A casa que nos habita

por Maria Ribeiro
Tpm #157

Organizo meus endereços por afetos, e já não acredito em árvores, vista, silêncio ou metragem

Joaquim Campos Porto, 226, Viúva Lacerda, 428, Miraíma, 54, Araucária, 159, Maria Angélica, 401, Jequitibá, 1, José Condé, 285. Sete ruas, 39 anos, dois únicos telegramas. Já não me lembro dos CEPs, me perdi nos telefones e começo a misturar os Natais. Pode ser que com o tempo esqueça também dos números das casas e dos apartamentos, lembrança quase sem caráter (tipo muito importante na hora e totalmente dispensável depois), como texto de novela e dor de parto. Mas cada casa em que vivi foi uma possibilidade de mim que foi embora, como um ex-namorado querido ou o violão que abandonei pelo caminho.

Organizo meus endereços por afetos, e já não acredito em árvores, vista, silêncio ou metragem. Morei em casas enormes e apartamentos apertados e fui feliz e infeliz igual. Achava que não gostava de mudar e depois descobri que podia ser outra pessoa a cada bairro novo, com uma sensação de futuro tipo dentes recém-escovados ou primeiro dia de escola. Fui me reconhecendo a cada Kombi esvaziada, e sempre achei que daquela vez iria ler Guerra e paz ou fazer ioga séria, do tipo que se pronuncia com acento circunflexo.

Pois bem. Não li nem um quinto do que eu achei que teria lido na minha idade, e também não descobri até agora a endorfina viciante do pessoal que se exercita. Sou uma garota indoor e a dupla sofá e aparelho de TV é praticamente minha religião, sorvete incluído aí. Mas, mesmo não sendo um ser do esporte, tenho orgulho de dizer que nunca me esquivei das bolas que recebi. E fui jogando o futebol possível, tentando aproveitar, à la Iniesta, mais os passes do que os gols. E mais os parceiros do que os campos.

Alguns projetos atravessaram mais de um endereço, e ser mãe no Parque Lage foi muito mais difícil do que ser mãe nos paralelepípedos da Major Rubens Vaz, onde, cercada pelo amor do Caio, pude fazer tudo diferente.

Aliás, não vejo quase nada em comum entre as sete vidas às quais tive direito até aqui. Talvez, no máximo, o moço do ferro-velho, já que o barulho da Kombi e do megafone se fizeram presentes em pelo menos metade desse circuito.

Quando deixei o Jardim Botânico pra morar no Humaitá não deixei um armário com um pôster do Tom Cruise ou um deque lotado de brinquedos caídos por 15 anos entre as ripas de madeira da piscina; deixei meu irmão tocando Baden Powell, o vinil do Kid Abelha em que eu ouvia "Fixação", a lembrança do dia em que meu pai saiu de casa. Deixei os primeiros homens com quem morei e o ensaio da mulher que viria a ser se tivesse sido do jeito que eu era então.

Na casa nova, mais oito anos, a primeira falta de ar e novos amores. Padrasto, primo, primeiro namorado, a turma do teatro, marido, as grandes amigas.

Não gosto de ficar longe do chão, e o mais longe que cheguei do asfalto foi um quarto andar num predinho antigo onde, analogicamente, o primeiro andar era primeiro andar mesmo. Ali tive meu filho e li Sidarta. Ali descobri que sou feliz em prédio, e que um pouquinho de barulho faz uma certa companhia. Foi meu primeiro apê, e até dar bom-dia pro porteiro me entusiasmava. 

A vida com vizinhos ficou mais forte ainda na Gávea, bairro em que nasci e com o qual tive a maior identificação. Talvez tenha sido minha parada mais feliz, com conta na banca de jornal, balé na esquina, cinema a pé, criançada no play. O meu Rio é mais montanha que praia, e mais personagens que cenário.

Vivi em São Paulo algumas vezes, e fui especialmente feliz na Bela Cintra, num flat feio e sem charme, onde eu ocupava 40 metros quadrados. O quarto era mal projetado e o banheiro, mínimo. Mas ali, entre chopes no Sujinho e fidelidade black na Onofre, eu meio que tracei os últimos dez anos da minha vida. Anos em que eu acreditaria no amor, teria mais um filho, e conheceria no mínimo um país por ano. 

Dez anos que se encerram agora, de onde, do meio da floresta e depois do furacão, planejo o segundo tempo do jogo com meus três rapazes. Dois garotos e um homem que fizeram de mim o que eu queria ser desde o primeiro endereço: uma mulher.

Maria Ribeiro, 39 anos, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de eliteTropa de elite 2 e é uma das apresentadoras do Saia Justa, do Canal GNT. Seu e-mail: ribeirom@globo.com

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