A Tpm conferiu o primeiro Surf Camp House da melhor surfista brasileira, que recebe em casa mulheres que querem aprender a pegar onda
A primeira vez em que fiquei em pé numa prancha, alguns anos atrás, foi uma sensação inexplicável, me conquistou de cara. E foram apenas alguns segundos em cima da onda. Quando olhava meus amigos praticando, parecia fácil. Porém, quando me deitei pela primeira vez para encarar o mar no nível dele, morri de medo antes mesmo de tentar ficar em pé.
Sou uma designer de 34 anos que só resolveu aprender a surfar de verdade aos 33. Nasci em Belo Horizonte, onde não tem mar. Ainda bem que meus pais se mudaram para São Paulo — porém, minha família optou por uma casa na montanha e não na praia. Fui me aproximar das ondas com 18 anos, quando descobri que dirigir rumo ao mar era a minha balada de fim de semana. Virei rata de praia e o surf veio junto. Decidi que aprenderia a surfar.
Passei um ano alugando casas, ficando na casa de amigos, convencendo minha família a cuidar das minhas cachorras e fazendo vários bate-voltas na praia para fazer aulas. Até que vasculhando a internet cai no site da Jacqueline Silva, vencedora do WQS em 2001 e 2007. Na página da catarinense, vi informações sobre o Surf Camp House, projeto da Jacqueline de receber em sua própria casa meninas que querem aprender ou aprimorar o seu surf.
No pacote do Surf Camp, havia alimentação, translado, todo apoio de surf e atividades diárias. Mandei email perguntando de algumas datas, Jacque disse que não havia nenhuma outra menina para o período, mas chegamos a um acordo mesmo assim. E o que era para ser aula, virou privilégio: iria participar do Surf Camp da Jacqueline, que era o que eu queria, e estaria sozinha em aulas particulares. E mais: era minha primeira surf trip, meu primeiro surf camp e eu seria a primeira hóspede e aluna inaugural do projeto dela.
Preparação para a surf trip
Muitos conselhos depois, a passagem estava resolvida e as pranchas também. Normalmente faço aulas com uma 6’11, grande, mas pensei ‘Ah, Jacqueline Silva né, surfa muito, vou levar prancha menor’. Levei logo duas, uma fish retrô 5’10, que é minha, mas nunca usei, e outra que peguei o shaper Akiwas me emprestou para eu ver se gostava, uma 6’.
Jacqueline Silva é o nome mais importante da história do surf feminino brasileiro, e foi o tempo todo muito simples, atenciosa e preocupada durante o período de preparação para a viagem.
Nos dias que antecederam meu embarque, ela me enviou um documento com orientações e regras, que incluíam não beber, não sair para a balada, manter as coisas arrumadas, além de anexos com perguntas sobre uso de medicamentos, níveis de natação e de surf. Era tudo o que ela precisava saber, mas não tudo que ela queria. A rigidez com a prática é convertida em delicadeza no convívio. Em suas mensagens, perguntava também sobre o que eu gostava de comer no café da manhã e até quais chocolates eu comia. Mas avisava que não me acompanharia em gordices por conta da dieta restrita que estava realizando atualmente.
E, desse jeito afetuoso, transmitiu muitas dicas e ensinamentos de surf em quatro dias. “A ideia é passar para frente tudo o que eu aprendi com o que eu vivi no esporte. Sempre tive esse desejo”, me contou a campeã, que falou também sobre o estilo das suas aulas. “Acho que tem que ser bem tranquilo, até pra pessoa assimilar.” E o Surf Camp House é só para mulheres: “Há 10 anos, eu era a única menina na água. De uns anos pra cá, aumentou muito esse número”, celebra.
Chegado o dia, peguei alguns biquínis, long john, GoPro e voei para Florianópolis com uma mochila e uma bag com 2 pranchas (e muita tralha dentro).
Dia 1 - 17/1
Cheguei de manhã em Florianópolis e Jacqueline me buscou no aeroporto. Fomos o caminho todo conversando de surf, ela contou como era a praia e que logo entraria um vento ótimo pra gente surfar. A primeira impressão foi ótima, o frio na barriga passou. É a primeira edição do Surf Camp House, mas ela está bem à vontade no papel. Era algo que pensava há tempos. "Sempre tive esse desejo e ficou mais forte agora que eu diminui meu ritmo de competição. Eu sabia que, quando eu parasse de competir, eu iria querer continuar no caminho do esporte. Se não fosse dessa maneira, fazendo o surf camp, seria dando as aulas que estou dando há três anos", conta a surfista, que competiu pela última vez em outubro de 2017, em Itamambuca.
Seguimos para a casa dela na Barra da Lagoa, bairro onde ela cresceu e aprendeu a surfar. A casa era bem grande, toda envidraçada, jacuzzi na varanda, bem decorada e com muitos prêmios de campeonatos, eram tantos que havia também uma sala só para eles. Conversando, ela me disse que perdeu a conta de quantos campeonatos já havia competido. Me ajeitei no quarto e havia uma sacolinha do camp na minha cama com vários mimos legais. Jacque cria um clima muito agradável. Me senti em casa, mas já era hora de cair no mar.
Fomos checar o mar, dava para entrar. Mostrei minhas pranchas para Jacque e ela explicou que seria uma transição difícil, já que eu comecei a surfar e me acostumei com uma grande. E era hora de começar essa adaptação.
O mar estava meio mexido no primeiro dia, fomos para o outside e, enquanto as ondas não vinham, conversamos sobre os ventos, as praias e Jacque respondia atenciosamente todas as curiosidades sobre ela, os lugares em que nunca ido e tinha vontade (Maldivas e México) e outros planos que tem para o futuro, tudo sobre surfar com outras meninas. "Além do surf camp, estou com um projeto de levar meninas para surf trips para fora do país. Ano passado, fiz a primeira, para a Costa Rica. Foram sete meninas. Além do surf camp, farei isso uma ou duas vezes por ano", conta.
As ondas vieram. "Rema, rema...", dizia a Jacque, que ia do meu lado dando instruções e filmando. Sempre me achei ruim de remada, mas ela me disse que não, que tenho uma boa remada, mas falta no final. Saí morta, a correnteza nos jogava muito para o lado e remamos bastante. Entendi agora quando falavam que no surf não se fica parado mesmo quando espera onda, verdade. Sai cansada do mar, remei bastante pra entrar nas ondas e fiquei em pé na fish mas ainda foi difícil.
Fomos para casa descansar e saímos para visitar uma lojinha de produtos naturais que tinha parceria com a Jacque, ganhei uns mimos. Jantamos, comemos crepe e demos um passeio pelo bairro, passamos pelo campeonato local de futebol fomos até o farol. Vamos dormir cedo porque amanhã é dia de vento bom. Tem surf.
Dia 2 - 18/1
Acordamos às 6h. Jacque preparou o café enquanto falava que o mar estava bom. Preparamos nossas coisas e partimos. Jacque é friorenta, como eu. É bom não ser zoada quando seus amigos surfistas são todos homens e encaram qualquer temperatura e vento no pelo.
Andamos uma ou duas ruas por um caminho lindo para chegarmos na praia. O mar estava bom, liso e com ondas pequenas, mas divertidas. Aquecemos e caímos no mar. Rema, rema, rema... Surfar é mais remar do que pegar ondas. Entrei com a prancha do Akiwas e consegui entrar na onda com menos esforço dessa vez. Ficamos um tempão no mar, ela sempre dando muitas dicas. Percebi que ainda preciso aprender a ler melhor as ondas. Em várias que eu achava boas, Jacque me explicava que não eram.
Tentei alguns joelhinhos e Jacque foi me corrigindo, até que eu consegui e comecei a passar as ondas por baixo — é muito mais fácil.
Depois de algumas horas no mar, cansei. Meus braços já estavam sem força. Jacque estava com uma funboard e me perguntou se eu gostaria de tentar. Peguei algumas, ela me empurrou em outras. Foi divertido. Final de surf pegando todas sem ter que remar pra entrar, delícia. Saímos para almoçar.
Depois do almoço, peguei a bike da Jacque e fui dar uma volta. Aproveitei para tomar a vacina de febre amarela por lá e saí para conhecer o bairro de dia. Só falaram comigo em espanhol, achavam que eu era uma turista gringa. A cidade estava lotada de argentinos e uruguaios. Andei pela cidade toda e fui até a praia para meditar um pouco e observar outros surfistas no mar.
Voltei um pouco tarde e logo saímos para jantar. Fomos até a Lagoa para comer uma pizza no Artesano. Acabei tirando a Jacque da dieta dela. No final da noite, ela me convenceu a experimentar um milskahke de maracujá, também na Lagoa.
Dia 3 - 19/1
A rotina é a mesma do dia anterior. Acordamos cedo e Jacque faz café enquanto conversamos, ainda com sono, arrumamos tudo e resolvemos sair. Sol, sol, sol! O mar estava transparente, lindo. Estava calor. Verão, finalmente. Tem mais gente na água, Jacque sempre é cumprimentada por todos. Vários perguntavam dos campeonatos. Perguntei também se ela tinha parado. "Não encerrei. Eu não me aposentei. Muita coisa mudou depois da ideia do surf camp. Não me dei por acabada ainda no surf, na carreira profissional, mas sei que é uma questão de tempo. Pode durar essa ano ainda, pode surgir a vontade de continuar competindo, mas só no Brasil, se tiverem algumas etapas aqui. Aquela vontade mesmo de competir eu já não sinto mais."
Senti uma grande diferença em surfar no Rio de Janeiro ou na Barra da Lagoa. Aqui, não me pareceu ter aquele localismo ou o ar de sai que a onda é minha, que vejo em Ubatuba, por exemplo. As pessoas pareciam incentivar quem estava aprendendo.
Remamos muito e também me diverti muito, o mar estava ótimo. A essa altura, eu já me auto-corrigia, voltava para o outside gritando o que fiz de errado - "o pé, né?, preciso abrir", ou, "a bunda tá de funkeira, preciso fechar os joelhos". E riamos. Eu estava confortável com o mar, ia e vinha numa boa, a prancha também, estava me sentindo em casa. Jacque, que pensei que pudesse ser mais dura ao ensinar, foi extremamente tranquila, a professora mais calma que tive. "Sou bem de boa assim, sabe? Acho que não tem porquê ser diferente. O ensino tem que ser bem tranquilo, até pra pessoa assimilar. Cada um tem um método de dar aula. Pra mim, tem que ser de uma maneira que todo mundo curta, te recomende, volte pra fazer aula contigo." Entre os papos do outside, perguntei o que era mais difícil: correr um campeonato ou dar aula? Ela disse que dar aula, porque tem a frustração da pessoa quando não consegue, tem a técnica que você tem que ensinar e não só aprender a fazer.
Saí da água depois de horas, mas não antes de ela me empurrar em algumas ondas. Terminar assim é fácil. Resolvi dar um mergulho sem prancha para ver os siris no fundo do mar e a Jacque resolveu pegar umas ondas. Fiquei ali, meio no outside, para ver ela surfar de perto. Jacque, ao vivo, surfando na minha frente. Aproveitei tudo o que podia aproveitar.
Saímos para almoçar e, depois do almoço, Jacque me perguntou se eu queria surfar de novo. Ela explicou que "no camp, o surf é na velocidade do surfista, se quer mais, voltamos pro mar". Eu estava cansada e ainda enrrugada da queda da manhã e decidimos fazer um passeio diferente, aproveitar o mar transparente. Partimos para as piscinas naturais da Barra da Lagoa. Saímos a pé, passamos na casa dos pais da Jacque, que era no caminho. Conheci sua família e seus cachorros. Uma casinha simpática e percebo que são uma família bem unida.
Em seguida, era hora de fazer uma trilha para a praia — em alguns trechos, patinamos na lama, não teve como escapar. Um caminho lindo, vistas de perder a fala. Dei um mergulho no mar, totalmente transparente. Estava um pouco cheio, era sábado e o dia era quente. Jacque disse que estava fazendo turismo, pois havia bastante tempo que não ia lá. Foi gostoso poder fazer algo com ela que ela mesma não fazia faz tempo. Voltamos conversando, tomamos um café da tarde já de volta à casa dela.
Dia cheio, remada, trilha, subidas, muita lama e água ótima. Deitei para ver os vídeos da GoPro que deixei na prancha e acabei apagando de tão cansada. À noite, comemos sushi em casa — a essa altura, eu já me sentia bem à vontade, abria as gavetas, comia chocolate. Eu estava com a maior vergonha de pedir pra colocar na novela, mas, quando falei, descobri que a Jacque também estava assistindo, passamos a noite conversando. Minha perna doía, meus braços doíam, mas era uma dor boa de mar.
Dia 4 - 20/1
Era último dia, hora de ir embora, mas não sem antes aquela rotina boa de surf. Acorda, toma café, vê o mar e vai. Foi ótimo. O mar não estava como no dia anterior, mas dava para surfar. Foi o dia que mais consegui me dar bem com a prancha do Akiwas, vou ficar com ela. Jacque me disse para escolher uma menor agora e insistir nela, parar de trocar por enquanto. Farei isso. Foi o dia também que mais pessoas vieram falar conosco, que os pássaros estavam pescando no mar perto de nós e o sol lutava para sair no meio de nuvens escuras. Não saiu, mas não choveu.
Percebi no pouco tempo que estive lá a diferença que faz alguém como ela te dar dicas, ficar olhando você, remando do seu lado. A Jacque remava para entrar na onda comigo e foi ótimo porque eu pude ver o tempo dela ao entrar na onda. Me ajudou bastante. Saí da água muito feliz, realizada.
Arrumei minhas coisas, Jacque me ajudou com as pranchas e fomos para o aeroporto. Chovia na hora de sair, e as estradas já haviam desmoronado na semana anterior por conta de um forte temporal. Optamos por dar a volta na ilha, o que achei ótimo, conheci um pedaço que ainda não conhecia. Fomos o caminho todo conversando, ouvindo musicas, cantando "Despacito"...
Nos despedimos no aeroporto, eu estava esgotada mas voltei com um sorriso enorme no rosto. Havia sido até mais do que eu esperava. Ganhei de brinde um muque no braço pela primeira vez, lições de surf preciosas, a energia boa das pessoas todas que a Jacque me apresentou e, mais do que uma professora de surf, uma nova amiga.
Volto no segundo semestre do ano. Temos mantido contato, vou pra Costa Rica no final de fevereiro e ela já está me dando muitas dicas a partir da experiência que teve quando levou algumas meninas para surfar lá.
Agradecimentos: Akiwas Surfboards, Andrew Serrano Surfboards, Cirrus restaurante, Krugans praia, Artesano Pizza Bar, Magnet Wax, Bummerangue Crepe, Sushi Gourmet, Unica Produtos Naturais, Grupo Sun camisas.
Créditos
Imagem principal: Cíntia Domit Bittar
Fotos: Cíntia Domit Bittar