Quero ser Leandro Karnal

Ex-jesuíta, pianista nas horas vagas, professor e celebridade na internet. O pensador Leandro Karnal é o entrevistado da vez nas Páginas Negras da Trip

por Peu Araújo em

Leandro Karnal está habituado com plateias, acostumado a entretê-las, a quase hipnotizá-las. Suas ideias alcançam diariamente dezenas de alunos nas turmas da Unicamp, milhares de pessoas em palestras por todo o país e ultrapassam a fronteira do milhão de espectadores no Facebook e em programas de televisão como o Café filosófico, da TV Cultura.

Karnal é um fenômeno erudito pop da atualidade. Aos 53 anos, o especialista em história da América e autor de sete livros é um pensador com uma didática ímpar: relaciona La Boétie com 50 tons de cinza e explica a visão de Sartre sobre a nadificação da vida com uma metáfora sobre pizzas. "Eu gosto de dizer coisas que tirem as pessoas das zonas de conforto mentais", provoca. "Ao escrever, ao dar aula, me vem a ideia de desinstalar as pessoas. Acredito muito nessa transformação."

Em tempos de intensa polarização, Karnal vai ao ringue digital sem medo do confronto. Alfineta, provoca, argumenta e aponta caminhos, sempre de forma inclusiva e desassoberbada. E se aventura por temas complexos e fundamentais como a felicidade, a liberdade e a democracia.

Frequentemente identificado com o pensamento "de esquerda", Karnal costuma explicar que posição política não é uma questão absoluta, mas relacional. Se comparado com o pensamento da extrema direita – que, segundo o professor, vem ganhando visibilidade com a internet, embora sempre tenha existido –, suas ideias sobre direitos humanos certamente o colocam do lado oposto. "Sempre achei que minha postura política fosse de centro, continuo com essa ideia."

Alunos do colégio FAAP no final dos anos 80. Karnal está sentado no primeiro degrau à direita, com gravata aberta - Crédito: Arquivo pessoal

Noviço rebelde

Gaúcho de São Leopoldo, cidade da Grande Porto Alegre com tradição alemã, Karnal, o terceiro de quatro irmãos, dedica boa parte da sua erudição à influência do pai, um advogado, político, professor de latim, inglês e português que morreu em 2010. Da mãe, se recorda da dedicação profissional à família. "Meu avô bateu inclusive com chicote no meu tio… Então minha mãe considerava que a diferença entre a geração dela e a nossa, em que podíamos conversar à mesa, é que havia essa liberdade enorme."

Das histórias da infância se recorda, por exemplo, de seus primeiros dias de aula, quando se recusou a voltar para casa depois da escola. Com o humor ácido que é um traço de sua presença, dispara: "Isso deve pesar contra a biografia da minha mãe, quer dizer, o colégio de freiras era mais agradável do que meu próprio lar. Me grudei na irmã Antônia e quase arranquei sua roupa porque não queria ir embora".

Católico praticante em toda a infância e parte da juventude, Karnal foi jesuíta e parte de sua formação em filosofia foi feita na Companhia de Jesus. Depois, concluiu os estudos na Unisinos. Acostumou-se aos pai-nossos e ave-marias até o dia em que não fez mais cabimento. "Não foi um clique, uma iluminação, não foi um momento. Não caí do cavalo indo pra Damasco, mas deixou de fazer sentido."

Aos 24 anos, trocou o Rio Grande do Sul por São Paulo, onde fez doutorado na USP e começou a lecionar em escolas como o recém-inaugurado Colégio FAAP. E não parou mais. A seguir, o professor fala sobre sua vida pessoal e sua carreira, crise política, haters, fãs, vaidade e explica o ônus e o bônus de ser Leandro Karnal.

Trip. Leandro Karnal é um  sucesso nas redes sociais. O que atrai seus seguidores?Leandro Karnal: Todas as pessoas que usam ferramentas midiáticas têm um denominador comum: uma aspiração a um Narciso projetado. Todos buscam a comunicação, querem essa importância. Eu gosto de dizer coisas que tirem as pessoas das zonas de conforto mentais e indico obras que levem as pessoas a pesquisar por si. Quando eu indico que as pessoas escutem o "Concerto em lá menor" de Schumann, que morreu louco, e digo que sua esposa Clara Wieck arrastava asa para Brahms, eu tô tentando puxar pra um campo que geralmente a televisão não puxa, que os jornais não puxam. Eu tô tentando fazer com que as pessoas descubram essa melodia fabulosa. Há um diálogo entre a vaidade de quem assiste e de quem posta. Eu acho o seu texto muito legal e, porque eu concordei, tô me elogiando. Significa que só existe um "eu" que mede esse mundo e este é o meu. 

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Como você lida com haters? Ou com gente que te acusa de receber dinheiro do PT, de ser marxista... Dependendo do inimigo que você faz, é uma honra. Acho que se você estiver na França invadida pelos nazistas e for da Resistência, ter o ódio dos invasores é legal. Não tê-lo seria um defeito de caráter. Eu não acompanho essas críticas. Tentei ouvir algumas, mas como só tinha adjetivos achei que não cresceria nada, então parei. Nunca chegou a mim uma análise tranquila de alguém dizendo: "Discordo do seu ponto de vista". Essa acusação de ser marxista é falsa, porque eu não sou marxista, nem metodologicamente nem como identidade política. Marx é um autor insuperável no Ocidente, como Santo Agostinho, Engels, Adam Smith, como Stuart Mill, como Montesquieu. Eu li Marx sistematicamente e, nem na época em que isso era moda e quase obrigatório, eu fui marxista. Também nunca recebi dinheiro do PT. Como eu trabalho numa Universidade Estadual Paulista, que é administrada pelo PSDB, a rigor eu poderia ser acusado indiretamente de receber deste partido, mas eu acredito que recebo do imposto do povo paulista. O mais preocupante é que dizer "fulano é marxista" não deveria ser um xingamento. Ter ideias não é um xingamento.

Acima, à esq., no aniversário de 1 ano com a mãe, o pai e a irmã Rose; abaixo, no Colégio São José, em São Leopoldo; ao lado, no colégio jesuíta em Curitiba - Crédito: Arquivo pessoal

Com quem você se alinha politicamente? Sempre achei que minha postura política fosse de centro, continuo com essa ideia. Mas postura política é posicional, e não absoluta. Comparado com algumas pessoas, eu me torno de esquerda. Sou alguém que acha que existe uma cultura de estupro no Brasil, que não deve haver pena de morte, que aborto deve ser uma questão discutida essencialmente por mulheres. Quando alguém me diz que não há cultura do estupro e que isso é coisa de "feminazi", aí eu me torno de esquerda. Sou uma pessoa perfeitamente adepta da propriedade privada, gosto da ideia de eleições regulares, livres e em ambiente pluripartidário, gosto do império da lei, acho que todas as pessoas têm direito de expressar suas opiniões, inclusive as opiniões idiotas e limitadas, já que liberdade de expressão não é liberdade da minha expressão.

Há algo de bom nessa intensa polarização que vivemos? A polarização fez aumentar a consciência das pessoas. Ela é notável a partir de 2013 e cresceu nos últimos três anos. Grupos estão sendo desfeitos, amigos estão se separando, porque identificam no outro um inimigo mortal por pensar diferente – este é o lado mais aparente. Não tenho certeza se realmente pensam diferente. No século 19 se dizia que nada era mais conservador do que um liberal no poder. Não vejo uma diferença brutal de método, por exemplo, nos governos FHC e Lula, porém as pessoas veem em um o perfeito antípoda do outro, sua oposição imagética perfeita. É sinal de que estamos buscando identidade nesse momento, e ela se dá pela constituição de um inimigo. Isso não é novidade. O que também aconteceu foi o ressurgimento de uma coisa que talvez nunca tenha desaparecido, mas que vivia nas sombras, que é a extrema direita.

O que esse ódio "coxinha x petralha" diz sobre a gente? Pegando uma ideia que acabei de ler no livro do Leonardo Sakamoto, O que aprendi sendo xingado na internet, "o ódio é um lugar quentinho" – é uma expressão dele. E sendo um lugar quentinho, ele é uma posição fácil de ser ensinada. Por que é que o Brasil não vai pra frente? Cada uma das metades do Brasil tem sua resposta clara pra isso. Nenhum dos dois lados identifica no outro a sinceridade de um brasileiro querendo a melhoria do país. Se o outro é o puro mal e eu sou o bem, isso me dá uma posição muito confortável. Em segundo lugar, a coisa que mais provoca identidade é o ódio. Eu não sou exatamente – isso é uma metáfora – corintiano, eu sou um anti-palmeirense. Eu não sou exatamente um hétero, mas eu sou um antigay. Eu não sou exatamente um paulista, mas sou um anti-nordestino. A negação pelo outro é absolutamente tranquilizadora, porque se eu tiver que reconhecer a igualdade, a isonomia, vou ter que entrar num campo discursivo muito complexo e inacessível pra maioria.

Estamos mais agressivos, mais violentos? Nós sempre fomos violentos, a história do Brasil é de extrema violência. As pessoas se horrorizam com a ação do Estado Islâmico e eu venho de um estado que fez uma revolução federalista no início da República cujo codinome era Revolta da Degola, porque os inimigos tinham a cabeça arrancada, aquilo que hoje a gente olha no Iraque e diz "que horror, que barbárie". A destruição de Canudos, o bombardeio com aviões às aldeias do Contestado, no oeste de Santa Catarina e do Paraná, o uso de deportação pro Acre, como no caso do Mestre Sala dos Mares, líder da Revolta da Chibata, as técnicas de tortura e violência que têm uma parte e origem na nossa tradição escravista... O que acho mais perigoso hoje é que a violência e a caracterização do mal se dão em nome do bem, tal como ocorreu na Inquisição e no Nazismo. Dirigir todo o ódio contra o outro faz com que eu não precise ficar pensando se sou canalha ou uma pessoa limitada. Ou se a minha vida medíocre e imbecil não encontra apenas no ódio uma iluminação. Raciocinar é difícil. Adjetivar é fácil, insultar é imediato.

E qual é o papel da internet nessa história? O empoderamento que a internet dá ao indivíduo fazendo-o crer que é um ser autônomo e cheio de ideias respeitáveis é uma armadilha. Cada vez mais as pessoas acham que expressar ideias é algo absolutamente indispensável e que todos devem fazer.

Qual é a visão do professor de história sobre a atual crise econômica, política e social do país? Crises são cíclicas, tanto no capitalismo em geral quanto no Brasil em particular. São crises de expansão e retração que dizem respeito a uma dinâmica interna e a uma crise mundial. Elas já existiram antes, inclusive com alguns aspectos mais graves. Na crise atual havia um tal descrédito com o Estado brasileiro que talvez as Olimpíadas tenham servido pra mostrar que, sim, somos capazes de, em meio a problemas, organizar um evento de porte mundial. Eu fui um dos que talvez tivesse confundido ineficácia do Estado com a da nação brasileira. Quando os americanos falaram do assalto, nós acreditamos que tivesse ocorrido, porque isso tudo faz parte de um discurso narrativo.

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Parte do empresariado e da classe política brasileira parece ter dificuldade em olhar para o país de forma menos individualista. Há algum tipo de razão histórica que ajude a entender essa questão? Isso aí se reclama desde o período colonial. Os nossos primeiros cronistas, ao analisarem a Bahia, já diziam que o brasileiro era pouco repúblico. Ou seja, pensava e agia pouco em função da questão pública. Num país acostumado longamente que ao Estado cabe espoliar o indivíduo e ao indivíduo cabe, mediante o jeitinho, escamotear o máximo possível desta espoliação, cria-se uma relação de duplo merecimento. Em que o Estado pensa em si e em seu projeto de poder, e em que o indivíduo pensa em si e em seu projeto de sucesso. O que unia os comunistas e os militares, apesar da perseguição, é que ambos tinham a crença no Estado. O que une hoje anarquistas e liberais é que ambos desconfiam desse Estado. Não conseguimos formar um Estado de bem-estar social, não conseguimos, certamente, formar um Estado liberal e obviamente, apesar da histeria da direita, não tem nada de socialista no Estado brasileiro.

Ao piano, em 2016; à dir., acima, com o afilhado Davi Karnal; abaixo, com a mãe Jacyr, e a sua irmã Rose, em 2015 - Crédito: Arquivo pessoal

Por que os brasileiros não conseguem se unir em um projeto para transformar o país? Existem pessoas empenhadas, mas não temos mais porque o aqui e agora, hic et nunc, é muito forte para todos nós. É uma maneira muito clara e direta de você conseguir a solução. A minha necessidade material e imediata é superior ao planejamento de médio e longo prazo. Sobreviver é mais imperativo e categórico do que gerir o bem público. Sobrevivendo, é melhor tratar bem à minha família do que ao coletivo, e assim por diante. O prazo está muito curto hoje. Para a maioria da população brasileira, encerrar o mês sem estar muito negativo financeiramente, chegar até as férias, ou conseguir acabar de pagar uma conta são os prazos reais. Falta-nos planejamento biográfico, existencial e material. Somos um país sem orçamento.

Esta é uma edição que fala sobre causas. Qual é a sua? Eu não sei se tenho essa clareza. Sei as coisas que mexem comigo, uma delas diz respeito a ser um bom professor. Talvez a minha vaidade esteja nessa causa. Ao escrever, ao dar aula, palestra ou entrevista, ao escrever nos jornais, me vem a ideia de desinstalar as pessoas. Acredito muito nessa transformação. Então a minha causa é a educação: eu sou um professor público.

E você é um bom professor? Eu me tornei um professor melhor quando decidi que só poderia oferecer o prato, não poderia forçar a comer. Quando dava aula no ensino médio, na FAAP [quando tinha em torno de 30 anos], eu dava o prato e forçava a comer. Isso causava efeitos positivos em alguns e resistência em outros. Hoje o meu Narciso é um pouco mais domado do que quando eu era mais jovem. Ofereço o melhor prato possível; o que vai ser aproveitado dele foge ao meu controle.

Você se coloca muito nessa posição, como uma porta aberta para o acesso das pessoas. Qual é a sensação de saber que alguém começou a ler Shakespeare – ou Dostoiévski ou Nietzsche – depois de acompanhar uma dissertação sua? É similar a um atleta que ganha uma medalha de ouro. Quer dizer, eu fiz pra isso. Foi uma luta para que chegassem a essas coisas. Não tem nenhum demérito nas coisas que vou dizer agora: eu sou muito mais um professor do que um intelectual – apesar de ser bem difícil definir onde termina uma coisa e começa a outra. A grande vocação que tenho é a de abrir as pessoas para essa descoberta que me transformou. A partir de um Café filosófico alguém ler o Hamlet, a partir de uma fala d’ Os irmãos Karamazov em que o cardeal apresenta a Jesus o futuro do cristianismo... A partir disso, fazer a pessoa pensar da forma mais ampla e questionadora possível...

Quando e por que você saiu da sua cidade natal, São Leopoldo? Eu fiz o curso de história lá. Interrompi o curso para ir a Companhia de Jesus, fui jesuíta, depois voltei e concluí a faculdade. Comecei a dar aula em colégio estadual no Rio Grande do Sul e na universidade aos 23 anos. Tinha uma vida estável, o dinheiro que eu ganhava, morava na casa dos meus pais. Mas veio a chance de fazer a pós-graduação e decidi – talvez por vaidade, talvez por desafio – que queria tentar longe dali. E optei por vir para a USP, há 30 anos. Mas você não faz uma escolha porque "dali a dez anos acontecerá algo". Tomei uma decisão de fazer uma pós em um lugar que eu considerava maior e melhor. Imaginar o que aconteceria depois não existia. Ao longo da minha vida eu considerei muitas carreiras, a de músico, por exemplo. Aconteceu que essa acabou dando certo.

Como foi sua chegada a São Paulo? Aqui comecei a carreira absolutamente de baixo, porque de professor universitário e estável no Estado eu fui dar aula num supletivo no Largo da Batata, para uma quinta série no Colégio Sion e fui morar numa pensão na rua Bahia [em Higienópolis], que, apesar do endereço nobre, era uma pensão! Cheguei a São Paulo cheio de energica, com pouquíssimo dinheiro no início. Acabei entrando para o recém-fundado Colégio FAAP, onde fiquei por uma década.

De que maneira a experiência de passar pela Companhia de Jesus foi importante para você? Eu fui jesuíta, fiz o noviciado, minha filosofia é jesuítica. Aprendi muito e devo uma parte importante daquilo que sou como intelectual à Companhia de Jesus, uma parte importante ao meu pai e outra ao Colégio São José. Os jesuítas também me educaram na universidade, porque a Unisinos, onde eu fiz a graduação em história, é uma instituição jesuítica. A grande subversão daquela época pra hoje é que a ideia religiosa deixou de fazer sentido para mim. Não foi um clique, uma iluminação. Não caí do cavalo indo pra Damasco. Mas deixou de fazer sentido, começou a parecer que não tinha ninguém do outro lado. Foi um processo bastante natural, não foi angustiante. Primeiro é uma falta de hábito, você deixa de frequentar a missa. Depois você vai descobrindo que ficaram coisas em você mesmo que tenha deixado de ser religioso. É um processo longo. Mas tenho pela religião uma enorme admiração. Não acho que a religião seja culpada ou inocente de nada ou mais do que são todas as coisas.

Você fala do ideal de felicidade relacionado à família e também que a família é um dos principais motivos de infelicidade. Sua família levou você ao divã também? Sem dúvida. Não vou ao divã por causa da taxa de câmbio do dólar. Mas é uma dialética. Como a família é central, ela também provoca grandes alegrias. Leva um tempo pra você perceber que família é afeto e desafeto permanentes. E ao formar, a família também deforma. É quase Deus e o Diabo reunidos na mesma questão. Não é à toa que as sociedades que pressupunham uma socialização maior, como foi o caso dos kibutz, em Israel, dissolviam um pouco a ideia de família, as crianças eram criadas por educadores e dormiam separadas das casas dos pais. E que Jesus, no Evangelho, a todo momento mete o pau na família. Porque a ideia do amor cristão é o amor universal. Se você amar mais seu pai, sua mãe e seus filhos do que ao grupo, você deixa de ser um cristão, afinal os pagãos também amam aos seus filhos, as serpentes também amam aos seus filhos. Sim, família é a causa de quase toda disfunção e também de quase toda estabilidade afetiva. O buraco de não ter sido amado por pai e mãe é um buraco muito difícil de preencher.

Você faz análise? Terapia desde os 18. Com o Contardo [Calligaris] já faz três ou quatro anos.

O terapeuta tem prazo de validade? Tudo tem prazo de validade, porque tanto o que eu posso dizer quanto o que ele pode dizer tem limite. É como eu digo aos meus alunos em orientação: "Orientação e casamento devem ser de três a quatro anos, porque depois disso não tem mais nada pra dizer".

Acima, à esq., em Fernando de Noronha (2015); abaixo, Karnal na África do Sul (2016); ao lado, visita a uma escola em Myanmar (2015) - Crédito: Arquivo pessoal

Você já disse que, quando alguém se casa, é como se virasse para a Gisele Bündchen ou Brad Pitt e dissesse: "Ó, não vai mais rolar". Você já foi casado? Eu já fui casado duas vezes, quer dizer, em relações prolongadas sem casamento formal. E o significado dessa frase é o seguinte: toda a escolha tem um ônus e a gente só quer o bônus da escolha. O contexto da frase é suscitar nas pessoas que a escolha tem um ônus. Não é o discurso meritocrático liberal de que tudo que você faz tem um custo. Eu olho o resultado e imagino que é bom ter aquele resultado, não olho o custo. Há um ônus em estar solteiro e há um ônus em estar casado e quando você consegue dizer qual é o ônus e o bônus que você quer de cada uma dessas relações você dá um salto muito grande. É a defesa particular que faço hoje, aos 53 anos. A opção tem que ser clara pra você. Então, quando você casa, case. Quando você não casa, não case.

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Mas não é quase paralisante viver a vida sob este dilema? Você nunca terá certeza de um caminho certo. Nietzsche diz, e eu adoro, que praticamente todos os caminhos darão errado; portanto você tem que achar um caminho que dê errado, mas que a caminhada cause mais prazer que dor. Todos os caminhos são o fracasso. Há uma coisa de Sartre que influenciou muito a minha juventude, que é quando ele explica que a morte nadifica – nem existe essa palavra em português – a vida. Torna-a destituída de sentido. E tornar a vida destituída de sentido nos dá uma liberdade enorme.

Liberdade é uma ideia enganosa, um produto que vende, mas que não consegue entregar? Isso é difícil para um historiador dizer, mas para o mundo entre a essência e a aparência, a diferença é muito pequena. Em outras palavras, placebo é científico. Acreditar na liberdade ou exercer a liberdade...  Distinguir entre crime doloso ou culposo só faz diferença jurídica, pra vítima tanto faz: quem foi atropelado de forma dolosa ou culposa foi atropelado do mesmo jeito. O que vale para o atropelamento é Newton, e não a concepção. Então se há ou não liberdade...  Funciona muito a ilusão que nós temos.

A gente confunde liberdade com sucesso? Exposição midiática, dinheiro e fama são os pontos que a sociedade lhe ensina a buscar. Como diz o Nizan Guanaes, "ninguém quer ser Alexandre, o Médio. Todos querem ser Alexandre, o Grande", especialmente na construção da nossa sociedade capitalista, que estabelece o sucesso a partir do indivíduo. A sociedade mais perfeitamente capitalista do mundo, que é a americana, ao criar as categorias de winner e looser estabeleceu uma dicotomia de que tudo isso depende só do indivíduo. A sociedade socialista, ao tentar criar uma socialização do fracasso ou do sucesso, criou uma outra categoria que também fracassou historicamente, levando àquela velha piada de Guerra Fria segundo a qual o capitalismo é a exploração do homem sobre o homem e o socialismo é o contrário. A felicidade individual é projetada sobre outros e é muito difícil elaborar um caminho autônomo, ser alguém que nada contra o main-stream. Então é melhor seguir o caminho que os outros vão reconhecer: o da estabilidade financeira, do sucesso e assim por diante.

Se nós tivéssemos apenas cinco sabores de pizza no cardápio, seríamos mais felizes? Difícil eu saber. Sartrianamente, liberdade vem acompanhada de angústia. Quanto maior a liberdade, maior a angústia. Nós achamos que somos felizes por poder optar. Então, escolhemos o tipo de café expresso que a gente quer e achamos que a liberdade está nessa variedade de cores e embalagens. Um equívoco. É inevitável: liberdade significa angústia. Por isso tanta gente se entrega prazerosamente à dominação, tema analisado por Étienne de La Boétie no século 16 e por 50 tons de cinza no século 21.

Por que a felicidade é tão fugaz? Os budistas têm uma resposta que acho brilhante: o eu não cessa de desejar. E ao não cessar de desejar, este eu se torna tirânico. Fui à China várias vezes de classe econômica e a viagem de 24 horas na cadeira curta é um sacrifício. Quando fui de executiva foi uma descoberta. Pensei: "Como consegui ficar um dia inteiro naquela cadeira?". Aí veio uma terceira experiência, na primeira classe, numa volta ao mundo que fiz recentemente. "Como é que aguentei aquela classe executiva apertada?" Voltando do Japão de Etihad Airways, recebi o folheto da nova classe Residence, com chuveiro, cama king, um butler treinado no Ritz de Londres e um lounge pra você confraternizar com seus amigos milionários. Olhei aquela primeira classe acanhada, sem lounge e sem mordomo... Esse é o problema do desejo: ele remete a um novo desejo. Você tem que negar o desejo para ser feliz.

Quando a gente está feliz, a gente simplesmente está, não problematiza sobre isso. É por aí? Sim, em primeiro lugar, porque o tempo é ressignificado. Você não olha o relógio quando está boiando no mar em uma praia paradisíaca ou no meio de um orgasmo. Ninguém quer interromper o tempo quando o tempo está bem. O tempo é medido pela dor, como disse Schopenhauer. A alegria da ovelha é quando o lobo come a do lado. A ideia de felicidade depende de entender uma coisa: para a praia do Nordeste ser boa eu tenho que trabalhar em São Paulo, e trabalhando em São Paulo, jogado naquele ambiente paradisíaco, tudo me parece fabuloso.

Como você consegue, com o ritmo que segue, ter seus orgasmos, suas boiadas em praias paradisíacas? Tenho tido férias regulares, tenho viajado por meu próprio prazer. Isso representa bastante pra mim. E tenho grande prazer em escrever, em ler, em fazer o que faço profissionalmente. Aquela necessidade de dar breaks porque tá pesado é mais forte para quem exerce uma atividade taylorista do que pra alguém que tem que exercer a criação.

Como é a sua rotina de professor, intelectual e celebridade? Ao longo de um dia, vou encontrar umas 3 mil pessoas, às vezes mais. Dei uma palestra no Paraná para mais de 6 mil. Quando entro no quarto do hotel e o silêncio é absoluto, tenho uma paz que é difícil explicar. Não é o amor à solidão, mas é o conforto de não precisar falar, de ficar comigo mesmo, de ler. Eu tô cercado de gente interessante o tempo todo. Talvez o cozinheiro profissional não queria chegar em casa e fazer um prato sofisticado, mas queira encomendar uma pizza. Quando eu digo isso parece que eu sou um misantropo. O público demanda à personagem, e quando você pode ficar com você, você é mais você. Hoje tenho imenso prazer na solidão, porque não é solidão, é encontro comigo.

Falando da personagem: você se apresenta sempre bem alinhado, ternos bem ajustados, o cabelo raspado. É uma construção? Acho que sim, no sentido de que tenho aquilo que em arte a gente chama de estilema, ou seja, uma característica com a qual você se identifica, como o pega-rapaz nas estátuas do Aleijadinho. Devo raspar a cabeça há dez anos porque tornou a minha vida prática e, claro, cria uma identidade visual. Essa personagem dialoga com coisas que eu realmente acredito. À medida que envelhecemos, devemos nos apresentar bem; à medida que o quadro perde cor, a moldura deve ser mais chamativa. Eu gosto de encontrar e conhecer pessoas que têm um certo apuro. Gosto muito de terno, de gravata. Não ando desleixado nem quando estou sozinho em casa. É uma personagem, mas sou eu, porque essa distinção entre personagem e o real "eu" é muito cristã. É muito da ideia de que existe uma essência. Não acho que a gente tenha uma essência; a gente é, também, isso.

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