A pandemia nas prisões femininas
A médica Gabriela Costa, que já passou 76 semanas presa, reflete sobre as condições de saúde, física e mental, que as mulheres enfrentam no cárcere
A falta de notícias dos familiares, o medo de adoecer e o tempo que custa a passar permeiam a realidade das mulheres que estão atrás das grades. Nas últimas semanas, esses temores ganharam outras proporções com a pandemia que se espalha do outro lado dos muros e ameaça se disseminar dentro das cadeias brasileiras. A médica Gabriela Costa, de 36 anos, tem se dedicado integralmente a cuidar dos pacientes contaminados pela Covid-19 em um dos hospitais em que trabalha em São Paulo mas, até pouco tempo atrás, estava entre as 37 mil mulheres encarceradas no Brasil.
“Na cela especial, somos favorecidas com atendimento médico e, mesmo assim, é pavoroso”
Gabriela Costa, médica
Se o cenário não é otimista do lado de fora, dentro das cadeias se torna ainda mais complexo. "Eu consigo resumir a situação que imagino em uma palavra: caos", diz ela. Em uma entrevista por vídeo-chamada, a médica conta como imagina que a pandemia vem afetando a vida de mulheres presas, com base em sua vivência na Penitenciária Feminina Sant'Ana, que abriga 2230 detentas na zona norte da capital paulista. "A aglomeração já é uma realidade na prisão. O isolamento de quem está no grupo de risco ou com suspeita tem que ser feito da maneira mais racional possível, com testes e distanciamento entre as pessoas. Mas se nem aqui fora temos testes suficientes… Além disso, tudo que uma presa recebe, como a comida, passa pela mão de muita gente e o coronavírus se espalha por objetos. É bem complexo, não vejo muito como prevenir as contaminações."
Entre julho de 2018 e dezembro de 2019, Gabriela ocupou uma cela especial de cerca de 6 metros quadrados na Penitenciária Feminina Sant'Ana, unidade que foi inaugurada como presídio masculino, em 1920, e passou a receber somente mulheres a partir de 2005. Más condições sanitárias, alimentação de baixo valor nutricional e convivência com surtos de doenças, como infecções de garganta e tuberculose, somam fatores de risco para contaminação por coronavírus. "É uma cadeia velha, muito empoeirada, extremamente mofada. Asma, inclusive, é um problema muito grande lá dentro", explica.
“Quando a gente acordava e as celas eram abertas, era todo mundo se abraçando. A carência lá é muito grande.”
Gabriela Costa, médica
A dificuldade em receber atendimento médico é responsável por criar um ambiente de pânico constante. "Na cela da minha frente, tinha uma mulher de 70 anos com artrite, hipertensão, entre outros problemas de saúde. Se ela entrasse em insuficiência respiratória à meia noite, por exemplo, talvez fosse atendida por algum profissional da enfermagem, que não pode fazer muita coisa e nem tem os equipamentos para socorrê-la. Então ela teria que ser levada a um hospital por uma ambulância, o que só acontece se tiver escolta disponível. Era para ser um serviço 24h, mas não é bem assim que acontece", relata. "Na cela especial, somos favorecidas com atendimento e, mesmo assim, é pavoroso. As pessoas podem morrer lá sem assistência. Essa é a verdade."
Se enfrentar uma pandemia está sendo difícil para muita gente, no sistema prisional a saúde mental é ainda mais prejudicada. "O ambiente hostil cria uma sensação de constante perigo. O estresse psicológico permanece nas vinte e quatro horas do dia, invadindo sonhos e mantendo os sentidos em alerta. Vivendo nesse rolo compressor, somos obrigadas a encontrar uma forma qualquer para sobreviver", escreveu Gabriela em "O tempo", texto publicado este ano dentro de uma coletânea que reuniu produções de mulheres egressas do sistema prisional. As medidas de distanciamento podem interferir até os poucos momentos de afeto, que funcionam como um respiro em meio ao desamparo. "Quando a gente acordava e as celas eram abertas, era todo mundo se abraçando. A carência lá é muito grande. Sem o carinho da família e das companheiras deve estar sendo muito complicado."
Para ela, que fazia parte da pequena parcela de presas que recebia visita aos finais de semana, o tempo se resumia, em geral, à espera do próximo encontro, do próximo abraço, da chegada de notícias de familiares e amigos. Com a suspensão de visitas em presídios de vários estados para conter o avanço da Covid-19 e o comprometimento de alguns serviços dos Correios (que permitem o envio e recebimento de cartas), o cárcere pode ter virado uma caixa-preta. "Acredito que a maior preocupação das mulheres que estão presas agora é falta de notícia. A gente tinha mais medo dos nossos parentes ficarem doentes e morrerem do que nós mesmas. Em condições normais, se alguém de fora morre, demora uma semana pra você ficar sabendo, dependendo da boa vontade da diretoria", relata.
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Em nota, a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo informou que segue as determinações do Centro de Contingência do Coronavírus e que vem reforçando a distribuição de máscaras e produtos de higiene, como álcool em gel e sabonete. Os servidores que fazem parte do grupo de risco foram afastados e presas idosas, gestantes e portadoras de doenças crônicas estão em um pavilhão separado da população geral. Sobre a comunicação, informa que "uma equipe tem falado com os familiares para obter informações e tranquilizá-los quanto ao estado de saúde das presas" e que "somente uma presa, da Penitenciária de Mogi-Guaçu, está em observação em todo o Estado por apresentar sintomas semelhantes ao coronavírus".
Vivendo o confinamento
Gabriela foi presa pela primeira vez em 2010, em Belo Horizonte, sua cidade natal. Passou 52 dias no cárcere até ser liberada para responder ao processo em liberdade. Em julho de 2018, depois da determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) para o cumprimento de pena a partir de condenação em segunda instância, voltou a ser presa na grande São Paulo, onde morava e trabalhava como médica concursada. A soltura veio em dezembro de 2019, após o STF voltar atrás da mesma decisão.
“O cárcere é a forma mais cruel de isolamento e a pandemia tem isolado as pessoas em casa e os doentes nos hospitais”
Gabriela Costa, médica
Dentre as acusações estão formação de quadrilha, extorsão, sequestro e duplo homicídio qualificado. "Gabriela foi extorquida pelo chefe de uma quadrilha, ameaçada por ele e coagida a fazer transferências bancárias das contas das vítimas. O Ministério Público sustentou a acusação de que ela teria chefiado a execução dos crimes, ainda que nenhuma prova tivesse sido apresentada. Mesmo assim, baseando-se em matérias jornalísticas que a investigaram, culparam e a sentenciaram, de antemão, foi condenada pelo júri popular", diz Maria Luiza de Souza, esposa da Gabriela, que é advogada. Hoje, a médica responde ao processo em liberdade.
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Especializada em medicina intensiva e emergência e trabalhando na linha de frente do combate ao coronavírus, Gabriela busca alentar famílias e pacientes confinados: "O cárcere é a forma mais cruel de isolamento e a pandemia tem isolado as pessoas em casa e os doentes nos hospitais. Consigo sentir os momentos de medo e angústia dos pacientes, e o distanciamento dos entes queridos os torna ainda mais vulneráveis", diz. "O cenário de guerra que estou vendo é assustador, mas a cada alta hospitalar, a cada recuperação, sei que estou onde eu gostaria. No momento que sei que algum paciente vai retornar ao seu seio familiar é como se eu estivesse mais perto da minha família também."
Caso a caso
No último levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), divulgado no fim de abril, dentre as mais de 37 mil mulheres encarceradas foram identificadas 4.052 que possuem doenças crônicas (as mais comuns são hipertensão, HIV e diabetes) ou doenças respiratórias. Além disso, 208 estão grávidas e 434 possuem idade igual ou superior a 60 anos. Nas penitenciárias femininas do Estado de São Paulo, 17% (649 presas) de um universo de 3.815 detentas pertencem ao grupo de risco para Covid-19, de acordo com a SAP.
Enquanto pedidos de liberação coletiva são negados pela Justiça, sob o argumento de que isso poderia gerar uma crise na segurança pública, milhares de mulheres já poderiam estar em casa pela lei 13.769/18 e o Habeas Corpus coletivo nº 143.641, que preveem que presas provisórias, mães de crianças de até 12 anos, com necessidades especiais ou gestantes cumpram prisão domiciliar. Tentando amenizar a situação, no dia 20 de março de 2020 o CADHu (Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos) entrou com uma petição pedindo ao STF que a lei seja cumprida, o que não vinha acontecendo por uma série de entraves jurídicos.
"Pedimos a soltura das cerca de 5 mil mulheres que já deveriam estar em casa e de tantas outras que poderiam ser beneficiárias da ação em tempos de pandemia", explica Bruna Angotti, professora de direito do Mackenzie membro do CADHu. "O STF encerrou a ação e jogou a bola para o Legislativo e para o Conselho Nacional de Justiça. Agora, resta analisar a soltura caso a caso. Existem outros pedidos de Habeas Corpus coletivo para este momento, mas que não são voltados especificamente à situação das mulheres".
Créditos
Imagem principal: Carol Ito