós nos tornamos moeda de troca inclusive para governos de esquerda, para um governo do qual se espera outro tipo de postura política em relação aos direitos das mulheres. Agora, se por um lado você tem essa bancada que atrapalha o governo, o governo tem por outro lado um poder muito grande com a população. Quer dizer, as manifestações diminuíram a popularidade da Dilma, mas o índice de aprovação do governo é enorme. Politicamente, o governo deveria comprar essa briga.

"O que é negociado [com a bancada religiosa] são sempre os direitos das mulheres. Nós nos tornamos moeda de troca inclusive para governos de esquerda, dos quais se espera outro tipo de postura política em relação aos direitos das mulheres"

Já é possível avaliar as consequências políticas desta Jornada Mundial da Juventude?
A Igreja está em um momento de benefício da forma como se tem construído a imagem desse Papa – que não corresponde ao que foi o cardeal Bergoglio na Argentina. É uma imagem construída que não tem base solida na biografia anterior e tende a se esvaziar. Há esse investimento da mídia, muito especialmente da Rede Globo, em cima dessa figura, criando essa imagem de uma figura liberal, simpática, simples. E não se chama a atenção para o fato de que são três milhões de pessoas na Jornada, não 3 milhões de brasileiros. Tratava-se de uma jornada mundial e, portanto, é nesse contexto que o Papa vem. Esse público não é só do Brasil. É o mundo católico. Há um momento de exaltação, de mistificação, do qual a Igreja vai se aproveitar no Brasil. Logo se verá a que o Papa veio. E eu acho que ele veio para reafirmar a posição inflexível da doutrinária da Igreja Católica. Com algumas aberturas daqui e dali, mas muito pouco.

Nesses últimos dias, frequentemente se via na internet exemplos de posts dizendo que católicos que usam contraceptivos são hipócritas. São pontos realmente inconciliáveis?
Chamar de hipocrisia é colocar um valor e um julgamento. Poderíamos dizer que a história do catolicismo tem muitas hipocrisias em relação à forma com que a Igreja se criou. O que de fato se tem é a realidade de uma defasagem muito grande entre o que propõe oficialmente a Igreja e o que se realiza na prática. Uma estratégia que o Vaticano tem é a de afirmar a não-mudança. Existe na história do cristianismo uma proposição doutrinária que se chama “sentido dos fiéis”. Quando uma grande parte dos fiéis tem determinada compreensão da doutrina, que pode ser expressa no discurso ou na pratica, ela deve ser absorvida pela Igreja. Se o comum é transar antes do matrimônio e viver com liberdade sua sexualidade, seja em união homoafetiva ou heteroafetiva; quando a prática é de interromper gestação quando as mulheres consideram que devem fazer isso; se muitos consideram que as mulheres devem ter o mesmo estatuto que os homens no catolicismo; a Igreja [ao ignorar esses fatos] está deixando de perceber uma coisa que é própria da sua história como religião.

E aí voltamos à ideia de controle dos fiéis.
Exatamente. São as estratégias e do controle. Não há como desvincular a compreensão do catolicismo e do Papa daquilo que é a instituição católica. Ora, é uma instituição absolutamente androcêntrica, machista, que exclui as mulheres de qualquer parcela de poder e dá exclusivamente a homens celibatários o poder de governar essa Igreja, instituir a doutrina e definir os rumos da política pastoral. E há uma coisa que considero importante no catolicismo: a repetição cotidiana de que nós, mulheres, poluímos o sagrado. Porque aquele que pode fazer a ligação da comunidade com Deus – o que se dá na celebração cotidiana da Eucaristia na missa – é um homem que não pode tocar em mulher. Se ele toca em uma mulher, se torna inadequado, portanto, impuro. E não pode mais fazer essa ligação, tem de deixar de ser sacerdote. Então a Igreja está cotidianamente repetindo pela sua simbologia e pelo seu ritual que nós, mulheres, somos poluidoras do sagrado.

"A instituição Católica é absolutamente androcêntrica, machista, exclui as mulheres de qualquer parcela de poder e dá exclusivamente a homens celibatários o poder de governar essa Igreja, instituir a doutrina e definir os rumos da política pastoral. Está cotidianamente repetindo pela sua simbologia e pelo seu ritual que nós, mulheres, somos poluidoras do sagrado"

Nessa lógica, nossos direitos seriam profanos?
Na verdade, a Igreja não lida com a noção de direitos. Ela é uma instituição que fortificou o seu poder durante a Idade Média e até hoje não consegue incorporar de maneira adequada e definitiva os ganhos da modernidade em relação aos direitos individuais e à democracia.

E mesmo assim, voltando à questão da PLC 3, ela consegue ser um importante ator político...
Claro. Mas nós esperamos que a presidenta sancione. Acho que seria um ato antidemocrático não sancionar, uma vez que o PL passou pelo Congresso, foi discutido na Câmara, no Senado e aprovado por unanimidade. Então não há razão.

O discurso utilizado por grupos conservadores de que ser favorável ao aborto é ser contra a vida é frequente em comunidades e paróquias?
Muito. Quer dizer, acho que a sociedade não absorve uma coisa que seria fundamental: permitir que uma mulher interrompa o processo gestacional porque ela considera que naquele momento não deve colocar na comunidade humana um novo ser é dignificar a maternidade. Isso é realmente tratar de forma humana e digna o fato de que nós, mulheres, podemos fazer novos seres humanos. Fazer novos seres humanos é algo transcendental, é um poder muito grande. E não pode ser tratado com leviandade, como resultado unicamente de um processo biológico. Entender que fazer um ser humano é um processo exclusivamente natural é retirar desse processo o desejo, o pensamento e a reflexão pra se saber que aquele é o momento adequado.

Há uma dissociação entre a possibilidade do aborto e a maternidade. A sociedade pergunta a uma mulher que vai abortar: “você pensou bem no que vai fazer? Você vai ter isso paro resto da sua vida no seu pensamento”. E o que ela diz a uma mulher que engravidou? “Que maravilha.” Ora, uma mulher que faz um aborto, o faz num momento da sua vida. E acabou-se, o processo termina ali. A que faz uma criança, um novo ser humano, ela o faz para o resto da vida – essa criança será seu filho para o resto da vida. Então o que a sociedade deveria exigir é uma maternidade refletida e pensada. Então se deveria discutir muito mais a maternidade e exigir que ela seja feita em condições dignas, adequadas e saudáveis. E deveria se exigir do estado que ele, ao admitir que as mulheres façam novos seres humanos, que elas tenham condições não só para gestar e fazer nascer, mas para dar educação, transporte, saúde, dignidade, trabalho. A sociedade deveria se preocupar com a maternidade e deixar as mulheres decidir onde, quando, com quem e se querem ou não entrar nesse processo de fazer um novo ser humano.

"Permitir que uma mulher interrompa o processo gestacional porque ela considera que naquele momento não deve colocar na comunidade humana um novo ser é dignificar a maternidade"

Uma questão que me ocorreu agora: por que ainda manter a luta na esfera do catolicismo? Porque a Igreja parece que não vai mudar, pelo menos em um futuro próximo...
Pela autonomia das mulheres. Pela dignidade das mulheres. O nosso foco são as mulheres – os homens também, claro. Mas o foco no homem é no sentido de fortalecer as mulheres para que elas busquem e realizem sua autonomia como mulheres.

Sejam elas fiéis ou não?
Fiéis ou não. E nós sabemos que existem limites dentro da história da doutrina católica, elementos que podem potencializar isso, que podem oferecer às mulheres condições. E, enfim, mesmo na fé essas mulheres podem encontrar elementos que podem ajudá-las a se tornar fortes em busca de autonomia.

E quais são esses elementos?
Um deles é o recurso à própria consciência para tomar decisões. Isso é da mais antiga tradição católica. O próprio Papa Bento XVI tem uma fala em que reafirma muito fortemente isso. Nenhum padre, papa ou cardeal substitui o dever que têm os católicos de tomar decisões recorrendo à sua própria consciência. Esse é o elemento fundamental. Quando as mulheres decidem por um aborto, elas pensaram, refletiram, tomaram sua decisão recorrendo à consciência de que é isso que querem fazer naquele momento. Por isso elas são capazes de agradecer a Deus em um momento pós-aborto porque ele deu certo e tudo se passou bem. Em segundo lugar, lembrar que a questão do aborto tem história na Igreja Católica, que a condenação absoluta é recente e tem pouco mais de cem anos.

É mesmo?
É, ela tem séculos de discussão e de divergências internas. E da consideração, inclusive, de que só há uma pessoa humana tempos depois da concepção. Isso foi o que predominou durante séculos na tradição católica.

E o que aconteceu?
Essa história toda está explicada em um livro [Uma história não contada, de Jane Hurst], que publicamos pela CDD. Chegou um momento em que o Papa [Pio IX] definiu “olha, qualquer aborto agora é pecaminoso”. Mesmo assim as discussões continuaram. Outro ponto é que o aborto não é dogma na Igreja Católica, portanto pode ser discutido. Há também a doutrina do probabilismo, que é muito complexa. Ela estabelece que quando há discussão em torno de um ponto, o clero tem o dever de esclarecer que há essa divergência para que os fiéis possam decidir com liberdade. Por isso colocamos que onde há dúvida, há liberdade. No caso do aborto, a história é uma história de dúvida, de discussão. As mulheres católicas têm liberdade de recorrer a um aborto.

"O aborto não é dogma na Igreja Católica, portanto pode ser discutido. Quando há discussão em torno de um ponto, o Clero tem o dever de esclarecer que há divergência, para que os fiéis possam decidir. As mulheres católicas têm liberdade de recorrer a um aborto" 

Vocês atuam diretamente em grupos de evangelização? Como vocês chegam aos fiéis?
Não participamos diretamente. Propomos oficinas, às vezes aqui [na sede], às vezes fora e fazemos seminários. Temos circulação entre o meio católico que tem essas posições diferenciadas em relação à Igreja. Somos muitos, há o Movimento dos Padres Casados, o Catholics for Decision e uma série de outras vozes dissidentes. Também atuamos em casos específicos, com cartas abertas e pronunciamentos.

Vai lá: www.catolicasonline.org.br

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