por Alê Youssef
Trip #271

É fundamental criar ferramentas de contenção do processo inequívoco de perda de direitos a que assistimos no Brasil

Vivemos o que a filósofa norte-americana Wendy Brown identificou como o fenômeno da des-democratização, ou seja, a desativação atual de fundamentos tradicionais do liberalismo clássico como igualdade, universalidade, laicidade, autonomia política, liberdades civis, cidadania, regras ditadas pela lei e imprensa livre. Tais fundamentos, constituídos ao longo de vários séculos pelo mundo euroatlântico, estão sendo seriamente desafiados pelo neoliberalismo e seus princípios de governança alternativos.

Alguns exemplos desses princípios são a suspensão da separação entre esfera pública e esfera privada; o tratamento de opções políticas como ofertas concorrentes que o cidadão-consumidor deve escolher; a exacerbação dos poderes da polícia, que deixa de estar submetida a qualquer controle; a desvalorização simbólica da lei, considerada mais tática do que princípio, com consequente fragilização do sistema jurídico; a confusão entre as esferas política e econômica; a conformação da ação pública aos critérios da produtividade e da rentabilidade; e a centralidade dos temas da gestão para a avaliação da boa governança.

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Diante desse cenário, é fundamental criar ferramentas de contenção do processo inequívoco de perda de direitos a que assistimos no Brasil e no mundo. O papel das instituições deve ser o de proteger os indivíduos e as coletividades e quando elas os ameaçam devem ser controladas e reformadas. Essa guerra por direitos é travada no momento em que o sociólogo francês Alan Touraine identificou a transformação de uma sociedade baseada em termos econômicos para outra que se estabelece em termos culturais.

“Nós passamos do mundo de Rousseau e da Revolução Francesa ao mundo de Marx e da sociedade industrial para entrar em seguida no mundo de Freud e numa sociedade de comunicação, de conhecimento e de cultura de massa”, Touraine escreveu.

Contra a desigualdade

O tema dos direitos humanos, tão forte na Revolução Francesa e na independência americana, mas tão marginalizado no período industrial, volta com força total nesse novo contexto. Cada indivíduo tem o direito de praticar os atos de sua cultura, sejam eles relativos à língua, religião, alimentação, formas de relações sexuais, organização familiar etc. Falar em dignidade se torna mais importante do que qualquer referência aos deveres e funções sociais.

O futuro está absolutamente relacionado à compreensão da urgência de entender esse contexto – e da necessidade de enfrentar a desigualdade, acentuada pela perda de direitos, ser colocado em primeiro plano. Nesse sentido, no ambiente polarizado que vivemos, estou ao lado dos movimentos sociais e dos tradicionais ideais da esquerda, em relação aos que persistem pensando que nada poderia mudar e se rendem à lógica de dominação dos modelos econômicos.

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Os partidários da social-democracia e até os movimentos mais liberais, em sua ampla maioria, adotaram a postura de completa apatia e até mesmo concordância diante da asfixia que a ordem econômica impôs ao mundo. De fato, a conduta reta de movimentos de esquerda sempre fieis às suas origens geram a sensação de credibilidade, tão rara hoje em dia nos processos políticos, o que ajuda a criar mais simpatia por esses grupos, mesmo sabendo que suas premissas e bandeiras já não se adaptam exatamente ao novo mundo preconizado por Touraine e que precisam ser urgentemente revisadas e atualizadas.

Estou convicto de que o futuro depende da redução da desigualdade. Por isso, o futuro depende de uma nova esquerda.

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