Quem tem pouca familiaridade com pessoas com deficiência crê que a cegueira é a pior
Às vezes se colocar na pele de alguém pode parecer que sabemos do que o outro precisa, sente, gosta ou detesta. Na verdade eu encaro isso como uma ficção! Por mais que entremos na sensação ou nos sentidos de alguém, chegamos com a nossa história de afetos e as reações moldadas pela própria experiência.
Lembro do meu amigo cego dizendo que esse papo de botar vendas pra saber o que o cego sente não tem nada a ver com a autêntica cegueira, pois uma de suas principais características é continuar cego no dia seguinte.
Fomos, eu e o Alfredo, num jantar no escuro. As pessoas foram vendadas num ambiente de penumbra à luz de velas. Na área externa do restaurante Capim Santo, ouvíamos o barulhinho da chuva nas árvores entre acordes de um violão que mudava de lugar. Em alguns momentos fiquei de olhos fechados sentindo o sabor do vinho e das delícias gastronômicas, ouvindo os sutis sons de música, da natureza e das vozes, além de sentir o frio que se intensificava na invisibilidade.
Para o Alfredo me alimentar, ele achava minha boca com uma mão, que esperava a outra com a comida e a bebida.
De olhos abertos fiquei observando o comportamento das pessoas vendadas. Curiosamente, eu era quem mais se mexia no jantar. Vendados, sussurravam contidos num espaço mental mínimo, com precisos e pequenos deslocamentos de braços. Atitudes corporais que me fizeram recordar alguns dos meus amigos cegos.
Cinco sentidos
Depois do prato principal, um casal que durante 40 minutos não trocou uma palavra, deu-se as mãos, um outro descobriu que era gostoso beijar de vendas. Aquela atmosfera foi construindo em mim um clima de excitação e uma sensação de que ali podia tudo, ainda mais que ninguém estava vendo. Tive um forte desejo de fazer coisas que só eu saberia que fiz. Esse sentimento cresceu quando as meninas videntes leram poesias instigantes. Nessa hora as vozes amplificaram e já se podiam ouvir algumas gargalhadas.
Quando foi dado o comando para que retirassem as vendas, o ambiente virou uma alegre comemoração. Sorrisos, abraços, brindes e beijos! Por um breve tempo fui tetraplégica e cega! Essa condição pede que a comida, a música e a companhia sejam inevitavelmente gostosas. Num outro momento eu continuava tetra e só eu podia ver!
Percebo no dia a dia, com meu trabalho de inclusão, que quem tem pouca familiaridade com pessoas com deficiência tem uma crença de que a cegueira é desesperadora e a pior de todas as deficiências. Por isso, encerro esta coluna com uma frase clássica e irreparável da referência mundial em surdocegueira, Helen Keller: “A cegueira não é nada. Nada é a surdez. Todos nós somos surdos e cegos diante do que é eterno”.
* Mara Gabrilli, 40 anos, é publicitária, psicóloga e vereadora por São Paulo. Fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP), é tetraplégica e foi Trip Girl na Trip #82. Seu e-mail: maragabrilli@camara.sp.gov.br