Mais do que apenas comida
Projeto reúne voluntários para distribuir marmitas veganas a moradores de rua em São Paulo
Com músicas pop ao fundo, de uma balada que às 9h ainda não tinha pretensões de acabar, os voluntários chegavam à The Week, em São Paulo carregando sacos com couve, cenoura, feijão e outros alimentos que, mais tarde, comporiam as 407 marmitas. É na cozinha da boate que é preparada a comida do projeto Rango Vegano Solidário.
LEIA TAMBÉM: Sem consumir ovos, leite, carne ou derivados, atletas veganos fazem do esporte ativismo
O projeto, que há dois meses se tornou uma ONG chamada Veganismo Solidário, se dá a partir da uma união de duas lutas de Bruna Dias: o veganismo e o auxílio a moradores de rua. Desde março de 2015, voluntários se reúnem mensalmente para oferecer uma refeição àqueles que não conseguem comprá-la. Sem o sofrimento de nenhum animal, os pratos quebram mitos sobre o veganismo: são nutricionalmente completos, saborosos, não-elitizados e mostram que o movimento não se cala diante do sofrimento humano.
A compaixão é maior que o paladar
A fundadora já participava de uma ação voluntária de preparo e distribuição de alimentos, mas cozinhar produtos de origem animal era um dilema complexo. A escolha de ser vegana veio ainda na adolescência e aquela ação a fazia contribuir para a tortura animal. Bruna decidiu então seguir por um caminho próprio: cozinhar pratos veganos para entregar nas áreas mais necessitadas da capital paulista.
Com a ajuda de George Guimarães, nutricionista e criador da ONG de ativismo vegano VEDDAS, Bruna elaborou as marmitas. Era preciso que fossem nutricionalmente completas, para suprir as necessidades dos que estão em situação de rua, e acessíveis, para viabilizar a produção.
Nas primeiras vezes que saíram para distribuir, descobriram que era necessário um cuidado com a consistência dos alimentos, uma vez que muitas pessoas tinham dificuldade com a mastigação decorrente de problemas dentários. Os legumes foram então substituídos por espinafre e beterraba em pó, misturados na refeição: arroz, feijão, farofa de mandioca com cenoura e couve, e proteína vegetal texturizada (PVT) com molho de tomate.
A PVT, última escolha do prato, se deu por conta do fator psicológico — sua semelhança com a carne dava a impressão para os que recebiam o prato de que eles estavam de fato “completos”. “Vivemos no país do churrasco, da agropecuária. Falar pras pessoas que elas não precisam de carne para viver é mexer com uma questão cultural e social”, explica Bruna. Os mitos sobre o veganismo atingem, claro, pessoas em situação de rua, que têm pouca ou nenhuma informação a respeito. Por isso, os voluntários não costumam informar que a refeição é livre de carnes. “Na verdade, o maior trabalho de divulgação do veganismo é com os voluntários. A comida é para os moradores de rua, mas não fico falando pra eles não comerem carne. Eles não compram, não têm acesso ou escolha”, explica a ativista.
A ação parece ter surtido efeito. A maioria dos presentes no preparo das marmitas é não-vegana, mas todos dizem ter diminuído significativamente a quantidade de carne em sua alimentação. “Quando você começa a participar do Rango, vê cada vez mais saídas para deixar a carne e começar a desconstruir seus próprios preconceitos, quebrar os estereótipos”, conta Maria Adélia. "Não podemos pensar no que vamos perder, que não vou comer o churrasco ou a pizza de queijo. O que você ganha é muito maior. Uma refeição para você é a vida para o animal. Como dizem no movimento vegano: 'que a sua compaixão seja maior que o seu paladar'”, explica Bruna.
Mais comida, mais marmita
O que começou com menos de 100 marmitas feitas por um grupo de amigos ganhou corpo e hoje conta com o apoio de Klaus Ebone, um dos sócios da casa noturna The Week São Paulo, e de Gibi, campeão mundial de muay thai. “A Bruna se preocupa com as necessidades do morador de rua. O que tem ali no prato não é qualquer alimento, é o que ela come. Não faz para aparecer na mídia. É a forma de viver na qual ela acredita. Independe de eu ser ou não vegano, eu tinha que fazer a minha parte”, diz Klaus.
A boate cedeu a cozinha industrial e o atleta ofereceu sua academia como centro para receber as doações de alimento, que a essa altura cresceram muito em volume, assim como ocorreu como o número de voluntários. As 100 marmitas inicialmente produzidas pela Rango Vegano hoje já são em média 350.
Mão na massa
Um domingo por mês a cozinha é ocupada a partir das 9 horas da manhã. Os voluntários se dividem para lavar, cortar e cozinhar os alimentos. Há trabalho para todos, inclusive Laura, de apenas 5 anos, que sobe na cadeira para alcançar a pia e ajudar na limpeza dos vegetais. “Trazemos a Laurinha justamente para que ela veja como é a realidade, que não é só o ‘tudo de bom’ que ela tem. Ela sempre vem e colabora, é super carinhosa com as pessoas”, conta a mãe, Jussara Teles.
Por volta do meio-dia, a comida já está pronta e ainda em meio aos sorrisos e brincadeiras os voluntários começam a preparar as marmitas. Uma vez prontas, é hora do almoço. A comida dada aos moradores é também a refeição de quem as prepara. Com seus pratos vazios, voltam à cozinha e terminam de preencher as marmitas: no dia em que a Trip acompanhou o trabalho, foram 407. Nesse dia não houve sobras, mas Bruna explica: “Quando sobra, levamos pra um centro social e doamos. Os talos de couve, casca da cenoura vão para santuários de animais. Nada é desperdiçado, nada vai pro lixo”.
Louça lavada e as marmitas são colocadas nos carros. Os voluntários seguem viagem para a entrega. Inicialmente o projeto tinha como destino a Praça Princesa Isabel, no bairro de Santa Cecília, mas a distribuição não tem mais ocorrido na região central. “Algumas pessoas passaram a pegar as marmitas para trocar por drogas”, conta a voluntária Sandra Duarte.
Com as ações sobre a Cracolândia, os adictos não deixaram de existir, apenas migraram para outras regiões. O problema, segundo alguns dos voluntários, ao contrário, o número de dependentes parece estar aumentando. “O pior é ver que não estão criando medidas para ajudar essas pessoas, estão simplesmente as expulsando. Essas pessoas não fazem parte do ‘Cidade Linda’”, desabafa Maria Adélia.
As regiões centrais já contavam com auxílio de outros grupos, com entregas frequentes de alimento. “Não é o ideal, mas já tem alguma ajuda, chega alguma coisa. Estamos em busca dos lugares onde não chega nada”, diz Bruna. Foi assim que chegaram às comunidades da Radial Leste. Dessa vez, estiveram na Comunidade do Cimento e no Viaduto Guadalajara, ambos no bairro do Belenzinho, em São Paulo.
Assim que as marmitas começaram a ser tiradas do carro, os moradores de rua formaram uma fila para pegar o almoço — entregue junto com uma garrafa d’água e uma goiaba como sobremesa. “Quando começamos o Rango, há quase 3 anos, eram mais homens na rua. Agora vemos famílias inteiras”, conta Bruna. As próprias pessoas se organizam: mulheres, crianças e idosos têm preferência. “Só pega se for realmente comer. Não quero ver desperdício”, grita um dos senhores da região.
Quase todas as marmitas são entregues ali, enquanto parte dos voluntários conversa com os moradores sobre a vida e sobre as refeições. "Nunca alguém abriu a marmita e reclamou. Muito pelo contrário, já me falaram várias vezes que é a melhor comida que eles comem no mês, porque é fresca e bem temperada", conta Bruna.
Laura, a voluntária de 5 anos, se diverte brincando com uma das meninas da região e o movimento acaba. O restante das marmitas é colocado em um dos carros e eles seguem para a próxima parada na rotina de entregas.
Mais do que um rango
“Para ampliar a iniciativa e fazer outras ações sociais, precisava conseguir patrocínio, dinheiro e doações maiores. Eu tinha que transformar em ONG”, explica Bruna sobre a transformação do projeto na ONG Veganismo Solidário. O objetivo é, a partir da organização, aumentar o número de doações para o Rango e também conquistar uma sede própria, onde será criado um espaço cultural e artístico, que possa, além da comida, oferecer aulas de dança e teatro a pessoas carentes, ministrar cursos para o preparo de produtos veganos e oferecer palestras sobre o assunto.
Bruna acredita que a militância tem a função de informar para que cada um possa fazer sua própria escolha, ciente da realidade. A argumentação em favor do movimento, segundo ela, pode seguir diferentes linhas: “Podemos falar sobre compaixão, vendo a forma como os animais são abatidos, a crueldade dos matadouros. Podemos focar na saúde, com os estudos que ligam a alimentação carnista à maior chance de desenvolver câncer, pressão alta e diabetes. Podemos falar sobre subsistência do planeta: o mundo não suporta mais a alimentação carnista, hoje temos mais cabeças de boi no Brasil do que gente”.
Dentre os muitos públicos com que trabalham, o foco principal está na nova geração: “Toda criança é empática ao animal. Quero entender em que momento a gente perde essa empatia e se desliga de que aquela carne é uma vida”.
Com as medidas de auxílio às pessoas carentes e a disseminação da cultura não-carnista, a ONG vai muito além do veganismo ou de uma ajuda social. Bruna tem um objetivo: “Lutar por tudo que é justo e bom para que todos os seres — humanos e não humanos — tenham os mesmos direitos”.
Créditos
Imagem principal: Mariana Caldas