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por Douglas Vieira

Com o Gueto Pro Gueto Sistema de Som, Lei Di Dai usa o dancehall para levar entretenimento, autoestima e fazer circular renda nas periferias de São Paulo

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Lei Di Dai é senhora de si e não é de esperar. Na pista desde 1999, quando era vocalista da banda de reggae Camarão na Brasa, foi em 2002 que ela estreou no dancehall, gênero popular jamaicano criado nos anos 70 e que, com a ajuda dos sistemas de som surgidos em São Paulo nos últimos anos, tem crescido muito na periferia. Quando Dai começou, não era assim. "Só tinha o Dubversão Sistema de Som, do Yellow P", conta a cantora, lembrando que foi justamente a partir de uma abertura dada por eles há 15 anos que ela começou a se descobrir como a Rainha do Dancehall, título que ostenta orgulhosamente. "Ele [Yellow P] já me conhecia porque eu era frequentadora do baile. Um dia ele montou um sound system num galpão do Sesc Pompeia e rolou uma oportunidade de a Marieta, a Massarock, me passar o microfone e eu caí em cima das bases de dancehall. Foi um incentivo pra querer colar mais nos bailes e pra passar uma mensagem pra galera", conta. Hoje, Dai sorri com o sonho realizado de ter um sound system pra chamar de seu.

Desde 2012 ela está no comando do Gueto Pro Gueto Sistema de Som, junto com seu parceiro de vida e som, o DJ Vinnieman. A cada edição eles montam as caixas em uma quebrada diferente, em que, além de música, levam dança, grafite e outras ideias que aparecem. "Teve uma vez em que a gente fez uma oficina de pipas, piscina de bolinhas, pula-pula – a gente vê a necessidade da galera de colar no baile com o filho, que também precisa de entretenimento. E a gente faz bailes à noite pra molecada, que é importante também", lembra Dai. 

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Nesses cinco anos, Dai e Vinnie já realizaram mais de 70 edições do Gueto Pro Gueto, em espaços diversos. "Às vezes é um centro cultural, às vezes é uma Casa de Cultura, às vezes é uma praça, um campo de futebol, às vezes é dentro da favela, já fizemos em biblioteca. É um incentivo também pra galera colar em um espaço que é deles, que eles têm que ocupar", acredita a Rainha do Dancehall. 

Entre os artistas convidados, sempre estão pessoas da região em que vai rolar a festa. A ideia é fazer outros artistas das periferias acreditarem que podem viver de sua arte, como ela acreditou um dia. (O videoclipe de  "Chega na dança", música de seu último disco, #QUEMTEMFÉTÁVIVO, foi todo gravado com pessoas que participaram de um workshop de dança realizado durante uma das edições do Gueto Pro Gueto.) "Eu abro o microfone para quem está começando, convido sempre gente das quebradas que a gente vai. E para quem chega pedindo também, como abriram para mim. O Gueto Pro Gueto foi um incentivo para muitos que trabalham com música hoje", conclui Dai. 

Em fim de semana de "baile de favela", como ela define, a renda circula dentro do bairro. "Quando a gente chega em uma quebrada, todo mundo se movimenta para o rolê acontecer", conta a cantora. Em uma quadrinha de futebol na Comunidade 3 Côco – ali entre as estações Artur Alvim e Itaquera da linha vermelha do metrô, no bairro Cidade Líder –, as caixas dos sistemas de som ainda estavam sendo empilhadas e carros de moradores da região já começavam a encostar com os porta-malas cheios de bebida e até comidas que seriam vendidas durante o baile. Quem já estava combinado com o pessoal, chega e estaciona; quem descobriu a festa só no dia, também é bem recebido e, depois de uma conversa rápida, já está tudo resolvido. "As festas do Gueto pro Gueto geram trampo, grana e união na comunidade", diz Dai. 

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Normalmente é no fim de semana que Dai e Vinnieman levam pra rua as caixas de som que guardam na sala da casa em que moram na Vila Ré, a mesma casa em que a avó de Dai morava. Mas desta vez o baile vai rolar numa quinta-feira de feriado, em 15 de junho. O grave do Gueto Pro Gueto Sistema de Som começa a bombar no meio da tarde, quando o sol é quente e a festa mais maneira – crianças da comunidade são vistas brincando com seus pais e irmãos, além de uma molecada um pouco maior, ali pelos 10 anos, que explora tudo por conta própria. Quando o dia vai escurecendo, quem esquenta é a festa. "De noite o povo fica maluco, né. É bem diferente", brinca Dai. 

Até o fim do baile, mais de mil pessoas estarão por ali dançando enquanto Lei Di Dai mostra com sua voz aveludada e suingada o porquê de ser chamada de Rainha do Dancehall. E, lição que precisamos, não há um estilo dominante na "pista". São garotos e garotas de várias pegadas, desde hippies ao pessoal com visual inspirado nos low riders chicanos, manos e minas, público GLBT e muita gente com visual rasta ostentando seus dreadlocks, claro. Todo mundo na brisa e dançando, zero tretas.

"Você precisa vir aqui [na Comunidade 3 Côco] na festa do Fya Sound." Ouvi isso da Dai e também de muitas pessoas diferentes. Felipe Silva, 28, o Fya, é há 10 anos DJ, beatmaker, produtor independente e o cara que está por trás do sistema de som que todo mundo indica por ali. Nesta edição do Gueto Pro Gueto, ele é o convidado local – ou anfitrião, depende do ponto de vista.

Ninguém de quebrada é de esperar acontecer, porque pouco acontece mesmo, e Fya construiu ele mesmo cada uma das muitas caixas de som de madeira que formam o seu sistema de som, em construção permanente. "Vai crescer mais, eu devo estrear ele maior no Morcegão [Praça Dilva Gomes, na zona leste] semana que vem", conta Fya. E quando o pessoal que ajuda a Dai já tinha descarregado a van com as caixas do Gueto Pro Gueto, ele mesmo ainda descia as dele com um carrinho de mão desde sua casa, em algum lugar da viela que sobe saindo da frente da quadrinha que logo viraria pista. Eram muitas caixas e não demorou para aparecer a ideia de subir com a van, agora vazia, para buscar o que faltava.

Tudo pronto, só falta o gato no poste. Lá vai Fya pro lado de fora do parapeito de uma casa na esquina, arremessando, com a ajuda de Vinnieman desde o chão, cabos por cima de caminhões de feirantes, de árvores, no melhor estilo Doc Brown em De volta para o futuro. E eles farão isso muitas outras vezes. Na Comunidade 3 Côco, onde Fya reina na noite com seu sistema de som, assim como em qualquer quebrada que a Rainha do Dancehall visite com o Gueto Pro Gueto, diferentemente do filme hollywoodiano, o raio precisa cair várias vezes no mesmo lugar – e cai, na marra e na manha. Não é fácil levar entretenimento onde o Estado não chega, mas o baile sempre começa, sempre sem hora pra acabar. "Essa missão social do Gueto Pro Gueto é imprescindível, de ir lá e fazer um dia diferente para esse pessoal. São famílias precisando de entretenimento e a gente chega lá pra fazer o baile", conclui Dai.

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