Palavras ancestrais

Escritores e escritora indígenas fazem dos saberes originários a matéria-prima para seus livros, cada vez mais premiados. Já podemos dizer que existe uma literatura genuinamente indígena?

por Jr. Bellé em

Na cultura tupi-guarani a palavra “ser” é a mesma que denomina “palavra”, a mesma que denomina “fala”, “linguagem”, e é também uma das acepções de “alma”: nheeng. Palavra e alma unidas num mesmo lugar, a garganta. O ser é linguagem e a linguagem faz o ser. Quem emite este nheeng profundo é Kaká Werá, escritor e ativista do povo Guarani, de São Paulo, no livro de estreia da Tembetá, coleção da Azougue Editorial dedicada à literatura, aos pensadores e líderes indígenas. Mas esta sabedoria, bem como a dos outros 305 povos originários, que segundo o Censo 2010 ainda povoam e resistem no território brasileiro, no seu território, ainda é um mistério ancorado no abismo de desconhecimento e no precipício de desinteresse que ilha nossas matizes culturais.

A tradição oral destes povos, no entanto, vem recebendo um poderoso aliado: a literatura. Poetas, escritores e escritoras indígenas estão valendo-se do idioma do colonizador para criar sua própria pajelança literária: obras de grande valor que registram histórias ancestrais, criam novos enredos sob a influência da contação tradicional e levam a luta até o fronte da palavra escrita, onde o lirismo e a técnica se encontram. Contudo, para Cristino Wapichana, literatura indígena vai além do simples fato de ser escrita por indígenas. “Há algo que a diferencia, que é a identidade, ela tem uma espiritualidade bem definida em qualquer historinha ou texto tradicional, e trata-se de uma espiritualidade e visão de mundo específica de cada povo.”

Kaká Werá - Crédito: Divulgação

Cristino é natural de Boa Vista e seu povo, Wapichana, se distribui entre o Vale do Rio Branco, no Brasil, e o Vale do Rupununi, na Guiana. Ele vem construindo uma sólida carreira literária e empilhando prêmios importantes, como o terceiro lugar no Jabuti com A boca da noite (Zit Editora), que também levou o prêmio de Melhor Livro para Crianças da FNLIJ. A literatura, que Cristino maneja com talento, é para ele um elemento transformador para importantes causas indígenas que vão além do aspecto político. “Ela contribui também para a autoestima dos povos, que me parece ser o maior problema que temos dentro das sociedades tradicionais. É uma ferramenta importante, muito usada pelo Thiago Hakiy, Eliane Potiguar, Graça Graúna e outros.”

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Assim como qualquer cultura no mundo, as originárias também são impactadas pelas inovações tecnológicas e aradas pelo trator desesperado do capital. Essas influências – que segundo Cristino vão desde a cachaça até o automóvel e o celular – também são motores de mudança entre os indígenas, especialmente os mais jovens, e é aí que a literatura encontra um papel ainda mais relevante. “Humanos são humanos. Não importa a que povo pertença, vão sempre querer ter acesso ao que há de melhor. Essas influências têm deixado as histórias tradicionais um pouco de lado. Estamos muito longe de um registro completo, ainda que haja um esforço grande por parte das comunidades e professores indígenas. Os mais velhos estão partindo e a juventude está um pouco distante disso. A literatura, assim, é uma ferramenta não só de registro, mas uma forma de criar uma proximidade com a sociedade brasileira, de mostrar essa diversidade e riqueza que o próprio Brasil tem”, conclui.

AS LETRAS DA INVISIBILIDADE
Daniel Munduruku
é pós-doutor em Literatura pela Universidade Federal de São Carlos, autor de mais de 52 livros para crianças, jovens e educadores, e recebeu os mais prestigiados prêmios no Brasil e no exterior, incluindo o 2° lugar no Jabuti 2017 por Vozes ancestrais (FTD). Ele faz questão de lembrar que a escrita é algo relativamente novo para os indígenas brasileiros, já que até o início da década de 1970 eram raros os que tinham acesso à escola, quanto mais aos livros e à tradição literária. “Somos um corpo estranho dentro da sociedade brasileira. Isso significa também que apenas recentemente conseguimos furar bloqueios de invisibilidade a que fomos submetidos por muitos séculos. Ou seja, o Brasil é muito novo para nós e o nosso esforço em conhecê-lo, desvendá-lo, interpretá-lo tem sido muito grande e hercúleo, porque temos que lidar o tempo todo com o desconhecimento, que é o gerador do preconceito e da exclusão social.”

Cristino Wapichana - Crédito: Sesc-SP/Jean Paz/Divulgação

Por conta dessa história tão recente, cujo roteiro ainda se delineia, de acordo com Daniel, há ainda muita tinta de caneta a manchar páginas brancas até que se possa dizer que existe, de fato, uma literatura indígena. “Sou um indígena que escreve, mas que não inventou a escrita. Eu escrevo com as letras do conquistador, com as palavras do colonizador. Sou, portanto, um indígena-escritor e o que escrevo traz a marca deste lugar de onde venho. Para mim está claro que haverá um outro passo a ser dado, que é escrever na própria língua e com parâmetros intelectuais desenvolvidos por pensadores indígenas. Nesse momento, diria, teremos uma literatura indígena. Genuinamente indígena.”  

Assim como este texto, toda a história contada a respeito dos povos indígenas, até bem pouco tempo atrás, vinha do punho de um não-indígena. Para Daniel, isso contribuiu muito para que uma versão equivocada, parida da pena do conquistador, fosse tecida a respeito da cultura dos povos ancestrais. “Foram narrativas baseadas em vozes amedrontadas, aterrorizadas pela ignorância e pelo desejo da conquista. O que um narrador poderia dizer além do que disse? Nada. Se dissesse alguma coisa a mais cairia na contradição de sua própria expectativa. O que disseram sobre nossa experiência de humanidade estava baseada num modelo ocidental já orquestrado e que repetia crenças e superstições que nada tinham a ver com a nossa verdade, mas com a verdade dos conquistadores.”

Ele reconhece, por outro lado, que muitos bons trabalhos foram realizados por pesquisadores responsáveis por recolher narrativas tradicionais, entre eles antropólogos e historiadores, que ajudaram a amarrar os nós simbólicos de muitos povos, suas diferentes visões de mundo, métodos educativos, sistemas econômicos e relações sociais e políticas. “Estes olhares fizeram com que a sociedade pudesse perceber que há muitas formas diferentes de ser humano. Todos estes conhecimentos acumulados serão muito uteis na construção de um sistema de pensamento indígena que há de ser estabelecido e protagonizado pelas novas gerações, que estão se preparando para isso. Eles serão os contadores dessa nova história. Desejo muito que se espelhem na literatura para fazerem este exercício de cidadania.”

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Daniel Munduruku - Crédito: Divulgação

É olhando para as novas gerações que boa parte da literatura escrita por indígenas é produzida. Existe, é claro, ótimos romances e poemas de imponente construção lírica, mas é evidente que há um cuidado maior com a literatura infantil e juvenil. E isso não é à toa: “O adulto é muito cabeçudo. Olham para nossa gente como se fôssemos crianças, porque foi levado a acreditar que por vivermos um sistema sócio-político-educativo-espiritual diferente e não temos condições de desenvolver sentimentos de humanidade. Em outras palavras: os adultos não poderão fazer a mudança”, diz Daniel.“Se desejarmos que se mude algo, temos que pensar nas crianças e nos jovens. Escrever para crianças é uma estratégia de atingir a mente em formação dessas pessoas que não fazem acepção de pessoas ou ideias. Este é o motivo básico que nos impulsiona a direcionar para as crianças e os jovens nossa produção literária.”

É ponto pacífico que esta produção literária é profundamente solitária, porém o esforço em promover a literatura indígena não é. Daniel, por exemplo, conheceu Cristino em Roraima, durante um evento do Sesc. Partiu de Daniel o convite para que Cristino, na época ainda envolto em trabalhos musicais, o ajudasse nos encontros indígenas de arte, que começaram no final da década de 80, numa aldeia Guarani, em Parelheiros, na zona sul de São Paulo – o convite foi atendido assim que Cristino conseguiu uma forma de se sustentar longe da terra natal. “Nesses encontros realimentávamos nossa esperança e nos irmanávamo-nos”, lembra Daniel. Tal interconexão continua ativa, em empreitadas como a da coleção Tembetá, que foi organizada por Kaká Werá e produzida por Cristino. “Hoje temos o que chamo de Indígenas em Movimento, que são pessoas que se incorporaram na sociedade e, sem deixar de pertencer a um grupo tradicional, atuam nas várias frentes possíveis. A história continua e isso é muito bom”, Daniel completa.

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Créditos

Imagem principal: Carol Ito/Heitor Loureiro

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