Dr. Olímpio Moraes Filho: aborto, ódio e luta

por Denise Meira do Amaral

O diretor do Cisam, hospital que atendeu a menina de dez anos, grávida e vítima de violência sexual, fala sobre intolerância, preconceito e a criminalização dos direitos das mulheres

“O estupro destruiu a vida dela até os dez anos. O que fizemos foi dar uma chance para que ela tenha um resto de infância. E que possa viver". A declaração é do diretor executivo do Cisam (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), em Recife, hospital referência no tratamento de saúde da mulher. Dr. Olímpio Moraes Filho, 58, ganhou os noticiários após extremistas antiaborto terem cercado o local, no último domingo, para tentar impedir a interrupção da gravidez de uma criança de dez anos violentada pelo tio. "Nunca tinha visto aquilo", diz, sobre os protestos. "Se não houvesse essa conduta [aborto] estaríamos destruindo o futuro dela: ou com a morte, porque ela poderia perder o útero, ou perdendo a saúde mental".

Acompanhada da avó e de seu ursinho de pelúcia, a menina do interior do Espírito Santo foi amparada pela equipe do Dr. Olímpio e pelo Grupo Curumim, entidade civil feminista de Recife, que providenciou o carro na chegada ao hospital e todos os cuidados para a preservação da integridade da criança. Ela só conseguiu entrar porque se escondeu no porta-malas após o médico servir de “boi de piranha”, despistando os extremistas. Apesar da aglomeração de pessoas sem máscaras – “porque esse pessoal não gosta de máscara”, ele diz – e palavras de ódio como “assassino” direcionadas ao médico, um grupo ainda maior de manifestantes, em maioria mulheres, saiu em defesa da menina. Após ter alta, ela deixou Recife cheia de presentes, entre eles um tablet, mas não sem antes realizar um desejo antigo: experimentar um lanche do McDonald's.

Dr. Olímpio tem mestrado e doutorado no tema e, por seu trabalho com a saúde da mulher, já foi excomungado duas vezes por um arcebispo de Recife. "Só fiquei famoso", ri. "Depois da Idade Média, não acredito que alguém tenha sido excomungado como eu". No papo com a Tpm, o médico explica que as taxas de aborto tendem a cair quando a questão é levada para o campo da saúde pública, e não da criminalidade, e assinala que a o aborto ilegal revela, acima de tudo, um conflito de classes: “No Brasil existem dois tipos de abortamento: o seguro, quando você tem informação e dinheiro, e o inseguro, em que as mulheres morrem. Você pode ver que essas pessoas [extremistas] só se preocupam com os pobres. Por que elas não vão manifestar nas clínicas de aborto de pessoas ricas?”.

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Tpm. Você ficou assustado com as pessoas protestando na porta do hospital?

Dr. Olímpio Moraes Filho. Fiquei. Nunca tinha visto aquilo. Eles anotaram a placa do carro que trouxe a menina do aeroporto, que foi providenciado pela equipe do Grupo Curumim. Tive que sair de casa às pressas porque me avisaram que havia uma aglomeração na porta. Fui chamado de assassino e impedido de entrar na maternidade em que sou diretor. Precisei esperar a polícia chegar. Parei para conversar com eles e enquanto isso a menina pôde entrar pelos portões do fundo. Fui boi de piranha, como falamos por aqui. Eles ainda prejudicaram a entrada de mulheres grávidas que estavam chegando na emergência! E podendo contaminá-las, porque não usavam máscaras. Esse pessoal não gosta de máscara. É o negacionismo...

Por que esse caso ganhou tanta repercussão, mesmo a menina estando amparada pela lei – que permite que o aborto seja feito em três situações: para salvar a vida da mulher, no caso de fetos anencefálicos e quando a gestação é resultante de um estupro? Porque a sociedade é machista, misógina. Porque existem forças políticas ligadas a movimentos religiosos que odeiam as mulheres e que a única função é prejudicá-las. Eles ficam procurando onde agir. Ainda bem que existem redes feministas, organizações sociais, Ministério Público. Essa situação toda serviu ao menos para trazer a pauta para o debate público. Se ele não acontece, ficamos no preconceito e na escuridão. A gente está vivendo um mundo totalmente fora da realidade, um mundo de ódio, de preconceito, de raiva. Nunca vi algo como isso.

Como eles ficaram sabendo do caso dela? Através de uma rede da maldade do Espírito Santo. Houve claramente um envolvimento de forças políticas para que ela não tivesse o aborto ali. Quebraram o sigilo dela, divulgaram o nome, o endereço, tiveram acesso ao prontuário. Isso é crime. Esse pessoal está divulgando o peso, o sexo do embrião. A avó está sofrendo pressão em casa de movimentos políticos.

Qual é a causa dessa onda obscura? Sou apenas médico, acho que precisamos buscar entender com as Ciências Sociais. Mas é um processo que está em curso no mundo: essa psicopatia social, essa promoção do ódio, do radicalismo, da intolerância.

Há um limite de semanas de gestação para o aborto legal? Não há limite. Pode ser feito em qualquer período da gestação. A menina estava com 22, 23 semanas.

Quais os riscos físicos e psicológicos que a menina corria levando a gravidez adiante? Acredito que o estupro destruiu a vida dela até os dez anos. Se não houvesse essa conduta [aborto] estaríamos destruindo o futuro dela: ou com a morte, porque ela poderia perder o útero, ou perdendo a saúde mental. Ela ainda poderia ter riscos de um parto prematuro, de um pré-câncer, de diabetes, de hemorragia – porque o útero de uma criança não está preparado para uma gravidez. Era uma gravidez de alto risco. O que fizemos foi dar uma chance para que ela tenha um resto de infância. E que possa viver.

O aborto seguro é um privilégio das mulheres ricas hoje em dia? No Brasil existem dois tipos de abortamento: o seguro, quando você tem informação e dinheiro, e o inseguro, em que as mulheres morrem. Se essas mulheres tivessem nascido em outros países – esses que a gente acha bonito para viajar –, elas estariam vivas. No Brasil, as mulheres brancas e ricas sempre tiveram acesso a medicamentos e clínicas. Isso é uma hipocrisia. Você pode ver que essas pessoas só se preocupam com os pobres. Por que elas não vão manifestar nas clínicas de aborto de pessoas ricas? Se estão preocupadas com os embriões, por que não vão nas clínicas de reprodução humana que descartam milhões de embriões congelados? É maldade contra os vulneráveis, contra os pobres, contra as mulheres. 

Por que o aborto deveria ser legalizado no Brasil? O aborto é legalizado nas sociedades com alto índice de desenvolvimento humano. Quando você legaliza e traz a questão para o campo da saúde, o número de abortos diminui. Porque ninguém é a favor do aborto, nem a mulher que aborta. Com o aborto legal, elas ganham acesso e educação a métodos contraceptivos. Quando a mulher faz escondido, essa violência se perpetua. Todas as políticas públicas comprovam que a criminalização do aborto não resolve o problema – que é social e de saúde. O ponto central, e que, infelizmente, não vou ver em vida, é que a gravidez seja tratada como um direito da mulher. Que toda mulher deseje sua gravidez. Que toda mulher tenha amor na sua gravidez. Hoje, muitas mulheres são obrigadas a levar uma gravidez adiante, carregando sofrimento – e sem afeto ao filho. Se até um animal, uma planta, precisa de afeto, imagina um ser humano? Com isso criamos uma sociedade doente, porque a violência se origina aí. A gente tem tecnologia e conhecimento científico para salvar essas mulheres, mas certas forças não querem. Porque é uma decisão política. De querer um mundo melhor. De ouvir a ciência.

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Quando começa a vida para a ciência? O início da vida é um conceito muito filosófico. Será que a vida começa quando há fecundação? Mas de cada dez embriões fecundados, apenas dois nascem, porque a própria natureza é abortiva. A regra é o abortamento espontâneo. A maior parte dos embriões não consegue nem colar no útero. Pra quem é religioso, o maior abortista é o próprio criador. É como funciona a natureza. No embrião já existe a alma? Mas, e no caso de gêmeos, que só depois o conjunto de células se divide em dois indivíduos? Cada gêmeo só tem metade de uma alma? Ou um fica um com alma e o outro sem? Entende? É como ficar discutindo o sexo dos anjos...

Uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já fez pelo menos um aborto. Por que ainda assim esse assunto é tabu? Por ignorância, por machismo. Por causa de conceitos religiosos equivocados. Você pode até achar que é pecado, mas em vários pecados as pessoas não são condenadas à morte. No Brasil, adultério já foi crime. Essa lei caiu e algumas pessoas ligadas aos religiosos achavam que a família seria destruída a partir de então. Mas não. Não se decreta amor ou falta de amor por lei. Tem um filme que é maravilhoso, o Divino Amor [do pernambucano Gabriel Mascaro, lançado ano passado]. A cena do nascimento do menino Jesus foi feita no Cisam. E o diretor parecia que estava adivinhando o que iria acontecer. Faz uma propaganda desse filme pra mim, porque tem tudo a ver. 

Você já foi excomungado duas vezes pelo arcebispo dom José Cardoso Sobrinho. Isso surtiu algo? Nada. Só fiquei famoso. Depois da Idade Média não acredito que alguém tenha sido excomungado como eu. Uma foi por conta da menina de nove anos que ficou grávida após ser estuprada, e a outra quando participei de uma campanha de distribuição de pílulas de emergência com receita médica, na coordenadoria da saúde da mulher. O arcebispo disse que pílula é abortiva e que estava promovendo promiscuidade no Carnaval.

A grande maioria das mulheres que engravidou vítima de estupro acaba não encontrando acesso ao serviço de aborto legal na rede pública de saúde... Pois é. Embora seja legal, a mulher não tem acesso. Somente 7% a 15% das mulheres têm acesso ao aborto previsto em lei. Isso mostra que mais de 90% das vítimas de estupro levam a gravidez adiante. E por quê? Porque, ao fazer o pré-natal, ninguém pergunta o que aconteceu, se a gravidez foi desejada. Como ninguém pergunta para uma menina de 13 anos o que aconteceu? Se o pessoal de saúde não se informa, a menina sem instrução não vai saber o que fazer. Muitas vezes essa violência é até mesmo uma condição de família, em que a mãe também foi violentada. Nós, profissionais de saúde, professores, psicólogos, precisamos estar na linha de frente e perceber a violência contra a mulher e criança. Como podem pensar em não ter educação sexual nas escolas? Ela é fundamental e ajuda a proteger as nossas crianças.

Qual a definição de estupro? É qualquer ato de cunho sexual contra a sua vontade. Sem o seu consentimento. Pode inclusive vir do seu marido, do seu namorado.

Já tivemos decisões no Supremo Tribunal Federal (STF) que consideraram o aborto até o terceiro mês de gestação como não sendo crime. É um avanço? Sim, mas a interpretação do Supremo não muda a lei. Você pode até usar na sua defesa, mas continuará sendo denunciada.

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O artigo 124 do Código Penal prevê prisão de um a três anos para quem aborta de propósito. Somente três casos são permitidos pela lei: quando não há meio de salvar a vida da mãe, quando a gravidez resulta de estupro e quando o feto é anencéfalo. Quem ajudar a mulher a abortar pode ficar quatro anos na cadeia.

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Segundo pesquisa da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, de 2016, o aborto é um evento comum da vida reprodutiva de mulheres de todas as classes sociais e níveis educacionais, mas as mulheres negras e indígenas, com menor escolaridade e que vivem no Norte, Nordeste e Centro-Oeste apresentaram taxas de aborto mais altas e, portanto, estão mais sujeitas aos riscos de um aborto ilegal e inseguro. Mais de 500 mil realizam abortos por ano no Brasil. O perfil da mulher que aborta é comum: 67% têm filhos e 88% declaram ter religião. 

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Vale destacar que o aborto só é um procedimento perigoso quando realizado de forma insegura e clandestina. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) no documento Abortamento seguro: orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde, disponível na internet, o aborto com medicamentos é o principal método não-invasivo recomendado. O mais usado é a combinação de misoprostol e mifepristone, que tem 95% de eficácia e, com orientação adequada, pode ser utilizado com mínima intervenção médica. O misprostol é conhecido no Brasil como Citotec.

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Uma em cada quatro gestações são interrompidas de forma voluntária a cada ano, segundo aponta um estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Instituto Guttmacher, ONG dedicada ao avanço de controles contraceptivos. O relatório publicado no periódico científico Lancet diz que 56 milhões de abortos induzidos ocorrem anualmente, uma taxa mais alta do que acreditava-se anteriormente. Os pesquisadores destacam que a maior taxa do mundo – e acima da média global – foi verificada na América Latina. 

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De acordo com o Ministério da Saúde, o aborto clandestino no Brasil é a quinta causa de morte materna.

Créditos

Imagem principal: Andréa Levy/ Reprodução Quebrando o Tabu

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