Conviver é possível?

Uma conversa urgente que passa por temas como guerra às drogas, sistema carcerário e a situação mais do que vulnerável dos moradores de rua

por Bruna Bittencourt em

Milly Lacombe foi a mediadora do papo entre Sebastião Oliveira, padre Júlio Lancellotti e Ilona Szabó no encontro que o Trip Transformadores realizou em outubro, na biblioteca do Parque Villa-Lobos - Crédito: Mariana Pekin/Acervo Trip

A pergunta acima guiou as discussões do segundo evento do Trip Transformadores 2018, realizado no mês passado na biblioteca do parque Villa-Lobos, em São Paulo. O cenário era mais do que oportuno para as palestras e debates, que aconteceram já sob as tensões que antecederam as eleições presidenciais. Responder a essa questão não é simples, mas nossos convidados, com diferentes visões sobre a sociedade, nos ajudaram a abrir algumas trilhas e iniciar este percurso. 

A seguir, reunimos as principais reflexões apresentadas no debate que abriu a noite com o tema “Como cuidar dos que ninguém quer cuidar?”, que contou com a participação da cientista política Ilona Szabó, do padre e militante Júlio Lancellotti e do ativista do esporte Sebastião Oliveira, com mediação da nossa colunista Milly Lacombe.

Uma conversa urgente, que passa por temas como guerra às drogas, sistema carcerário e envolve também a situação mais do que vulnerável dos moradores de rua. 

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Crédito: Mariana Pekin/Acervo Trip

Ilona Szabó é cientista política, especialista em segurança pública e em política de drogas. É cofundadora e diretora-executiva do instituto Igarapé, que produz pesquisas e influencia políticas públicas em segurança, justiça e desenvolvimento.

“Segurança pública é um direito social, como a educação ou a saúde. É a responsabilidade número 1 dos governantes, quando vivemos em um Estado democrático de direito. Ela começa na prevenção, na convivência. Temos feito uma análise muito estreita, achando que segurança é polícia. Segurança é também olharmos para nós, depois vem a [responsabilidade] coletiva, as leis. No Brasil, achamos que segurança se resolve com polícia e aumento de pena. Nada disso vai trazer para nós o resultado que queremos. Temos que debater segurança na sua origem, que é poder conviver, saber nosso limite, mas cobrando também pelo ‘façam o certo’.

Não temos como falar em segurança pública no Brasil se não falarmos de política de drogas. A guerra às drogas é uma guerra às pessoas, as que o padre e o Sebastião conhecem muito bem, quem está na ponta. Nunca vamos acabar com a demanda [por drogas], a oferta vai dar um jeito de chegar. Toda a lógica que foi diminuir a oferta para aumentar preço e assim diminuir o consumo deu errado e estamos aqui insistindo.

Se a pessoa é de uma classe desfavorecida, a resposta é prisão. Se forem pobres, negras, serão classificadas, provavelmente, como traficantes. Mas nós, aqui nesta sala, seremos usuários, o que é mais leve, mas é ainda um sistema criminal. Está tudo errado. Temos que tirar o consumo da esfera criminal, urgentemente. Um alcoólatra não é um criminoso, então um consumidor de drogas também não pode ser um. Temos que distinguir os vários escalões do tráfico de drogas, não dá para todo mundo ter a mesma pena ou achar que todos são traficantes, criminosos, torturadores, homicidas, violentos. Não são, tem um monte de gente que está transportando, embalando, produzindo e que faz isso sem violência. Estamos pagando para as pessoas saírem piores, mais perigosas [da cadeia] e sem oportunidade de se transformarem.

Está tudo errado. Temos que olhar para o trabalho do padre Júlio, do Sebastião. O momento que estamos vivendo é de olhar e fortalecer esse tipo de iniciativa. Precisamos dar outro tratamento e pensar de fato como são os modelos de regulação de drogas que estão funcionando em outras partes do mundo. O Canadá regulou [em outubro passado] a maconha para uso recreativo adulto.

O Brasil é o país com o maior número de homicídios (número absoluto) do mundo, há décadas. A nossa região é a única onde os números estão crescendo. A América Latina representa 8% da população mundial, mas concentra 38% dos homicídios. Quando olhamos para as causas, percebemos que estamos aplicando os remédios errados.

Assim é fácil

Temos prendido pessoas que são fáceis de pegar. Não investigamos, não vamos atrás daqueles que são as mais graves ameaças. Acho que tem muita coisa para se fazer na segurança pública antes de falarmos que a solução é prender. A função da polícia também é prevenir o crime e, para isso, é preciso informação, dados, mas pouquíssimas polícias no Brasil atuam com base nisso.

Temos que ter também um sistema de justiça que funcione. E a prisão iria cumprir uma função que seria de ressocialização, de devolver [à sociedade] pessoas melhores. Mas hoje ela é parte do problema. Temos uma série de medidas alternativas à prisão que não aplicamos e que seriam mais baratas, mais humanas e melhores para todo mundo. Mas colocamos mais gente para alimentar essa mão de obra do crime porque hoje, infelizmente, presídios também são controlados por facções criminosas. Mandamos para a prisão uma pessoa que cometeu um crime pouco grave, de baixo potencial ofensivo, e ela sai pior, recrutada. Temos que repensar esse sistema.”

Crédito: Mariana Pekin/Acervo Trip

Sebastião Oliveira passou parte da infância e a adolescência em uma instituição para menores porque o patrão de sua mãe não o queria na mansão com ela. Ele poderia ter se afundado em rancor e tragédia, mas escolheu mudar a vida de crianças de uma comunidade carioca. É homenageado p.elo prêmio Trip Transformadores 2018.

“Costumo dizer que o tráfico de drogas é uma empresa que admiro muito. Vocês não sabem o quanto ela é eficiente. E o tráfico me inspirou, porque consegue enxergar um menino como meu filho de 8 anos e trabalha ele até os 16 anos, quando está forte, já viciado, pegando em armas. Aí a sociedade enxerga ele, o estrago. Entra a polícia, que ataca, reprime. Mas, quando ele estava com 8 anos, quem estendeu a mão, quem o transformou, foi o tráfico; ele é um soldado.

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E o tráfico é tão poderoso, faz marketing, ainda mais quando o menino mata alguém, leva o ‘prêmio’ e chega com uma moto. É desse jeito que eles são respeitados pelos amigos e inimigos. A imprensa acaba publicando uma foto dele – ‘ele tinha um futuro’ – e isso está valorizando o trabalho que fez. Ele pensa: ‘Pô, um dia também vou matar para poder aparecer. Olha o cara que matou e se deu bem, quero ser mau assim também’. Dessa forma eles se tornam respeitados. Esse garoto que está matando é um marginal. Mas ele é tão vítima quanto aquela que ele faz. Entendi o jogo. Então, faço um trabalho semelhante: o tráfico chega quando o menino tem 8 anos, passei a chegar quando ele tem 6. Trabalho essas crianças e com 15, 16 anos, elas sonham em viajar, fazer faculdade, porque a gente não tem só o esporte.

É possível conviver, se a gente entender que quem está do outro lado da comunidade é igual a nós. Só basta olhar para o lado. A pessoa que me ajudou não me deu dinheiro, ela simplesmente me deu uma palavra, clareou para que eu não tropeçasse. Então muitos de vocês que puderem olhar para o lado, falem ‘tudo bem?’, ‘você precisa de alguma coisa?’, ‘por que você está aqui?’. Procurem entender, isso é diminuir essa diferença, abaixar o muro.”

Crédito: Mariana Pekin/Acervo Trip

Padre Júlio Lancellotti milita há mais de 30 anos pelos direitos humanos, sempre ao lado das minorias, seja a população carcerária, seja os dependentes químicos ou os moradores de rua. É homenageado pelo prêmio Trip Transformadores 2018.

“A população de rua faz parte da lógica do nosso sistema. O capitalismo neoliberal não funciona sem descarte. Então, a população de rua é a lógica desse sistema. É o que foi chamado pelo papa Francisco de “descartáveis”. São os sobrantes, os indesejáveis. Los Angeles tem 58 mil pessoas morando nas ruas, São Paulo está chegando aos 20 mil. Diariamente, encontro pessoas que estão vindo de outras cidades, de outros estados. Temos nas ruas de São Paulo haitianos, muitos africanos, venezuelanos e outros latino-americanos que se deterioram muito rapidamente. Porque a rua deteriora as pessoas.

As pessoas que estão ali são vistas de maneira muito repugnante. Quantos aqui se relacionam e convivem com elas? Sabe me dizer o nome de uma delas? Perguntam se ela está bem? Deu a mão para uma delas? Eles são muito sensíveis ao olhar. Digo que a minha senha para conviver com a população de rua é o olhar. Se você for capaz disso, imediatamente terá uma resposta, seja um “chega pra lá” ou a que mais tenho, que é o sorriso. Como diz o [sociólogo Zygmunt] Bauman, nós vivemos numa sociedade de cegueira moral, um momento agudo de penalização das pessoas.

 A pergunta certa

As últimas pesquisas mostram que 42% da população de rua é egressa do sistema penitenciário, que carrega esse estigma. Muitos passaram por instituições fechadas para adolescentes. O grupo LGBT na rua aumenta muito por conta do moralismo das famílias, das igrejas, por uma penalização, assim como o número de mulheres com crianças. E o desemprego não basta para explicar tudo, porque o Brasil tem 13 milhões de pessoas sem emprego, mas tem 100, 150 mil pessoas nas ruas de todas as cidades do Brasil.

Outro dia um morador de rua me disse: ‘A assistente social me pergunta tudo, mas nunca o que eu sinto’. Eles falam: ‘Padre, hoje é meu aniversário’. E se a gente faz alguma coisa para festejar, eles ficam muito surpreendidos. Quem é que diz para um morador de rua ‘que bom que você chegou’, ‘estava com saudades de você’, ‘onde você estava?’? Houve uma ação muito forte na Cracolândia [São Paulo], em janeiro. E eu estava lá todos os dias com um grupo religioso, o Missão Belém, estive na mira de tiro da PM pelo menos três vezes. Mas fiquei alguns dias sem ir, quando minha cunhada faleceu. Uma semana depois, fui na reunião dos padres, o encontro burocrático de sempre, ninguém me perguntou nada nem olhou para mim. Mas cheguei na Cracolândia e eles perguntavam: ‘Onde você estava? Por que não veio? Você está triste? O que foi que te aconteceu? Fala, pode falar para nós’. Aqueles que chamam de zumbi, craqueiros.

É possível conviver sem ter medo do conflito, da luta, de estar do lado dos fracos, da comunidade LGBT, dos negros, dos indígenas, das mulheres, de todos os que lutam para viver. É possível conviver com os juízes e o Judiciário abrindo mão dos privilégios. É possível conviver nessas eleições dizendo ‘democracia já’, ‘fim da ditadura’, ‘ditadura nunca mais’. É possível conviver cantando ‘Bella Ciao’, lutando contra o fascismo, contra os poderosos, pela vida dos fracos, dos pobres e dos pequenos. Vou conviver e morrer lutando até o fim. A minha perspectiva, na idade em que estou, é o fracasso, porque nesse sistema, se fizer sucesso, aderi a ele.”

Créditos

Imagem principal: Maxwell Alexandre

Edição: Bruna Bittencourt Fotos: Mariana Pekin Arte: Maxwell Alexandre

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