O que é que o baiano tem?
O big rider Yuri Soledade acaba de domar aquela que vem sendo considerada a maior onda já surfada na história. Ele é o mad dog baiano de 40 anos, mestre da superação dos limites humanos e guru
No dia 25 de fevereiro de 2016, às 8 da manhã, o big rider Yuri Soledade, 40, pegou a onda da sua vida em Jaws, na ilha havaiana de Maui. O paredão de mais de 20 metros que avançava em um bloco, feito um tsunami, é considerado uma das maiores ondas já surfadas na história. O feito histórico arrancou elogios de gente como Laird Hamilton, estampou sites e revistas ao redor do mundo e é finalista do XXL Big Wave Awards deste ano, o Oscar das ondas grandes, em uma temporada inesquecível e que vem sendo considerada a melhor em décadas.
O surfista e empresário vive uma vida confortável no Havaí, com a mulher, Maria, e os filhos, Kaipo (seu enteado de 18 anos, do primeiro casamento de Maria), Kiara (13) e Koa (7). Yuri é um daqueles sujeitos de sorriso largo, fala tranquila, olhar aluado e pensamentos cordiais. Até entrar na água. No mar, é um mad dog, apelido que ganhou ao lado dos parceiros Danilo Couto e Marcio Freire, trio de brasileiros que ganhou notoriedade por se arriscar a dropar a poderosa onda de Jaws na remada repetidas vezes, quando todos pensavam que aquelas massas de água gigantes só podiam ser surfadas com o auxílio da propulsão de jet skis. Os três são festejados por devolver ao pico a aura original do surf justamente em um tempo em que patrocínio e dinheiro estavam começando a ditar as regras do lugar — a era do tow-in
A trajetória do menino que pegava onda em cima de um pedaço de madeirite em Olivença, no sul da Bahia, nos anos 80 e hoje é um dos surfistas profissionais mais respeitados do mundo – com peso igual para suas conquistas dentro d’água e para a força de seu caráter fora dela – não é apenas uma narrativa de superação. Soledade tem uma espécie de ética própria, amalgamada ao longo de sua experiência de vida e que norteia suas ações cotidianas sempre numa mesma direção: colocar uma intensa energia positiva no que faz. Sem nem uma dose de mística, ele completa: “Faço isso de forma muito consciente, para mostrar para os outros que, se eu saí do interior da Bahia e hoje vivo o meu sonho, eles também podem”.
O baiano acabou conquistando status de guru na sua comunidade. Surfistas mais jovens são treinados por ele — nomes como Kai Lenny,considerado um dos maiores watermen da história, e o brasileiro Ian Gentil. Os que estão no auge também consultam seus conselhos. Sua família e seus amigos estão sempre por perto, muitos deles vizinhos da sua casa em Maui, conhecida como a embaixada brasileira na ilha. Os empregados de seus restaurantes são profissionais motivados. Seus companheiros de caídas são só elogios.
Nascido em Ilhéus, Soledade foi pupilo do campeão brasileiro Jojó de Olivença, e começou a competir aos 11 anos. Foi campeão baiano e vice-campeão nordestino, mas viver de surf era impensável. Morava com os pais e os dois irmãos na pousada da família, de onde saiu aos 15 anos para viver em Salvador, adotado pela família do colega de campeonatos Rodrigo Rizzo. Só para provar que surfista também podia, entrou em quinto lugar no concorrido curso de engenharia química da Universidade Federal da Bahia, mas largou tudo para viver seu sonho havaiano: desembarcou lá em 1994 e fincou pé até hoje.
Hoje Soledade é o bem-sucedido dono de quatro restaurantes, entre eles o localmente famoso Paia Fish Market, onde começou como lavador de pratos, um endereço despretensioso em uma tradicional rua de comércio e restaurantes da Praia de Paia (lê-se Paía), com um menu que inclui tacos, fish and chips e teryakis. Seus planos incluem expandir o negócio para dez restaurantes e, para tanto, dedica metade do seu tempo para os treinos e a outra metade para os negócios. “Mas, quando dá onda grande, todo mundo sabe que alguém vai ter que cobrir o Yuri empresário”, conta.
Trip. Você já sentiu que ia morrer?
Yuri Soledade. Já.
Quando? Em um swell gigante em 2012. Para tomar duas, três ondas na cabeça, estamos preparados. Mas tomei duas, cinco, dez, trinta. Isso foi tirando minha energia de uma forma... Eu só saí porque fui praticamente expulso do mar. Cheguei pertinho das pedras. Eu já estava sem energia, amolecendo. Mas deu aquela parada e falei: “Não, agora vai ser minha vez, vou dar o maior gás e entrar no mar de novo”. Era o primeiro swell da temporada. Quando estou chegando quase lá fora, vem outra série. De novo me puxa até as pedras. Você não consegue furar as ondas com uma prancha gigante, você tem que largar. A correnteza foi me levando, a prancha meio que se enrolou nas pedras, e a correnteza pra um lado, a prancha pro outro, eu sem energia nenhuma, tomando muita água. “Meu irmão, já era. Deu. Tive uma vida muito boa.” Cheguei nas pedras, deitei cuspindo sangue, não conseguia levantar, todo arranhado, sem força nenhuma. Nesse dia eu realmente pensei que já era.
Você pensou isso mesmo, “tive uma vida muito boa”? Pensei. Tive uma vida muito boa, passei ela inteira fazendo o que gosto..
Foi um momento calmo? Foi totalmente calmo. Estava tão sem energia que não conseguia nem ficar afobado. Tinha tomado mais de 50 ondas, bem mais, uns 40 minutos tomando na cabeça sem parar.
Como é que uma pessoa que passa por isso ainda volta na remada para um mar gigante? Acho que é a paixão. Quando estou em Jaws, é o momento em que me sinto mais vivo e mais conectado com a natureza, com Deus, com energia positiva, com tudo. Sei que ali, naquele momento sou só eu, então se eu fizer alguma coisa de errado, vou ter que lidar com as consequências. Se eu fizer a coisa certa, vou ter uma recompensa, um sentimento de conquista, de alcançar uma coisa muito importante e rara. O mais próximo que consigo imaginar disso é quando uma mulher pare um filho, quando você dá uma vida. Eu sinto uma energia, uma vibração que toma conta do corpo. Não consigo me imaginar sem isso.
Você se considera um cara viciado em adrenalina ou só no surf? É só o surf. Todo mundo fala que, dentro d’água, meu olho se transforma, eu viro um louco, e quando saio da água sou o cara mais tranquilo, calmo e paciente do mundo.
Em que ano você caiu na remada em Jaws pela primeira vez? Era 2004 para 2005. Alguns anos antes, quando Danilo [Couto] veio morar no Havaí, no fim dos anos 90, achou uma fita de vídeo na qual uns caras tentavam remar em Jaws e não conseguiam. Nós já surfávamos lá, mas não tínhamos grana pra jet ski. No começo da década de 2000 o tow-in começou a ficar realmente forte e eu acabei entrando nessa. Amigos como o Laird [Hamilton] – sou padrinho da filha dele – davam uma força com equipamento, viagens.
“Vou morrer fazendo o que gosto”
Yuri Soledade, surfista big rider
Chegou num momento em que o Rodrigo Resende [big rider brasileiro], que era o meu ídolo até então, se mudou para Maui e começamos a focar na ideia da remada no surf de ondas grandes. Um dia a gente está saindo de jet ski, chega esse havaiano e fala: “Meu irmão, ouvi dizer que você surfa e tal” – nem me conhecia, só tinha ouvido meu nome – “o mar nem tá tão grande, porque você tá saindo de tow-in? Tem que sair é na remada”. Era o Roy Patterson, um dos caras que estava na fita – o outro era Johnny V. A minha primeira caída com vontade de tentar a remada a sério mesmo foi esta: Rodrigo Resende, eu, Roy e um outro amigo nosso, Kevin Kenneth. Antes disso, Danilo, Rodrigo e outros caras já tinham ido lá, surfado uma vez na remada, e depois não tinham voltado mais. Aí, em março de 2007, remamos os três, eu, Danilo e Marcio. A gente foi a primeira vez, tomou uma bomba na cabeça e saímos falando: “Foi irado, vamos procurar uma maior”. Aí veio o apelido Mad Dogs.
Quem colocou o apelido em vocês? A galera local. Toda vez que eles viam a gente lá na remada e depois nos encontravam, chegavam: “E aí, mad dog!?”. A gente tomava na cabeça, saía todo destruído, prancha quebrada, coisa de cachorro doido mesmo.
Você tem uma data para encerrar sua carreira na água? Vou surfar pelo resto da vida. Mas para ondas grandes, já tracei um limite. Jogo a toalha no dia em que sentir um medo que não consiga ser superado. Se um dia eu perceber que não estou bem, que vai ter uma onda que não vou encarar, aí eu paro e vou me divertir com ondas pequenas. Pra mim, o melhor surfista é aquele que se diverte mais. E no momento ainda estou me divertindo nas ondas grandes.
Você sempre lidou dessa maneira com o medo? O medo existe..
E você faz algum trabalho específico para isso? Meditação, preparo físico, oração?Não, para mim, está tudo na preparação, desde o início da temporada. Eu treino bastante: sempre que posso, estou na água. E tenho uma série de treinadores, um personal trainer, um coach que me acompanha em tudo, me ajuda no psicológico, faz massagem. Eles me preparam para que eu possa ter confiança total de que vou poder realizar os meus objetivos. Isso sem falar nos Mad Dogs, nós nos damos muita força. É um conjunto de coisas, não é só eu chegar ali e pegar a onda. Tem toda essa preparação, esse time e esses amigos. Eu provavelmente nunca teria conseguido sem isso.
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Você já teve contusões complexas. Como seu corpo encara a intensidade dessas experiências? Nunca tentei me enganar achando que não há riscos envolvidos. A última temporada foi excepcional. Quebrei minha perna e os médicos falaram que tinha que esperar seis meses para voltar – em quatro meses eu já estava surfando. Aí rolou uma vaga para o primeiro campeonato mundial de ondas grandes oficial em
“No primeiro swell de Jaws, fui numa onda para esquerda, Danilo não me viu, dropamos juntos, nos batemos e quebrei a costela”
Yuri Soledade, surfista big rider
Jaws em dezembro e, na primeira onda, tirei o ombro do lugar. A vaga era um símbolo para os Mad Dogs: eu consegui um lugar, mas Marcinho e Danilo não, então eu não podia desistir. Meu ombro estava totalmente fora do lugar depois daquela onda, eu não conseguia nadar, quase não subia no jet ski. Consegui puxar com o outro braço. Um cara me levou para o canal e botou meu ombro de volta no lugar, mas não deu para voltar. Fiquei um mês fazendo fisioterapia, câmera hiperbárica, picada de abelha, acupuntura, massagem. Voltei do ombro e, um mês depois, comecinho de janeiro, no primeiro swell de Jaws, fui numa onda para esquerda, Danilo não me viu, dropamos juntos, nos batemos e quebrei a costela. Mais quase dois meses de recuperação até pegar essa onda de tow-in que é finalista do XXL. E o tempo todo eu tinha dúvidas na minha cabeça: “Será que sou maluco e não sei? Tô aqui insistindo e me machucando sem razão?”. Nada mais era do que provação. No fundo, eu sabia que a onda da minha vida estava pra vir.
Foi essa? Foi. E ela veio por merecimento.
Você pegou a onda da sua vida em uma temporada que vai entrar para a história pela força do mar. O que você sentiu naquele momento? É tudo muito rápido ali. Ao mesmo tempo, é uma eternidade. Durante todo esse tempo, senti que estava entre a vida e a morte. O jet ski me pegou no barco, eu mal consegui ajeitar a alça do equipamento. Os amigos gritaram que a série estava chegando, o jet acelerou e eu peguei a terceira onda. Ela era totalmente diferente de todas as ondas que já vi em Jaws porque não tinha um ponto maior que os outros, era grande por inteira, parecia um tsunami. Quase caí porque a alça estava folgada e a velocidade era muito grande. O pessoal gritava tanto no canal que quando saí já sabia que tinha sido extraordinário. No dia seguinte o Laird [Hamilton] deixou uma mensagem me dando os parabéns e dizendo que nunca tinha visto nada parecido.
Você inspira muita gente. Quem são os seus ídolos, seus mestres, gurus? Danilo e Marcinho. Claro que tenho outros ídolos, pelo nível de surf e por tudo o que representam. Gente como o Shane Dorian, Kai Lenny, Albee Layer. Mas os Mad Dogs são os caras que vão lá mesmo nas dificuldades, mesmo achando que vão morrer. Botam a vida em risco swell após swell sem equipamento, sem ter dinheiro, sem ter como treinar todos os dias. Eles transpiram paixão.
Você também é muito admirado por surfistas, gente acostumada com competição, ego, vitrine. Como acha que esses caras veem você? Devem achar que eu sou maluco! Um cara no auge profissional, com três filhos e uma família linda, que tem tudo, e se joga nessas ondas? Não faz sentido. Mas eles não compreendem que, pra mim, aquilo é um sonho de criança, um objetivo de vida. É difícil entender que tudo o que eu fiz na minha história foi para poder estar ali.
Como a Maria, sua mulher, lida com o risco que você corre como esportista de ponta? A Maria é minha grande parceira, ela apoia tudo que eu faço. Nosso filho mais velho, o Kaipo, tem feito a minha segurança na água, além de participar de rodeios com touros, então ela sofre duplamente, mas, acima de tudo, ela apoia. A única coisa que ela não faz é nos assistir em Jaws, porque uma vez acabei levado pela espuma para outra praia, sumi por alguns minutos, os jets me procurando achando que eu tinha morrido. Ela ficou desesperada. Hoje, quando eu saio da água, telefono para avisar que está tudo bem.
Como foi sua infância na Bahia? Nasci em Ilhéus, no sul do estado. Morava em Olivença, um distrito da cidade. Adorava o mar, gostava de nadar, pescar, e comecei a surfar com aquelas pranchas de madeirite. Meu irmão mais velho surfava e ele era bom. Comecei a participar de campeonatos com 11 anos. Vendo gente como Jojó de Olivença, que foi campeão brasileiro e me pegou para pupilo, comecei a sonhar em ser surfista profissional. Por isso me mudei para Salvador aos 15.
Sua família se mudou com você para Salvador? Fui sozinho, morar com a família de um garoto que surfava os campeonatos comigo, o Rodrigo Rizzo. Eles são uma segunda família para mim, fundamentais na minha vida. Assim que cheguei a Salvador, eles organizaram um teste para mim no Anchieta, que era a melhor escola da cidade. Eu era muito estudioso e muito bom aluno, um dos melhores da escola. Eles viviam em uma cobertura com piscina e eu vinha de uma família humilde. Foi como ir morar em um palácio. Mas, muito mais importante do que isso, seu Alfredo e dona Leda Rizzo me ensinaram a acreditar em mim, tinham a cabeça aberta. Contribuíram demais para a minha formação como pessoa. Enquanto minha família me deu base para lutar.
O que seus pais faziam em Ilhéus? Eles trabalhavam com restaurante. Meu sucesso aqui no Havaí, nesta área, aconteceu por conta desta base. Eles tiveram vários empreendimentos: pousada, boate, bar, cabana de praia, restaurante, pizzaria. A gente morava em uma pousada que tinha uns cem quartos. E como eu morava no meio de um hotel, aprendi como as coisas funcionam.
Mas essa não é a descrição de uma “família humilde”, como você disse há pouco... Eles começaram com uma cabana na praia. Trabalhavam muito, mas não tinham preparo para gerenciar bem. Tinham um coração bom, mas às vezes davam um passo maior que a perna, distribuíam as coisas entre a família. Durante os anos em que eu estava em Salvador, depois de crescer muito, eles caíram em um golpe: um cara que arrendou a pousada falsificou a assinatura deles e vendeu a propriedade. E eles tiveram que começar tudo de novo.
Como e quando você decidiu se mudar para o Havaí? Eu tinha acabado de entrar na faculdade de engenharia química. Tinha resolvido fazer vestibular para o curso mais disputado para provar que um surfista podia passar. Na Bahia havia um polo petroquímico e ser engenheiro era ser bem-sucedido, ganhar muito dinheiro. Eu vivia dividido entre o surf e os estudos, ganhava um dinheirinho com os campeonatos, mas ainda contava com a família para me sustentar. Um dia, com o passe escolar na mão, esperava no ponto e o ônibus não chegava nunca.
“Quem disser que não sente medo quando entra no mar gigante está mentindo”
Yuri Soledade, surfista big rider
Chovia, eu estava todo molhado. Entro no ônibus lotado, o motorista passa o meu ponto. Quando consegui descer, estava longe de casa. Cheguei louco da vida e pensei que minha história ia ser aquilo por um bom tempo. Nesse momento, o telefone toca, era um amigo, Fábio Machado, o Balboa, com viagem marcada para o Havaí. Eu tinha ganhado uma passagem como prêmio em um dos campeonatos, mas não tinha dinheiro para ir. Ele prometeu me emprestar US$ 500. Um irmão da minha mãe morava em Maui e pensei que poderia ficar lá no começo. Uma semana depois, estava pisando no Havaí pela primeira vez. Era 1994.
Você foi direto para Maui? Não havia muitos brasileiros ali no início dos anos 90, né? Meu tio, Paulinho Magulu, já morava no Havaí havia vários anos. Ele era um surfista de ondas grandes, lutador de jiu-jítsu, bastante conhecido e respeitado pelos locais. Tinha se mudado de Oahu para Maui porque achava o lugar mais tranquilo. Ele sempre mandava cartas, vídeos de surf.
Como foi a adaptação? Bem diferente do que eu imaginava. Achava que o Havaí era uma ilhazinha em que todo mundo só surfava e tomava água de coco [risos]. Maui é grande e as coisas funcionam! Sair do interior da Bahia, onde não tem universidade, as leis não funcionam, e desembarcar no primeiro mundo é um choque grande. O Havaí é o sul da Bahia no primeiro mundo. Mesmo clima, aquela calmaria, mas com altas ondas. [Risos]
Seu tio te recebeu de braços abertos? Meu tio foi superduro comigo no início, e assim me mostrou uma realidade que eu não conhecia. Quando cheguei, a primeira coisa que ele falou foi: “Aqui é assim: primeira semana, tranquilo, você é meu sobrinho. Segunda semana, você surfa bem, gosto de você. Terceira semana, vai arrumar trabalho e vai pagar aluguel. E outra coisa, não vou te ajudar a arrumar trabalho. Eu saí do Brasil, você tinha 8 anos. Não sei nem quem você é, pra mim você é um estranho. Vai ter que provar que é uma pessoa bacana”. E eu pensei que ele era o cara mais escroto do mundo: “Vou passar fome!”. Arrumei tudo que é trabalho, passava de casa em casa, fui jardineiro, catei pedra. Descobri que ser ético mesmo em trabalhos pequenos podia mostrar quem eu era. Deu certo.
E no mar, você enfrentou o famoso localismo havaiano? Quando eu chegava nos picos para surfar, já falavam: “Esse é o sobrinho do Paulinho Magulu”, já deixavam eu pegar ondas. E eu já tinha um nível elevado de surf quando cheguei. Rolaram brigas, mas sempre consegui me impor. É preciso respeitar para ganhar respeito. Hoje, me sinto como se fosse um local, como se tivesse vivido aqui minha vida inteira.
Qual foi a briga mais marcante? Teve uma em Ho‘okipa, uma praia bem conhecida aqui em Maui. Um cara tinha queixado umas ondas minhas, mas eu não tinha falado nada. Aí veio uma onda, não vi que ele tinha ido e acabei indo. Pedi desculpas, mas ele não queria conversa e jogou água na minha cara.Chamei ele para a areia. Era o começo do jiu-jítsu nos Estados Unidos, eu treinava com meu tio. Estava dando entrada no green card, eu não queria brigar... Mas não teve jeito. Avisei que se ele chegasse perto, o bicho ia pegar. A gente ficou meia hora rodando na praia. Toda vez que ele chegava perto, eu dava uma nele. Mirei na joelhada, mas larguei e falei: “Tá vendo? Já se livrou de tomar uma joelhada”. Ele veio pra cima, dei um pisão e ele caiu na areia. Falei: “Tá vendo? Já era outra que eu podia ter te enfiado a porrada”. A essa altura a praia já estava cheia... Ele começou a cansar e acabou desistindo. Eu poderia ter enfiado a porrada no cara e não fiz. Acho que nesse momento ganhei mais respeito. Hoje somos amigos e o filho dele, Jackson Bunch [13 anos], é um dos melhores surfistas da ilha.
Você dedica mais tempo para o surf ou para os restaurantes? Hoje a divisão é igual. Decidi seguir esse caminho porque não queria depender de ninguém para pagar os equipamentos ou viajar. O Danilo Couto, por exemplo, se mudou para Oahu e focou sua carreira no surf de ondas grandes. Mas hoje todo mundo sabe: quando dá onda grande, alguém vai ter que cobrir o Yuri empresário. Tenho a liberdade de seguir meu sonho.
Como você conseguiu abrir o primeiro restaurante? Comecei cobrindo férias de um funcionário. No primeiro dia, o cara me colocou para lavar pratos, sumiu e me mandou bater o ponto dele. No dia seguinte, saiu de férias. Quando voltou, eu já era gerente. E hoje sou o dono.
Como assim? Quando cheguei, a cozinha estava imunda, tudo ali estava mal preparado, a galera trabalhando mal. O restaurante precisava de uma geral e eu sabia o que fazer porque tinha visto meus pais fazendo isso a vida toda. Eu não admitia sujeira na cozinha porque minha mãe sempre criticava isso. Quando as donas chegavam para trabalhar pela manhã, eu já tinha feito todo o trabalho delas. O restaurante estava todo limpo, paredes brancas, panelas limpas, fogão, tudo. Tapetes esfregados à mão. Quando o cara voltou de férias, o restaurante já estava dominado.
E como você virou dono? A dona começou a me perguntar o que eu achava para tudo. Virei gerente e fiquei trabalhando por dois anos, quando minha mulher engravidou. Não tinha mais onde crescer ali, eu não podia mudar mais as coisas se não fosse o dono. O Fish Market tinha começado a dar um pequeno lucro e o terceiro sócio, que era um investidor, disse que se eu conseguisse US$ 100 mil em dez dias eu poderia ter um terço do restaurante, porque ele queria o dinheiro para investir em outra oportunidade. Liguei para todo mundo que eu conhecia e os amigos me ajudaram a juntar US$ 75 mil.
“Dentro d’água, meu olho se transforma, eu viro um louco, e quando saio da água sou o cara mais tranquilo, calmo e paciente do mundo”
Yuri Soledade, surfista big rider
O cara não aceitou e eu fiquei muito triste. Foi aí que eu encontrei o João Gentil na fila do supermercado. Ele viu que eu não estava bem e perguntou: “Pô, Yuri, você é um cara amarradão, tá sempre feliz, o que tá acontecendo?”, e eu contei sobre o restaurante, falei que estava desesperado. Ele me falou para passar na casa dele e pegar o cheque do que faltava. Foi o cheque que mudou a minha vida.
Ele não pediu nada em troca? Ele é um empresário bem-sucedido, dono do Beach Park de Fortaleza. Disse que eu poderia devolver quando quisesse, desde que ensinasse o filho dele a surfar quando ele estivesse pronto. Topei na hora. Hoje sou o treinador do Ian Gentil. E no primeiro dia como dono do restaurante já cheguei falando: “O negócio é o seguinte, de agora em diante quem manda sou eu. Todo mundo aqui vai ganhar US$ 1 de aumento. E a partir de agora a gente vai trabalhar com bonificação e metas. Vamos tratar os clientes superbem. Eu prometo que, pelo menos no ramo dos restaurantes, vocês vão ser os empregados mais bem pagos dessa ilha”.
O que mudou para que os surfistas brasileiros tenham finalmente entrado para valer no seleto grupos dos melhores do mundo? Eu realmente achava que não estaria vivo para ver esse momento... A real é que, durante muitos anos, havaianos, americanos, australianos e europeus tinham as melhores ondas, o apoio e a estrutura para competir e vencer, geração após geração. A maioria dos atletas que estão dominando hoje é fruto de famílias envolvidas com o surf: Filipinho [Filipe Toledo], Miguel Pupo. O Mineirinho não, mas ele teve o Pinga ali, que foi “pai”, e o Pinga respira surf, é como eu, faz tudo pelo surf. Quando os brasileiros tiveram acesso à estrutura, puderam viajar, treinar e se aprimorar, chegaram lá. A mesma coisa aconteceu com os Mad Dogs. Às vezes você precisa ter uma pessoa ao seu lado para te incentivar e te puxar.
Você acha que a gente leva o título esse ano outra vez? Eu estava botando a maior fé no Filipinho, mas ele se machucou. Para mim, o atleta mais completo do circuito é o Medina. Ele ainda vai ser campeão mundial mais algumas vezes. Agora que o Filipinho não está lá, estou levando fé no Medina outra vez.
Você ainda pretende voltar para o Brasil? Meu objetivo de vida é poder morar seis meses no Havaí, durante a temporada de inverno, e os outros seis meses no Brasil. Se eu tivesse condição mesmo, e tivesse com os filhos criados, gostaria de passar seis meses aqui, seis meses aí. Mas não é por saudade da família, já que tem muita gente que se mudou para cá, primos, primas, irmãos, amigos de infância. Minha casa é praticamente a embaixada brasileira em Maui.
Se eu chegasse em Maui e pedisse para alguém descrever você, o que acha que as pessoas iam dizer? Acho que iam falar que sou uma pessoa de bom coração, alguém que ajuda todo mundo, que sou um líder. E que de alguma forma, não sei nem como explicar, pra todo mundo que mora aqui, sou uma referência. Eu tento ser um exemplo o tempo todo. Procuro mostrar que, se um cara como eu, que saiu lá de uma cidadezinha do interior da Bahia, sem dinheiro, sem nada, hoje é o dono do restaurante no qual ele lavava pratos e consegue fazer o que gosta da vida, então todo mundo pode. O curioso é que faço tudo isso com muito esforço e dedicação, sempre querendo ajudar os outros, não pensando só em mim. E essa energia sempre volta pra mim. Quanto mais eu ajudo, mais volta.
Você quer retribuir? Sim, é exatamente isso. Desde cedo tive que lutar muito por tudo, mas sempre cruzei com pessoas maravilhosas no meu caminho. Desde os meus pais biológicos, um exemplo de raça no trabalho, a bondade da família Rizzo, que me abraçou como filho, o exemplo do meu tio. Eu pensava: “Meu Deus, tantas pessoas foram tão boas comigo, eu vou ter que retribuir de alguma forma. Vou ter que mudar a vida de outras pessoas também”.
Créditos
Imagem principal: Fred Pompermayer