Deixa surfar
O que você faria se seu filho de 12 anos fosse um talento fora do comum no surf? Ryan Kainalo venceu oito de nove títulos que disputou
Ryan Kainalo passou todas as férias de sua vida no Havaí. Ele tem 12 anos. Quando tinha 3, fazia dobras no tapete azul da casa onde a família fica hospedada, na praia de Velzyland, para formar ondas de pano para seus bonequinhos surfarem. No início deste ano, a pouco mais de 3 quilômetros da mesma casa, era ele quem parecia um bonequinho despencando de ondas de quase 3 metros na bancada de Pipeline.
Muito além do tapete da sala, o Havaí sempre foi a segunda casa da família de Ryan – a principal promessa do surf brasileiro nessa idade. Ele é filho de Alex Miranda, 47, que nos últimos 27 anos passou 27 férias no arquipélago. “Sempre trabalhei para ter dinheiro para ir para o Havaí”, conta o empresário, fundador da Trator Filmes, uma tradicional produtora de São Paulo que fez, por exemplo, o vídeo oficial da Copa do Mundo do Brasil. A empresa, por sinal, está prestes a lançar um documentário sobre a vida do santista Picuruta Salazar, lenda do surf brasileiro (e, em 2012, assinou Cutback, que conta a história do catarinense Teco Padaratz).
O paraíso dos surfistas também é o ponto alto das férias da modelo e publicitária Paula Capobianco, 29, que se casou com Alex – adivinha – no Havaí, em 2009. Ela, sobre um longboard, é mais uma presença regular desse surf em família. Juntos, eles pegam ondas em praias de Fernando de Noronha, Portugal, Costa Rica... Nas últimas viagens ao Havaí, porém, ela tem precisado encontrar passatempos paralelos, como os passeios com as amigas pelas trilhas de Pillbox, Crouching Lion e Diamond Head. “É que o surf dos dois passou a ser um treino, um lance profissional mesmo”, ela conta.
Dá para entender. No último ano, Ryan venceu tantos campeonatos que arregalou não apenas os olhos da família, mas do mundo. Tome fôlego para a lista: Lakey Peterson Keiki Bowl, competição sub-14, na Califórnia; Circuito havaiano sub-12, em Sandy Beach; Circuito da Costa Rica (disputou na sub-12 e na sub-14); Billabong Junior Series, na África do Sul; Taj’s Small Fries, organizado pelo surfista Taj Burrow, na Austrália; Grom Search Maresias; Circuito Hang Loose Brasil; Circuito catarinense (disputou na sub-12, sub-14 e sub-16) e campeonato do Arpoador Surf Club (sub-12, sub-14 e sub-16). E olha que seu principal resultado foi em um torneio no qual ficou em quinto lugar: o WSL Pro Junior sul-americano para atletas de até 18 anos, na Guarda do Embaú – ele tinha 11. Foram tantas premiações – pranchas, equipamentos, roupas, relógios – que Ryan montou um e-commerce para vender os badulaques. A maratona só se viu interrompida por um mês de férias na Indonésia, para surfar com o pai.
Sonhando acordado
Na prateleira de troféus, figuram ainda comentários que a família passou a ouvir sobre o garoto. Um deles, nessa última viagem para o Havaí. Num final de tarde ensolarado, com ondas de pouco mais de 1 metro, Kelly Slater dava uma entrevista para uma rede de televisão perto de Pipeline. A certa altura, o eneacampeão mundial cortou uma resposta e apontou o mar: “Look at this kid!”, exclamou. Era Ryan, que vinha rasgando uma parede azul de água. Dias antes, o menino surfava com o pai em Velzyland quando Michael Ho, 60, outra lenda do surf, entrou no mar. “Ele me chamou para o pico principal da bancada [onde os locais têm preferência] e me empurrou em uma onda boa, para que ninguém fosse nela”, conta o menino. “É engraçado”, completa Alex, com um meio sorriso, “eu vou para o Havaí há 27 anos e o Michael nunca falou comigo”. A lista de surfistas que disseram que Ryan “é nível CT” (o circuito mundial) segue com nomes como Everaldo Pato, Binho Nunes, Paulo Moura...
No início do ano, o fulminante sucesso de Ryan provocou uma questão doméstica. Ele deixou os pais em São Paulo e foi morar na Praia de Itamambuca, em Ubatuba (SP), com os avós paternos. Ele fez, aos 12 anos, aquilo que era esperado que acontecesse apenas aos 18. Tudo aconteceu rápido demais para Ryan e, difícil não notar, também para Alex. “Ele está vivendo um sonho... Mas, no dia a dia, é como se eu tivesse perdido o filho”, diz o empresário. “Outro dia, abri a porta do quarto dele de manhã e, quando vi o vazio, sentei e chorei por meia hora.”
Deixar que Ryan morasse na praia foi uma decisão tomada entre dois adultos, Alex Miranda e Renata Cassol, a mãe do surfista – eles têm ainda outro filho, Kalani, 15, esse um virtuoso no skate –, sob a regência de uma mesma filosofia de vida. Explica-se. Ao que parece, existem duas maneiras de forjar um campeão de surf. Uma delas é pegar um jovem talentoso e cercá-lo de todos os treinamentos e cuidados possíveis. É a fórmula dos 32 meninos e meninas do Instituto Gabriel Medina (IGM), em Maresias (veja o texto da página 72). A outra, que pode ser vista como um reflexo invertido da primeira, é a opção de Ryan e família.
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No caso dele, todos os nutricionistas, cinegrafistas e outros “istas” foram trocados por um único tutor: o mar mesmo. Quando perceberam seu evidente futuro, os pais decidiram que ele deveria morar em frente a uma das melhores ondas do litoral de São Paulo – algo que o garoto insistia faz tempo. Vale dizer: naquela extensa lista de campeonatos vencidos, pode ser incluído um título do Circuito Gabriel Medina, em 2016, o que dava a Ryan a oportunidade de treinar no IGM, vaga que ele declinou. “Eles surfam sempre em frente ao Instituto... Aqui, se o mar não está bom, vou para outra praia, tenho vários amigos que me dão carona”, ele diz.
Menino bom
Esse estilo de vida moldou em Ryan uma personalidade independente. Todo dia ele acorda às 6h15 (sozinho) e gosta de preparar ele mesmo o lanche do colégio. Quando o ônibus o traz de volta, ele almoça e depois disso faz a própria rotina. Normalmente, descansa uma hora na rede e vai encontrar seu professor. “O Ryan fica no mar a tarde toda, volta só à noite. Mas é muito responsável, não dá trabalho e vai bem no colégio”, diz dona Lourdes, a avó. (Ao ouvir isso, Ryan vai ao quarto e busca uma prova de história com nota A.)
“É difícil deixar uma criança de 12 anos morar sem os pais”, diz Renata, “mas outro dia uma amiga me disse algo verdadeiro: é preciso amar muito para fazer isso”. Esse sentido de “amor livre”, antes de uma escolha, parece simplesmente uma realidade que se impôs à família. Aos 5 anos, Ryan insistia tanto para ficar no mar, pegando as ondinhas da beirada, que, quando os pais não aguentavam mais olhá-lo, ele pedia a outros adultos de Itamambuca – “Você pode me olhar, por favor?”. Agora que não depende mais de ninguém para surfar, deixou de ser um peixe fora d’água em São Paulo e parece tranquilo e feliz. E, apesar da distância, uma família em que todos surfam acaba sempre se encontrando dentro da água – todos os fins de semana, eles viajam para ver o filho em Itamambuca e acabam pegando onda juntos. O mar, assim como faz com os continentes, não separa as pessoas, apenas as une à sua maneira.