Elas sequestraram um embaixador, roubaram cofres e assaltaram bancos. Hoje são senhoras com mais de 60 anos que curtem os netos e ainda acreditam em ’fazer algo pelo próximo’.
Elas sequestraram um embaixador, roubaram cofres e assaltaram bancos. Hoje são senhoras com mais de 60 anos que curtem os netos e ainda acreditam em 'fazer algo pelo próximo'. A seguir, você conhece as histórias de quatro mulheres que puseram tanta fé numa revolução a ponto de partirem para a luta armada. Sim, essas senhoras com cara de avó eram guerrilheiras. E ainda são.
“Vocês sabem onde é a casa da Dulce?” “Ah, a dona Dulce? É só entrar naquele condomínio ali”, responde o funcionário de um posto de gasolina em Cunha, no interior de São Paulo. Dulce Maia, militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) nos anos 70, dois anos e meio de prisão e inúmeras torturas no corpo, é conhecida pela cidade inteira. Claro, a senhora de cabelos brancos não pára um minuto. Quer construir uma escola de educação ambiental, milita pela preservação do Parque Nacional da Serra da Bocaina e vive com a casa aberta para amigos, que sempre aparecem para uma visita.
Dulce, que mora com dois filhos adotivos, não gosta de ficar sozinha. “A tortura me deixou com a cabeça meio ruim. Me cerco de gente e de coisas para não parar”, conta, sem mágoa nos olhos. Aos 70 anos e muito elegante, ela se recusa a aceitar o rótulo de terceira idade. Isso porque não tem cabeça de velhinha, tampouco se veste como tal. E, quando começou a pegar em armas – um caminho natural, segundo ela –, confundia os policiais. Era difícil acreditar que aquela moça de cabelo arrumado e roupas chiques tivesse uma arma na bolsa que carregava. Mas, sim, ela tinha.
Entre assaltos e palcos
Participou de inúmeras ações, principalmente assaltos a banco. Além da guerrilha, atuava no Teatro Oficina, sob o comando do jovem José Celso Martinez Corrêa. Nem os atores do grupo sabiam que Dulce era guerrilheira. Até que a vida agitada ruiu, num dia em que ela decidiu passar pela casa dos pais. Foi presa na frente da mãe e passou um ano e meio na cadeia. Seus cabelos ficaram brancos da noite para o dia, depois de inúmeras torturas a que foi submetida. Ela não pensa em pintá-los. “Faz parte da minha história”, diz. E carrega, também, apesar de tudo, boas lembranças da cadeia. “Existia muito amor. Quando eu fui embora, todas as presas cantavam: ‘Minha jangada vai sair pro mar’... Foi lindo.”
“Quando eu fui embora, todas as presas cantavam: ‘Minha jangada vai sair pro mar’... Foi lindo”
Dulce Maia, 70 anos
Simone de Beauvoir e uma neta
As fotos da menina Stella, de 4 anos, estão espalhadas por dezenas de porta-retratos de um apartamento em Pinheiros, bairro de classe média de São Paulo. Stella é a neta de Eleonora Menicucci. A avó é mais que coruja. Sua filha Maria, de 37 anos, nasceu enquanto a mãe guerrilhava. O parto foi feito por uma médica simpatizante, que aceitou ajudar a moça com nome falso. O pós-parto aconteceu em um “aparelho” (leia-se esconderijo). E, quando a guerrilheira caiu (leia-se, foi presa), sua filha foi com ela, num ato de crueldade capaz de assustar qualquer mãe. A menina tinha pouco mais de 1 ano e 10 meses.
Eleonora era uma jovem de Belo Horizonte quando entrou para o movimento estudantil.“Não pensava muito nisso, sabia que tinha que fazer alguma coisa, ia lá e fazia.” Ela não lembra quantos bancos e supermercados assaltou de pistola em punho. E garante que não tinha medo. “Achava que nada de mal podia me acontecer. Era jovem, e jovem é onipotente”, filosofa. E lembra do romantismo que permeava todas as ações. “Um dia, depois de assaltar um supermercado, um companheiro disse: ‘Vamos entrar de novo e pegar um vinho para comemorar?’. E entrou, pode?”
O fim do romantismo
O romantismo acabou depois que Eleonora foi presa. Sua filha, ainda bebê, não foi poupada das torturas. Nas diversas prisões por onde passou durante quatro anos, ela aprendeu também sobre solidariedade.“ Éramos unidas. Não existia visita íntima, mas, no dia em que nossos companheiros nos visitavam, fazíamos um poncho, pois ali podíamos fazer de tudo sem a polícia ver.” Nos anos de prisão, a filha foi criada pelos avós. A partir de sua soltura, em 74, Eleonora tratou de reconstruir sua vida. Teve outro filho e, hoje, além de médica e professora da Unifesp, é militante feminista. “Continuo na guerrilha”, conta. E, além de tudo isso, é libertária. “Não é porque eu tenho mais de 60 anos que não namoro. Me relaciono com homens e mulheres e tenho muito orgulho de minha filha, que é gay e teve uma filha por inseminação artificial. ”Que se orgulha, fica claro pelas fotos. Na parede, Maria e Stella estão ao lado de Simone de Beauvoir.
A moça dos milhões de dólares
Sônia Lafoz, 61, parece ter dez anos a menos. Conserva o corpo ágil por meio da ginástica que faz todos os dias em Curitiba, onde mora com o marido e uma das filhas. No sofá de sua casa, levanta a calça com agilidade e diz: “Aqui ainda tenho essa marca de tiro. Levei três, os outros na virilha e na cabeça”. Fala isso com a naturalidade de quem morou quatro anos na clandestinidade, andando com uma pistola calibre 44.
Com essa arma Sônia fez segurança para Carlos Lamarca, quando ele operou para mudar de cara. “Entrei como irmã dele. Foi engraçado, porque a gente ensinou ele a fingir que era gay.” Mas nem tudo tinha graça. Em 1970, deu cobertura para o seqüestro do embaixador alemão Ehrenfried Anton. Houve troca de tiros. Três atingiram Sônia e um militar morreu. Ela não sabe se o matou. “Não fico paranóica, evito pensar.”
“Aqui ainda tenho essa marca de tiro. Levei três, os outros na virilha e na cabeça.”
Sonia Lafoz, 61 anos
Sônia era estudante de psicologia na USP quando começou a participar do movimento estudantil e foi parar na luta armada. “Achava que a gente tinha que partir para a ação e que poderíamos fazer uma revolução como a cubana.” O sonho custou caro. Seu primeiro “companheiro” morreu em uma ação em São Paulo. E ela nem teve tempo de ficar triste, porque logo foi para o Rio se esconder. Medo? Não tinha. “Na hora dá uma adrenalina e você faz.” As lembranças engraçadas existem. “Quando roubamos o cofre do Adhemar de Barros, o fundo do carro, uma Variant, afundou por causa do peso. Eram US$ 2 milhões e meio!”
Geração umbigo
Sônia nunca “caiu”. Por isso, escapou da tortura. Acha que foi sorte. E só fugiu quando estava grávida de oito meses. Foi para o Chile, onde nasceu sua filha. Hoje, é uma aposentada orgulhosa das crias Silvia, de 35, e Maya, de 25 anos. Depois de ouvir tantas aventuras, a reportagem da Tpm pergunta se ela não acha que as mulheres da nossa geração sofrem à toa. Ela concorda: “Vocês são de uma geração sem ideologia. Então, fica tudo voltado para o próprio umbigo. Mas nós não éramos melhores que vocês não, viu?”.
Estrategista de guerrilha
“Fizemos guerrilha porque sobrou para a gente. Alguém tinha que fazer.” Assim, Maria do Carmo Brito, 64 anos, uma das dirigentes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) que planejavam e executavam missões ao lado de companheiros como Carlos Lamarca, explica o fato de ter arriscado sua vida para denunciar a ditadura militar no Brasil. “Nunca achei que fôssemos vencer”, surpreende. “Mas sabia que precisávamos contar aquilo para o mundo.”
“Se não militar por alguma coisa, morro.”
Maria do Carmo Brito, 64 anos
Hoje, Maria do Carmo vive com o terceiro marido, ex-companheiro de guerrilha, em um apartamento em Laranjeiras, no Rio de Janeiro. E diz que deve a veia militante a alguém de 86 anos. Trata-se de dona Angelina, sua mãe. Uma senhora que, logo ao abrir a porta do apartamento onde mora com a filha, avisa que também esteve no exílio e participou da luta contra a ditadura. “Se não militar por alguma coisa, morro”, diz a filha, que hoje trabalha com inclusão de deficientes no mercado de trabalho e na sociedade.
Terrorista famosa
Medindo 1,50 metro, a moça, conhecida como Lia, era considerada perigosíssima. Ela e seu primeiro marido, “terroristas famosos”, viviam nos jornais. E Maria, responsável por qualquer ação feita pela VPR, não explicita exatamente o que fez. “Se eu não disse isso sob tortura, por que vou contar para você?” Ela não quer ser heroificada e evita expor o passado para pessoas de seu cotidiano. Mas, por mais que mantenha a discrição, são evidentes as marcas que a ditadura deixou. Seus olhos se enchem de lágrimas ao lembrar da morte do primeiro marido, assassinado na sua frente no momento de sua prisão. Até hoje carrega o peso de não ter suportado algumas sessões de tortura e, por isso, entregado companheiros. “Eu sei, só um herói agüentaria, mas teve gente que conseguiu. Não me perdôo.” Quando ameaça cair no passado, muda de assunto e fala sobre as duas netas, uma de 7 anos e outra de 4 meses. “Vocês não imaginam como elas são maravilhosas.”