Faz sol na Catalunha

por Nataly Cabanas
Tpm #90

Barcelona recebe 6 milhões de turistas por ano, como a atriz e jornalista Nataly Cabanas

Barcelona tem a Sagrada Família, a rumba catalana, o Pep Guardiola, o pão com tomate, o parque Güell, a cava, o festival Sónar, o trio Picasso-Miró-Dalí, os estudantes Erasmus, a horchata de chufa e um metrô que funciona durante toda a madrugada de sábado. Barcelona alimenta lendas e verdades urbanas: o homem que passeia nu, Manu Chao tem um bar na cidade, Cristóvão Colombo era catalão e Picasso pintou o quadro Les Demoiselles de Avignon, inspirado num bar que frequentava no Bairro Gótico.

Mas não foi por isso que escolhi passar um tempo aqui.

Inverno – um cobertor de nuvens
Oeste da cidade, Carretera de les Aiguas. O vento frio atravessa meus ossos, a neblina tenta cobrir os postes, mas é possível ver os andaimes e os mosaicos coloridos nas torres da Sagrada Família. Quando as nuvens baixam, a Torre Agbar, um prédio projetado pelo arquiteto francês Jean Nouvel que a gente apelida de “pintão” (pelo formato), e las torres gemelas do Porto Olímpico desaparecem do horizonte, tomado por predinhos.

Algumas nuvens ameaçam tapar o céu sempre azul de Barcelona. Ela, la niña modernista e mais avant-garde das cidades da Espanha, está acostumada a se encolher quando o tempo aperta. Passada de mão em mão desde 218 a.C., os romanos a travestiram de Barcino. Quatro séculos depois foi sequestrada pelos visigodos e, em 711 d.C., invadida pelos muçulmanos.

Ainda na adolescência, no fim do século 15, foi reprimida pelos reis católicos. Por último, o general Francisco Franco a mandou calar a boca até o fim de sua ditadura, em 1975. Mas ela resistiu. Rebelde, acredita que pode se emancipar da Espanha.

É possível vê-la toda, desde o mirante da Carreteira de les Aiguas, os seus limites físicos formando um mapa: o mar Mediterrâneo a leste, os rios Llobregat, ao sul, e Bèsos, ao norte, e a oeste, a serra da Collserola.

Barcelona y sus hermanas Tarragona, Girona e Lleida compõem a Catalunha, uma das 17 comunidades autônomas da Espanha e potência econômica do país. Tem cultura, história e língua próprias, o catalão. Tão antigo como o português e outros idiomas derivados do latim, o catalão é a língua materna do lugar. Tem uma gramática parecida com a do francês e uma fonética que lembra o português de Portugal com palavras em italiano. Junto com o espanhol, compõe o bilinguismo da região. Mas, todas as vezes em que uma pergunta em espanhol é respondida em catalão, nota-se que o tal bilinguismo tem suas preferências. O dono da padaria sempre devolve “merci, adeu” ao meu “gracias, adiós”. Quando cheguei, gostava de encontrar parentescos linguísticos com o vocabulário do Mussum (como menys = menos, anys=anos) e esperava que algum “forevis” ou “cacilds” arrematasse as frases. Hoje meu catalão é nível “me viro” e foi aprendido no dia a dia da cidade. Mas estou longe da “normalització linguística” fomentada pela prefeitura que ambiciona que todos nos tornemos catalano parlantes, pois essa é a língua da nação.

De fato, a Catalunha é uma nação, mas, para que a reconheçam como tal, precisa conquistar o título de Estado. Até lá os catalães seguirão como ciudadanos españoles em seus passaportes.

Primavera – Barcelona renasce

Apesar de agora ser vista como modelo de desenvolvimento, Barcelona tem os pés no chão. Quer seguir sendo uma urbe mediterrânea, com ritmo de metrópole, mas que conserva ares de pueblo. Desviando de grandes avenidas como Gran Via de Les Corts Catalans, Diagonal ou Passeigde Gràcia – endereço de edifícios modernistas, como a Casa Batlló, sinuosa e colorida obra de Gaudí – é possível encontrar ruazinhas estreitas e charmosas. Não há adjetivo melhor que o próprio nome pra definir esse bairro: Gracia. A pequena vila, fagocitada pelo crescimento de Barcelona, é hoje o xodó dos catalães. Polo de atração de quem busca a liberdade e a boemia de suas praças.

Barcelona resiste a se transformar numa marca. Há pouco seu nome estrelava a película Vicky Cristina Barcelona (2008), de Woody Allen. A cidade nunca tinha se imaginado atriz, apesar de Antonioni ter tentado algo parecido em Profissão: Repórter, de 1975. Sua última lembrança como protagonista foi em 1986, em Lausanne, na Suíça, e emocionou sua plateia quando a escolheram como sede da Olimpíada de 1992. Nesse dia, ela ouviu do presidente do Comitê Olímpico Internacional: “À la ville de. Barcelona!”. Foi seu Oscar, sua medalha.

Ganhou em troca uma das maiores reurbanizações da história recente. Construiu-se a vila Olímpica, reformou-se o porto, dizem que os pobres foram empurrados para a periferia (aqui, como no Brasil, a vida é cruel), o custo de vida aumentou e até uma praia foi feita, para que seus hóspedes pudessem se refrescar no Mediterrâneo. Barcelona ficou linda.

Outono – Ronaldinho nas Ramblas
Cheguei a Barcelona em agosto de 2007, para aprender espanhol. Dois anos depois, milhares de turistas continuam tendo a mesma ideia: saltam do aeroporto El Prat direto para as Ramblas. Esse pedaço de calçada, o bulevar mais famoso do mundo, une a Plaza Catalunya ao Porto Vell. Na caminhada até o mar, barracas de flores, los quioscos (bancas de jornais), pássaros exóticos e até coelhinhos pra quem prefere souvenir vivo. E, no meio de tudo isso, artistas de rua ganham seus euros. Tem de dublês de Michael Jackson a estátuas humanas. E, mesmo que o verdadeiro esteja no Milan, o “Ronaldinho das Ramblas”, André, segue suando a camisa do Barça, parando o fluxo humano com suas embaixadinhas, seus dentões, seu cabelão crespo.

Verão – virada para Meca

Caminhando nas Ramblas, sentido mar, vire à direita e encontre o Raval. É o bairro decadente, marginal, mas que tá na moda. Também é conhecido como “Barrio Chino”. Mas, com a chegada de novos imigrantes, os chineses se espalham por Barcelona, enquanto norte-africanos, indianos e paquistaneses se concentram no centro histórico. E trazem o costume de comer nas ruas. Samosas, paki beers (cerveja de lata vendida por ambulantes do Paquistão) e os kebabs dos restaurantes turcos estão no cardápio ao ar livre.

Sempre acontece alguma coisa estranha comigo nesse bairro. Da última vez, procurando um restaurante ao lado da mesquita da calle Hospital, fui parar num templo Sikh, uma das religiões da Índia. Fui convidada para a cerimônia e só entendia a palavra “Waheguru”, que significa algo como “maravilhoso mestre”. Volto até a rua, e um açougueiro paquistanês me explica que desconhece a mesquita da calle Hospital, mas me convida pra conhecer a sua. Enquanto todos se viravam pra Meca, saí à francesa. Eu só queria almoçar, e Barcelona convida para encontros inesperados. Mas me gusta. Enquanto durar o feitiço, aqui estarei. “Ahí está, esa hechicera gitana, con su poder te llenará de ilusión, también cambiará tu vida pues sus hechizos son buena suerte, salud, amor y fortuna, si se lo pides con devoción. Ella tiene poder, ella tiene poder, Barcelona es poderosa, Barcelona tiene poder.” Assim escreveu o catalão Peret, na rumba em que celebra, entre palmas ritmadas, as belezas de Barcelona, comparando a cidade a uma cigana feiticeira.

Foi por tudo isso que escolhi morar aqui.

 

DICAS

Quem leva KLM, ida e volta, de São Paulo a Barcelona, com conexão em Amsterdã, a partir de R$ 1.692. Lufthansa, ida e volta, de São Paulo a Barcelona, com conexão na Alemanha, a partir de R$ 1.973.

Onde ficar A Clickhoteis oferece hospedagem em todos os lugares do mundo. Reservas Clickhoteis (11) 2196-2900, www.clickhoteis.com.br. São 138 opções em Barcelona, entre elas, Rey Juan Carlos I. Av. Diagonal, 661-671, (34) 933 644 040, www.hrjuancarlos.com; e Hotel Transit. Rector Triado, 82, (34) 93 424 60 13, www.hoteloasisbarcelona.com/HotelTransit/transit.htm.

Onde comer Lucania II. Quando peço a conta, sorrio: “5 euritos?”. Mas a combinação pizza + cinema é feita a dois: “Pede a Lucania pra mim”. (Abacaxi, minicamarões, alface e mozarela.) O outro corre até a fila do Cine Verdi na rua ao lado. Pra beber, una mediana, cerveja de garrafa. Ainda dá tempo de atravessar a rua e espiar a programação do Teatreneu. Lucania II. Calle Terol, 29-33, Gracia.

Els 4Gats. Restaurante quase museu. Picasso, Gaudí, Casas, Rusiñol se sentaram naquelas mesas, e os resultados do ambiente criativo está nas paredes. Era uma taverna com comida barata e música ao piano – o que continua até hoje. Mas o edifício projetado pelo arquiteto modernista Puig i Cadafalch cobra o preço de sua história. O jeito é ir no menu del mediodia, que sai uns 15 euros. Calle Montsió, 3 Bis, Gótico. www.4gats.com.

Bar Tomás. Você tenta fazer o pedido, o garçom se afasta. Ele sabe que você só está ali para pedir uma tapa de batatas bravas. Nisso catalães e espanhóis estão em acordo: as melhores de Barcelona são as que saem, quentinhas e com quantidade exata de allioli, do Bar Tomás. Para acompanhar, uma clara, metade cerveja, metade refrigerante de limão. Calle Major de Sarriá, 49, Sarriá.

La Bombeta. Típico restaurante de tapas de frutos do mar no antigo bairro de pescadores. Melhor pão com tomate de Barceloneta e melhor restaurante em relação qualidade-preço que conheço. Ainda tem a opção menu del mediodia, que sai por uns 10 euros (pão, vinho, café incluídos). Calle de La Maquinista, 3, bajos, Barceloneta.

O que visitar

Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona. Sempre tem exposições, shows, debates e seminários. O edifício é um antigo hospital psiquiátrico. No pátio central, se olhar pra cima em dia de sol, verá parte da cidade e o mar refletidos no vidro do mirante. Até setembro é possível ver a exposição “Quinquis de los 80”. Uma recopilação, a partir de jornais e filmes, da figura quinqui: jovens da periferia que roubavam e se drogavam como quem bebe água. Montalegre, 5, Raval. www.cccb.org.

Para ir à noite Bar Marsella. Famoso por servir absinto com um ritual que inclui derreter um torrão de açúcar no fogo e molhá-lo em licor. Parece uma taverna do século retrasado – da mesma época devem ser as teias de aranha e a fumaça de tabaco que sobrevoam nossas cabeças. Carrer de San Pau, 65, Raval.

Um cafezinho La Nena. O café mais acolhedor e colorido que já entrei. “No vendemos alcohol” se lê em cima do bar. Chocolate quente, bolos caseiros, café com leite de soja, arroz ou aveia e kefir são algumas delícias do cardápio. Pelas tardes fica cheio de mães e crianças. Ramón y Cajal, 36, Gracia.

Música JazzSí Club. Um dos poucos lugares onde se escuta e assiste a flamenco de verdade, não a shows montados para turistas. É uma escola de músicos, e toda noite tem apresentação ao vivo. O jazz, a música cubana e o flamenco são o ponto forte. Às sextas, o lugar se transforma num tablao (tradicionais casas de flamenco). Requesens, 2, Raval.

O que ler Amberes. Roberto Bolaño. Quando o escritor chileno Roberto Bolaño se mudou para Barcelona, em 1977, “vivia a la intemperie y sin permiso de residencia”, trabalhando como vigilante em um camping numa praia em Castelldefels. É ali que se desenvolve Amberes, livro com capítulos de meia página.“Escribí para los fantasmas, que son los únicos que tienen tiempo, pues están fuera del tiempo.”

*Nataly Cabanas, 25, é atriz e repórter. Trabalhou um ano na Tpm, antes de ir pra Barcelona, onde estuda e trabalha com teatro e publicidade.

 

Tpm+

Se você não entendeu alguma palavra do texto, confira o glossário:

Rumba Catalana: Gênero musical que floresceu dentro da comunidade cigana catalã, lá pelos anos 40, 50, em Barcelona, influenciado pela música cubana e pelo rock.

Pep Guardiola: Ex-jogador e hoje idolatrado treinador do Futbol Club Barcelona, representa o ideal de personalidade catalã: pragmático, prudente, determinado.

Cava: Um tipo de vinho espumante bastante popular na Catalunha. É o champagne catalão.

Erasmus: Programa de intercâmbio que facilita a mobilidade dos alunos entre universidades conveniadas.

Horchata de chufa: É essa bebida que Caetano Veloso pede, educado, em Vaca Profana: “Horchata de chufa, si us plau!” (Horchata de chufa, por favor!). Popular no verão, é feita através da chufa, um tipo de raiz. Lembra o leite de soja, talvez mais doce.

Kebab: Tipo de comida rápida e barata introduzida por imigrantes, turcos e árabes, que se popularizou na Europa. Kebab em turco, ou schawarma em árabe, é o nosso conhecido “churrasco grego”, só que servido em pão de pita e com acompanhamentos.

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