Não somos todos iguais
Você não tem culpa pelos privilégios que tem. Mas uma forma de ajudar é se tornar responsável por eles
Por muito tempo, eu, que me considero uma pessoa cabeça aberta e livre de preconceitos, achei que a melhor forma de defender os direitos humanos era lembrar que somos todos iguais. Por isso, quando comecei a trabalhar com comunicação não violenta [um processo que guia a resolução de conflitos no mundo todo e foi criado pelo psicólogo americano Marshall Rosenberg, que morreu em 2015], espalhei aos quatro ventos a importância de uma sociedade mais empática. Fiz isso porque meus próprios relacionamentos haviam melhorado com a prática.
Até que saquei um porém. Ele reside, por exemplo, no encontro entre um homem branco hétero de classe alta e uma mulher negra gay e pobre que clama agressivamente pelos seus direitos. Nessa situação, é possível que o homem diga: “Ela não vai conseguir o que quer falando desse jeito! Precisa aprender sobre empatia”. O julgamento, ainda que bem intencionado, ignora a diferença histórica e social dos dois, que têm pontos de partida bem diferentes. Pensando nisso, percebi que falar em empatia esquecendo dos privilégios pode ser perigosíssimo.
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Na minha vida, demorei para entender que eu sou uma pessoa privilegiada. Afinal, minha família tem a típica história brasileira: meu pai saiu da fazenda onde morava em Minas Gerais com 13 anos e só foi calçar o primeiro par de sapato quando se tornou metalúrgico em São Paulo. Minha mãe trabalhou desde os 14 anos, muitas vezes em dois empregos, para conseguir conquistar o que tem hoje. Nossa história foi de muito esforço e, porque estou completamente enredada nela, é fácil para mim imaginar que não tivemos privilégio algum. Mas basta um exercício rápido de consciência para perceber que seria muito mais difícil para minha mãe conseguir aquele primeiro emprego caso ela fosse negra.
Existe um exercício chamado “caminhada dos privilégios” que ajuda a entender os privilégios que temos ou não, e como estamos posicionados em relação a pessoas de diferentes grupos da sociedade. Um grupo de pessoas fica de mãos dadas e a partir de uma lista de frases anda para frente ou para trás. Coisas como “Se você não passa nenhuma parte do mês no cheque especial, dê um passo para frente” ou “Se você já teve um apelido baseado em sua cor de pele, dê uma passo para trás”. Em geral, no fim do exercício, as pessoas sentem vergonha: de ficar para trás ou, ao contrário, de ficar muito à frente. Os mais privilegiados chegam a sentir culpa.
Mas a verdade é que isto não é sobre as pessoas individualmente. Já sei que você tem um bom coração, mas, agora, vamos mudar o disco. Está na hora de começar a tencionar suas próprias convicções para se posicionar também a favor de quem é menos privilegiado que você.
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Senão vamos continuar vendo o cenário doido do homem branco reclamando da falta de gentileza da mulher negra. Não me leve a mal, sou a favor de que todos saibam reivindicar seus direitos de forma não violenta, mas já explicava Rosenberg: “Por trás de toda agressão existe uma necessidade não atendida”. Portanto, se você é homem, sugiro que diga a uma mulher: “Só hoje fui sacar o quanto tenho privilégios pelo fato de ser um homem nesta sociedade machista”. Faça a experiência e veja a expressão do rosto dela mudar. O mesmo pode ocorrer entre uma mulher branca e outra negra. Dá um alívio enorme quando outras pessoas reconhecem as dificuldades por que passamos.
Veja bem, você não tem culpa pelos privilégios que tem, eles lhe foram dados sem escolha. Mas uma forma de ajudar agora é se tornar responsável por eles. Como? Parando de cobrar que todos sejamos iguais. Enquanto não entendermos que passamos por processos históricos atrozes e desiguais e acharmos que o discurso da meritocracia funciona por si só, estamos condenados a uma sociedade cada vez mais violenta.
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Ainda temos séculos de injustiça social para consertar e você pode ajudar nisso. Reconhecer nossos privilégios em praça pública é o maior exercício de empatia que podemos fazer.