Vejo um futuro brilhante
Chega às telas O cheiro do ralo, adaptação do romance de Lourenço Mutarelli. Produzido com orçamento light, a receita do diretor Heitor Dhalia deu em cinema perturbador, de gosto forte e, ainda assim, irresistível
Um dono de loja de penhores obcecado pela gigantesca bunda de uma garçonete, obcecado por um olho de vidro, obcecado pelo fedor que vem do ralo do banheiro em seu galpão.
Com somente esses quatro elementos, o cartunista Lourenço Mutarelli (Caixa de Areia) estreou com um dos romances mais perturbadores da prosa brasileira contemporânea.
O livro foi adaptado por Heitor Dhalia (Nina) usando um orçamento modesto – 300 mil reais –, várias vezes inferior a muita produção nacional que não mostra na tela a grana que supostamente custou.
Resultou num filme que, fiel ao texto econômico de Mutarelli, tem cara de indie norte-americano e sotaque de produção argentina. Afinal, é armado com precisão no campo que nossos hermanos melhor dominam: o roteiro, de Marçal Aquino (O Invasor).
O dinheiro aqui fala não só no orçamento – que obrigou a produção a povoar a cenografia de objetos de brechó, para reduzir custos – como na história. Afinal, o centro da trama é o penhorista Lourenço (Selton Mello, na melhor atuação da carreira), um sujeito esquisito que se põe no papel de deus suburbano, comprando ao bel-prazer coisas usadas de gente mais gasta ainda – de onde temos uma das leituras do filme: a coisificação do homem.
Melhor não contar a história, que traz uma surpresa a cada cena. Mas se pode dizer que, pouco a pouco, o arrogante Lourenço, que se imaginava rei em um país de últimas coisas – muletas, frascos de vidro, caixinhas de música, violinos, o restolho que ninguém mais quer –, vai lentamente sendo sujeitado por objetos como um olho, uma bunda, um cheiro.
Equilibrando-se entre o humor negro e o registro pop, O Cheiro do Ralo está longe de ser um filme hermético, e tem acumulado prêmios (festivais do Rio de Janeiro e Punta del Este, Mostra de SP).
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O que prova ser possível realizar, sem concessões comerciais nem pretensões “artísticas”, um cinema absolutamente moderno. Os mais acostumados à estética chocha que se vê nas telas brasileiras poderão torcer o nariz. Mas é legal lembrar que bom cinema não tem nada a ver com bom gosto. A seguir, uma perguntinha capciosa para integrantes da equipe do filme.
Que cheiro de comida perturba você?
Selton Mello: “Churrasco é uma parada maneira... mas você fica impregnado com a porra do cheiro de carne e fumaça. Fica parecendo uma picanha ambulante”
Heitor Dhalia: “O primeiro cheiro que me vem à cabeça é o da... [ri]... Sem brincadeira, o cheirinho de milho assando na brasa lembra a minha infância. Tinha um homem que ficava sentado na porta da casa da minha avó, em Belo Jardim, no interior de Pernambuco, que colocava três milhos na grelha e subia aquele cheiro maravilhoso”
Lourenço Mutarelli: “Não gosto quando o vizinho cozinha feijão. O cheiro que chega na janela de casa é horrível. Nada contra feijão, mas é como peido: a gente só gosta do nosso”
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