A psicanalista coloca abaixo a ideia de que o carioca tem uma beleza ”natural”
Joana de Vilhena Novaes é carioca. Por isso, e por ser psicanalista, está sempre de olho nas paranoias femininas relacionadas à balança e à imagem. Hoje, aos 33 anos, ela coordena o Núcleo de Estudos de Doenças da Beleza e é uma das maiores especialistas nesse assunto no Brasil. Em seu consultório no Leblon, ela recebe a reportagem da Tpm para colocar abaixo o padrão de beleza “natural” do carioca, falar de Ivete Sangalo na final do BBB e revelar que o salmão (ele mesmo, o peixe) é o novo inimigo da mulherada do Rio
Se for pelo sotaque, Joana é especialmente carioca. A carioquice só é posta em xeque quando ela assume que gosta de maquiagem, faz peeling no rosto e come salmão sem nenhuma culpa. Aos 33 anos, Joana de Vilhena Novaes é psicanalista, uma das maiores especialistas do Brasil em questões relacionadas ao corpo. Mede 1,72 metro, pesa 64 quilos e tem IMC 21,6 – dado importante nesta entrevista, já que, hoje em dia, mulher e IMC têm uma relação séria, um casamento.
Joana é entendida no assunto corpo, mas nem por isso alheia à cobrança generalizada de uma aparência perfeita, jovem e sempre em forma. Tem personal trainer, toma suco diet e come Polenguinho light – como esta repórter viu na geladeira de seu consultório –, já se “estrepou” numa aula de ioga em busca de resultados incríveis e odeia ir à academia. Quando se fala em boa forma física, Joana é bem carioca. Pudera, já que na orla o corpo faz as vezes de roupa, e uma “bunda metralhada” ou barriguinha sedentária parece ofuscar a paisagem do Rio de Janeiro. “Esse discurso de culto ao corpo atinge a todos. Dificilmente encontramos alguém que não esteja preocupado com a taxa de colesterol ou de açúcar.
Se preocupar com o corpo entrou na moda, é sinônimo de saúde, e quem não adere é visto como um criminoso. Independente se você é gordo ou é magro”, diz.
“Tem meninas de 5 anos que não querem tomar refrigerante por causa da celulite. Essa corpolatria só piorou de 20 anos pra cá"
Opinião de peso
Filha de um sociólogo e de uma psicanalista, Joana nasceu em uma família de classe média alta da zona sul carioca. Sempre teve tempo, e incentivo, para estudar. É doutora em psicologia clínica na PUC-Rio, coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da mesma faculdade, pesquisadora em obesidade, duas vezes pós-doutora pela Uerj e autora de dois livros: O Intolerável Peso da Feiura e Com Que Corpo Eu Vou? – este último com previsão de lançamento para o próximo semestre.
Há alguns anos, a psicanalista foi malhada por parte dos 23 milhões de obesos do Brasil*. Depois de dar uma entrevista para um jornal do Rio em que dizia que “gordos são párias”, ela teve que se explicar em diversos veículos cariocas, paulistanos e internacionais. Deu entrevista para o New York Times, falou à Veja, e à Folha de S.Paulo. “A frase é reprodução do que as minhas entrevistadas me diziam: ‘Os gordos são tratados feito párias’. Não podem ir à praia sem serem olhados com cara de nojo ou pedir uma torta doce, um brigadeiro sem serem recriminados e ouvir ‘tá vendo, é por isso que você é gordo’. A sociedade tem um olhar muito cruel sobre as pessoas gordas e negar isso não vai mudar a situação em nada”, afirma.
Parceira da Tpm há quase um ano, suas opiniões podem ser lidas em matérias da campanha Imagem não É Tudo, como “Faz parte” (Tpm #91) e “Você é feia?” (Tpm #92). Em três baterias de entrevista – em São Paulo, outra por telefone, e no Rio –, conhecemos de perto essa estudiosa. Desde os 12 anos, quando pediu à mãe para ser matriculada em uma academia de ginástica, ela está de olho numa sociedade em que comer salmão vira pecado; crianças tomam refrigerante light com medo da celulite; e – ainda bem – Ivete Sangalo não tem pudor em arrasar num vestidinho micro na final do BBB. De olhos esfumaçados para a foto de abertura, peeling recém-feito e com uma crítica coerente à ditadura do corpo perfeito, Joana recebe a reportagem da Tpm no consultório que divide com a mãe, no Leblon.
* Segundo pesquisa mais recente do Ministério da Saúde, 43,3% dos brasileiros estão acima do peso e 13% são obesos
Tpm. Não houve uma pessoa que passasse batido por você em sua caminhada no calçadão de Ipanema antes de posar para as fotos desta matéria. Por quê?
Joana Novaes. Carioca tem muito preconceito com maquiagem, chama a atenção eu estar maquiada na praia. A maquiagem carioca é para parecer que não se está maquiada. Este cabelo panterão, este olho esfumaçado para o carioca não cabem, porque o ideal de beleza é outro.
Qual é o ideal de beleza carioca?
O da beleza natural. As pessoas têm é que estar com aparência saudável e corpo bronzeado – e, de preferência, não muito perua. Só que essa beleza “natural” muitas vezes não é nada saudável. E sim uma beleza conquistada com dieta ou malhando feito condenada. A da maquiagem que não dá pra perceber e do cabelo molhado liso, pretensamente desarrumado. A menina que quer ter esse cabelo liso gasta uma grana aqui no Rio. Como o cabelo é o valor máximo no ideal de beleza da mulher carioca, a escova progressiva faz sucesso porque supre o sonho delas de saírem do mar de cabelo molhado e já liso...
Quem é um ícone da beleza carioca hoje?
A Cynthia Howlett. Representa o corpo saudável direitinho. Ela é um ícone carioca porque faz esportes ao ar livre, tem uma alimentação natural. Ela tem essa estampa do cabelo molhado, da sandália rasteira, de zero de maquiagem e, pronto, tá linda! Parece que isso é natural, mas outro dia li em uma entrevista que ela tem um supercuidado com a alimentação, com o exercício, se comer um pouquinho a mais sábado à noite corre todos os dias da semana. Ou seja, tem uma rotina brava. Pode ser natural se ela naturalizou. O exercício físico é algo tão incorporado na vida do carioca que ele não vai te dizer que aquilo é um esforço, que é trabalhoso... Se sente culpado quando não malha. É como escovar os dentes, tomar banho, a agenda já tem que contemplar esse espaço para malhação.
O culto ao “natural”, tão visível na cultura carioca e de praia em geral, não é natural?
Não. Porque não é necessariamente saudável. Basta ver que tem muita gente lesionada, as pessoas se arrebentam, pegam peso demais. Ou seja, tem uma preocupação com a estética e com o queimar calorias que se afasta da atividade física pura e simplesmente como um meio de relaxamento, o que, aí sim, seria mais saudável. A preocupação é ter um corpo que assume características muito mais atléticas. Ser carioca tem muito a ver com essa coisa do “cuidar do corpo é uma coisa divertida”.
E não é divertida?
Não é. Dá trabalho. Ninguém faz exercício com cara de prazer. Você precisa de iPod ou alguém te motivando para comer uma torta? Não precisa. A aula de local, por exemplo, é uma invenção carioca. Esse corpo bonito que você vê com roupa de ginástica ou biquíni indo para a praia é o corpo da aula de local. Esse era o corpo que eu e minhas amigas, na adolescência, queríamos ter: coxa definida, a preocupação com a bunda e o abdome sequinho. Essas coisas de cidade onde você expõe o corpo. A bunda não pode estar toda metralhada.
Metralhada?
Outro dia vi a Claudia Leitte dizendo para o personal dela que não podia estar com a bunda toda metralhada, essa é uma expressão bem carioca. A bunda é um valor, você vai à praia e não vai tirar a canga? Vejo as minhas pacientes, tem meninas de 4, 5 anos de idade que não querem tomar refrigerante por causa da celulite. Não é uma característica só do Rio de Janeiro, essa corpolatria só piorou e intensificou de 20 anos pra cá.
Quem inspira essas crianças?
Vem da mídia e das mães, que são inundadas com imagens de corpos emagrecidos, retocados. As pessoas chegam no consultório e dizem: “Minha filha tem 5 anos e não quer comer pizza, não quer tomar Coca-Cola”. Eu pergunto: “Como é a sua alimentação?”. A criança reproduz atitudes que são familiares. E a gente sabe que a menina faz balé, na escola vai ter uma cobrança.
A Organização Mundial da Saúde declarou que já existem 42 milhões de crianças de até 5 anos obesas no mundo. No Brasil, essas crianças não são as que vão ao seu consultório.
São as que eu atendo no hospital público. As que vão ao meu consultório são crianças de classe média, classe média alta.
É um fenômeno mais classe média, então?
Sim, assim como a mania de comer sashimi. No Rio de Janeiro tem uma temakeria em cada esquina. Outro dia estava comendo um salmão e chegou uma conhecida: “É uma delícia com um limãozinho, mas salmão é gordo. Era melhor pedir atum”. Eu falei: “Ninguém vai comer salmão com culpa aqui, meu amor. Ou senta e come com a gente ou vai embora” [risos]. É um inferno. As mulheres estão mais preocupadas com seus hemogramas do que com os namorados.
Está rolando um levante contra o salmão?
O salmão virou o novo frango [risos]. Antes era pecado comer frango por causa dos hormônios. Agora o pecado é comer salmão: “Meu médico falou que é muito colesterol”, “Ah, mas a minha nutricionista disse que é pra gente não comer salmão, lá em casa já cortei porque tem hormônio”. O salmão é o vilão da vez.
O que as academias significam na vida do carioca?
Como a roupa no Rio é o corpo, as academias são como se fossem os shoppings de São Paulo. É muito comum você ver famílias inteiras, a academia vai assumindo o papel de clube, de cabeleireiro, spa, centros de meditação, ioga. Então é um bem-estar que você está proporcionando a você mesma. É muito sedutor esse discurso porque ele não entra como obrigação, mas como um bem. Quem não vai querer? É um embrulho pra presente pra camuflar toda a parte chata.
“As mulheres estão mais preocupadas com seus hemogramas do que com os namorados”
Você já fez ioga?
Já. E me estrepei. Me deixei levar pelo projeto do desafio, da superação, da resposta rápida do corpo. Tudo isso conjugado a esse discurso contemporâneo de ser forte, vigoroso. Que não é um discurso da ioga propriamente dita, mas que ela atende muito bem. Você se empolga porque acha que começa a ter consciência corporal... Eu me senti absolutamente seduzida por achar que tinha um atleta dentro de mim [risos]. Só que, como eu não tinha uma musculatura preparada e sou muito flexível, me estourei.
Como você se estourou?
Estava fazendo havia dois anos, e me arrebentei em três meses. Comecei a fazer iyengar, depois fui para vinyasa. Quando achei que estava fodona fui para ashtanga. Se tivesse parado no iyengar não teria me machucado. Cheguei a um nível de dor insuportável, fui parar num ortopedista, não levantava da cama. Mesmo eu, uma pessoa que estuda esse tema, fui irresponsável. Isso numa cultura que reforça: “Vai lá, você está indo tão bem...”. Ganhei duas hérnias de disco. Hoje tenho personal e faço um exercício muscular para a coluna voltar a ter tônus, tenho a dimensão de quanto eu teria que ter trabalhado antes para poder fazer o que eu fiz na ioga.
A quem você atribui essa responsabilidade?
A essa cultura do “vai lá” e também a mim. A resposta imediata, as pessoas lindas, comercial de margarina. Você olha o cara ao lado e não quer ficar excluída. Você entra numa academia e te convocam logo a correr uma meia maratona. A se engajar em algum plano de treino, mesmo que seja uma coisa bem suave, mas para que você consiga competir. É uma cultura que te estimula fortemente à superação de limites.
Junho é mês de Fashion Rio e Fashion Week. O discurso das mulheres magérrimas vem à tona de novo. Elas continuarão magérrimas?
Não acho que dá para manter por muito tempo essa estética da morte. Não é uma estética da vida. Você olha aquelas top models da década de 90, vai vendo que é um corpo mais andrógino, depois mais Gisele Bündchen, depois mais emagrecido, e o atlético. O corpo dessas modelos, fumando e tomando Coca Zero, não tem nada a ver com a moda do corpo saudável.
Há diferença entre a obsessão pela magreza e pelo corpo saudável e “rasgado”?
O estado de corpolatria se mantém em ambos os casos, já que o corpo é um lócus fundamental de investimento contemporâneo. Mas o corpo emagrecido não sustenta mais tanto tempo. O que vai pegar é o corpo do advento da tecnologia, de alta performance, o corpo atlético, da superação de limites, o corpo das próteses. É a realização desse sonho humano de imortalidade. Sobretudo em época de Copa, Olimpíada. A tendência desse corpo atlético é quase um projeto de eugenia...
A indústria de cosméticos, com o mote “anti-idade”, faz parte desse projeto?
Sim. Ainda mais no Brasil, onde essa indústria entende que a brasileira quer ver logo o resultado, “melhore sua pele em três semanas”. O extermínio do envelhecimento, o apagamento das marcas do tempo tem muito a ver com esse ideal de estética. Da beleza chapada, das capas de revista, do corpo hi-tech. Cada vez que se vê uma celebridade a questão é: “houve Photoshop?”. Me lembrei de uma frase do Ronaldinho: “Eu nem sei como é que é peito sem silicone”.
A Ivete Sangalo deu um show de “estou gordinha, e daí?” na final do BBB 10. Já a Claudia Leitte, semanas depois de ter bebê, estampava nas capas de revistas sua “volta ao peso”. Como vê esses dois extremos?
Você vê que a Ivete teve filho. A Claudia Leitte encarnou algo que está se tornando um valor, o mommy job, a pessoa que tem filho e já faz uma lipo. Não sei se ela fez, mas não é normal voltar ao corpo de antes como voltou. A Ivete estava no trio elétrico mesmo rechonchuda. Para alguém com uma exposição como a dela é corajoso. Acho perigoso a Claudia Leitte agir assim porque pode virar um ícone de como as mulheres têm que ficar depois da gravidez. A Ivete poderia ter sido tratada como a Preta Gil, e não foi.
A Ivete virou o que os homens chamam de “gordelícia”?
Acho que sim, porque em nenhum momento ela deixou de ser objeto de desejo, nem na mídia. Ao contrário da Preta Gil, que no estereótipo fica no lugar da gorda. Você percebe por parte da mídia que é sempre um olhar maldoso. A Ivete é a simpática, gaiata, gostosa. Só não sei se daqui a um ano, se ela continuar com esse corpo, a mídia não vai cair de pau.
Como é sua relação com as amigas?
Elas vêm falar que estão gordas, que não estão felizes com o próprio corpo? Este é um assunto de mesa de bar. Muito antes de eu ser especialista isso já era o papo. Gosto do tema porque ele não se restringe ao mundo acadêmico. Numa fila do cinema tem alguém comentando da celulite, estou correndo na lagoa e ouço alguém falando que comeu um pedacinho de torta a mais, então precisa aumentar o tempo de corrida. Vou à farmácia e ouço as pessoas dizerem como as lojas estão diminuindo o número do manequim. Ou seja, em todo e qualquer ambiente há alguma queixa, alguma constatação do esquema policialesco que a gente vive com relação à balança.
As suas amigas têm esse tipo de conflito?
As minhas amigas e o mundo. Tenho amigas mais peruas, hippies, mais encanadas, menos encanadas. Tinha uma que, até há pouco tempo, eu pensava: “Essa realmente tá em paz...”. Fez uma cirurgia bariátrica [para a redução do estômago] há seis meses. Você hoje em dia precisa ser cada vez menos gordo para ser considerado gordo, e mais magro para ser considerado magro. E quando me perguntam “mas é possível uma gordinha feliz?”. Possível tudo é, mas é cada vez mais raro ver uma pessoa que se sinta plenamente satisfeita.
É possível que uma pessoa sinta orgulho em ser gorda?
O que é possível é o não enquadramento, o “não estou a fim de compactuar com as regras do jogo”. Mas isso não é equivalente a se sentir bem. A obesidade cresce assustadoramente, 14% ao ano. Em grande parte do meu livro [O Intolerável Peso da Feiura], há pessoas gordas me dizendo que gostariam de ser magras. O grande incômodo delas é “as pessoas não me deixam ter o direito de ser gordo”. Isso é diferente de ter orgulho. O orgulho em ser gordo é você estar pondo sua vida em risco, é um quadro clínico, a obesidade é uma patologia. Claro que não acho certo todo mundo achar a gordura horrorosa. Sou supercriticada por isso, mas não acredito que alguém possa sentir um real orgulho em ser gordo.
Existe gordo saudável?
Existe. O Jô Soares é um exemplo. Mas tem que monitorar o tempo todo porque ele é sempre alguém com a propensão muito maior a ter problemas.
Chamar alguém de gordo virou xingamento?
Para homem não, mas para mulher sim. Vi uma história em quadrinhos com mulheres pensando: “O que seria melhor do que ser milionária? Ser magra”, “O que seria melhor que ter um amante com a cara do Brad Pitt? Ser magra”, e por aí vai. Ser magra é a melhor coisa de todos os tempos. Obviamente ser gorda é um xingamento. E já recebi uma historinha da mulher xingando o homem: “Você é um mau-caráter, um filho da mãe”, quase um pergaminho de xingamentos. O cara só dizia: “Você é gorda”. Quer destruir uma mulher? Chama ela de gorda.
Os homens têm consciência disso?
Outro dia estava com um amigo todo saradinho, lutador, o tipo que mais se vê na zona sul. E ele falando: “Mulher é fogo, te pergunta as coisas e depois não quer ouvir”. Ele tava na praia ficando com uma menina e ela perguntou: “Você acha que eu tô gordinha?”. E ele: “Sinceramente? Tá. Tá gostosa, mas tá meio gordinha”. Na sequência ele falou: “Não, mas eu morro de tesão por você”. Acabou. A menina nunca mais ficou com ele. Ele acabou com a autoestima dela.
No morro ou no subúrbio é diferente?
Durante as pesquisas para o meu livro, ouvi várias mulheres pobres. Achava que elas não tinham consciência de estarem gordas, mas estava enganada. Elas diziam: “Sei que eu tô gorda, mas não deixo de ouvir ‘gostosa’, o nego não deixa de comparecer sem dó nem piedade, eu não deixo de passar o rodo geral”. Enquanto as mulheres de classe média diziam: “Se eu não estiver magrinha, sequinha, me sinto uma merda, ninguém olha, não quero nem namorar, não vou nem à praia”.
“Hoje tudo se resolve correndo na praia com um iPod, um fim de semana no campo, um leite desnatado, um pão integral”
O que é ser bonito hoje?
O ideal de beleza é ser magro, jovem. Eternizar a juventude e ter um modo de vida alegre. É um cenário onde você tira tudo que é desagradável, feiura, velhice, doença. A beleza está associada a uma atitude desencanada, de bem-estar, de não ter angústias. Não vivemos numa cultura que tolera tristeza, vira logo depressão e você medica. É um sujeito meio chapado. Pelo menos nos comerciais a beleza está muito associada a isso: pessoas conectadas, hi-tech. Tudo se resolve correndo na praia com um iPod, um fim de semana no campo, um leite desnatado, um pão integral.
E o que é a feiura?
A feiura é o que nossos olhos estão cada vez menos acostumados a ver, o que a indústria cultural contemporânea não mostra: os gordos, os velhos, os imperfeitos. Qualquer tipo de mazela, paralíticos, aleijados. Tira a feiura, vai limpando. É quase o que a gente faz com a construção dos shoppings e dos condomínios, você reproduz a cidade eliminando o que há de feio nela, os cheiros, os sons, os mendigos, as pobrezas.
Como acontece o sucesso das mulheres-frutas?
Elas não fazem sucesso para a maioria das mulheres. Fazem sucesso entre os homens. O objeto de desejo sofre diferenciações de acordo com o gênero. Sua pergunta prova que um corpo sinuoso, ou um corpo com um percentual de gordura acima do peso, que a gente está vendo na mídia, não se legitima como objeto de desejo.
Isso tem a ver, de novo, com classes sociais?
Em absoluto. Quando eu perguntava para as minhas entrevistadas se queriam ter corpos sequinhos, sarados e para que, nenhuma dizia que era para ter uma vida sexual mais ativa. Nas classes populares não. Vai perguntar para as mulheres de classes mais baixas o que elas acham da Ivete Sangalo, a questão da carne, da fartura. “Ah, acho linda. Queria ser assim, ia ser superdesejada pelos homens.” Esse ranço individualista, esse tom feminista, de ter um corpo para ficar satisfeita, de bem com o espelho, é uma marca do discurso classe média. O corpo que a classe mais baixa quer ter é o que vai passar pelas quebradas do morro e atrair o “gostosa!”.
O corpo que a mulher de classe média quer ter não tem nada a ver com o que o homem deseja?
Não. A Juliana Paes quando emagreceu bastante estava se achando linda, mas a maioria dos homens não gostou. Quando ela ficava satisfeita com o corpo dela os homens reclamavam, quando ela não ficava, os homens elogiavam. A Deborah Secco teve que engordar oito quilos para fazer o papel da Bruna Surfistinha no cinema, precisou ficar mais “desejável”. Não tem nada a ver o corpo que uma mulher quer ter com o corpo que um homem deseja. Às vezes coincide.
As mulheres de classe baixa são sexualmente mais livres?
Elas têm uma relação mais lúdica com o corpo. Não deixam de fazer nada porque estão gordinhas. “Você vê logo que a madame tá gorda quando bota umas batinhas”, me diziam. Há uma inversão aí. Se a mulher de classe média dá uma engordadinha, não usa nada apertado, pra não marcar. As mulheres mais simples mostram o corpo mesmo gordas.
Tem uma máxima do Woody Allen que diz: “Sexo bom é sexo sujo”. Hoje, quanto mais limpo, melhor?
Sim. Vivemos em um mundo que não gosta de cheiros, não é à toa que tem uma farmácia nova em cada esquina. Sendo assim, o sexo também vai ser um sexo limpo, você não usa camisinha, usa galocha, né? Não pode trocar fluidos. É uma cultura do risco, do pânico, da doença. A história do salmão, do hormônio, da gripe suína, da vaca louca. Tem sempre um modo de vida americano que tem que identificar o perigo em alguma coisa fora de você.
A mídia fortalece esse interesse pelo corpo da famosa. Mas ela é a grande vilã ou é o público que quer ver?
É calhorda a mídia dizer que atende a demandas. O ser humano funciona dentro desse sistema do hábito. O corpo é uma construção cultural e social. Então você gosta do que aprende a gostar. Você aprendeu que é feio, toda uma população que comprou aquele discurso insano do Hitler. A gente é capaz de achar qualquer coisa maravilhosa se formos educados de tal forma. No momento, ter o corpo da moda significa mobilidade e ascensão social, inclusão, visibilidade. Significa ser um vencedor.
As mulheres têm usado que tipo de aditivo para emagrecer?
As moças faveladas que atendo estão tomando ração humana [complemento de fibras]. Um farelo, uma coisa de astronauta, dá uma diarreia louca. Como a gente tinha no início do ano 2000 a moda do Xenical, que dava diarreia. A Sibutramina [medicamento inibidor de apetite] tá na moda, tenho amigas que tomam. Psiquiatra, endócrino, todos prescrevem isso. Ela é amplamente usada, tá bem na modinha.
O uso de remédio para emagrecer aumentou?
Nos anos 80 havia um uso indiscriminado de anfetaminas. Hoje a prescrição e o controle são maiores. A Sibutramina hoje equivale ao Rivotril. Todo mundo toma Rivotril para dormir. Oitenta gotas, cinco, duas gotas. É a sociedade das compulsões. Claro, você acelera o sujeito, superestimula e depois quer que ele durma... Eu mesma tenho problema de insônia.
Já tomou remédio para dormir?
Tomei remédio numa época em que perdi minha avó, minha tia, uma cacetada de gente. Nessa hora falei: “Espera aí, preciso de uma ajuda”. Com acompanhamento médico, não sou absolutamente refratária a esse tipo de medicamento. As pessoas, e eu me incluo aí, têm uma vida que superestimula, superexcita, então desligar é complicado.
“Não tem nada a ver o corpo que uma mulher quer ter com o corpo que um homem deseja. Às vezes coincide”
Tem insônia desde menina?
Tem fases. Desde a faculdade, o colégio, sempre produzi de madrugada. Da meia-noite às seis eu sou brilhante. Evito tomar qualquer tipo de remédio para dormir. Prefiro ler, arrumar o quarto, a experiência que tive com ansiolítico me deu altos problemas gástricos. O que acontece é que muita mulher acaba gostando, porque se o efeito colateral é ter diarreia ou vômito você perde peso.
Você trabalha em consultório, hospital, trabalho social, está lançando um livro e terminando o segundo pós-doutorado. Isso não é um superestímulo?
Sim. Mas procuro balancear as coisas. Antes minha profissão vinha antes de qualquer coisa, não vem mais. Penso até em ter filhos.
Para você a ideia de engravidar, engordar, ver seu corpo mudar assusta?
Claro, porque o corpo muda mesmo, já mudou um monte depois dos 30, o metabolismo fica claramente mais lento. Eu me assumo vaidosa, vou gostar de estar mais sequinha quando resolver engravidar, mas sem paranoia.
Por estudar o que estuda, nota uma surpresa das pessoas ao verem que você é uma mulher bonita?
Antes elas se surpreendem por eu não ser velha. As pessoas têm mania de achar que, por você se dedicar ou escrever sobre algum assunto, é porque ele é autobiográfico, então elas também se assustam quando descobrem que eu não sou feia. É claro que todo pesquisador, em maior ou menor nível, estuda algo que o mobiliza, o incomoda... Mas sei que tem muita gente que pensa que porque escrevo sobre este tema, sou uma baranga [risos].
Fotos Fernando Young e Arquivo pessoal Maquiagem Rogério Mesquita (Capa Mgt) Agradecimento Patrícia Fan, nutricionista