Mudanças climáticas e a política da destruição
O neurocientista Stevens Rehen recebe o PhD em ecologia, Fábio Scarano, e o ambientalista Ailton Krenak para refletir sobre os efeitos da pandemia, política, clima e conexão com a natureza
O ritmo das inovações tecnológicas nunca foi tão acelerado. Nos últimos 100 anos, vimos o surgimento e a popularização de invenções que algumas décadas antes só poderiam existir na imaginação de mentes brilhantes, como as de Leonardo da Vinci e Júlio Verne. Certamente, essas invenções tornaram nossa vida mais longa e confortável, embora algumas pessoas questionem se ela ficou realmente melhor. Por outro lado, essas novas ferramentas e os custos para a sua fabricação, manutenção e funcionamento têm um preço elevado, pago, em grande parte, pelo planeta. Poluímos rios, oceanos, o ar e a própria terra, mas a conta está chegando: incêndios, mudanças climáticas, pandemias.
"Por que precisa gerar mais renda se a gente vive num mundo em que 60% do capital está concentrado na mão de 1% das pessoas? Será que não é mais uma questão de distribuição do que de geração?", questiona Fábio Scarano, engenheiro florestal, PhD em ecologia, professor do Instituto de Biologia da UFRJ e autor do livro Regenerantes de Gaia. Ele é um dos convidados do episódio sobre biosfera do Trip com Ciência e junta-se ao neurocientista Stevens Rehen e ao ambientalista Ailton Krenak, uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro e escritor de obras como Ideias para adiar o fim do mundo e O amanhã não está à venda, para refletir sobre conhecimento científico e ancestral, homem e natureza, separação e conexão, indivíduo e coletivo. "Diante de uma violência programada pelo estado brasileiro de destruir o ecossistema do pantanal, de devastar a Amazônia, a gente sai de um contexto de um debate de mudanças climáticas e entra numa questão política grave", afirma Krenak.
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Stevens Rehen. Ailton, você já disse em outras entrevistas que para os Krenak, assim como para outras civilizações mais antigas, esse conceito abstrato que nos aliena e nos separa da natureza, da terra, não existe. Como a sua cultura enxerga o que a sociedade contemporânea entende como natureza?
Ailton Krenak. A palavra Krenak tem um prefixo que é cabeça e é acrescentada desse 'Nak', sufixo que remete à origem. Então, ela diz que nós somos a cabeça da terra e isso é uma orientação que a criança já entende de que ela é a própria terra. Tem um ritual que é de cantar em círculo, homens e mulheres deitados no chão, formam uma mandala e tocam o maracá até criar um entendimento de que todos estão conectados em uma mesma mente, uma meditação. O som do maracá vai criando uma sensação de se confundir com a paisagem, da gente se dissolver na paisagem, esquecer que tem corpo. Na verdade, essa identidade individual se dissolve numa consciência orgânica e aqueles corpos ficam experimentando o relaxamento durante um tempo ao ponto de alguns dormirem. E, enquanto se dorme, essa ideia de identidade, de consciência que a gente tem se esvai, então não tem separação entre o que é gente e o que é natureza, tudo é natureza. Essa é uma visão muito comum aos povos ameríndios e compartilhada em diferentes latitudes daqui do continente: a ideia de que nós somos a vida, a natureza.
Fábio, acho que talvez o mais próximo disso que o Ailton nos relatou agora é a hipótese de Gaia, criada na década de 1970 pelo químico James Lovelock e pela microbiologista Lynn Margulis. Essa hipótese ficou muito famosa, mas qual é a leitura científica atual sobre a hipótese de Gaia?
Fábio Scarano. O que se convencionou a chamar de hipótese de Gaia, na verdade, é uma teoria, uma construção de conceitos que propõem essa leitura do fenômeno da vida como uma coisa integrada. É a vida que torna o planeta Terra diferente dos outros planetas e há um estado de retroalimentação e de autorregulação que a vida faz. E a teoria de Gaia ficou marginalizada na ciência porque ela foi abraçada também por algumas visões esotéricas. Nesse ponto, a ciência é meio cruel, o que é uma pena, porque é uma teoria importantíssima que traz uma visão complementar. A ciência deixou ela um pouco de lado, mas as mudanças climáticas fizeram com que voltasse à tona e os antropólogos a abraçaram muito bem. Gaia é hoje, no mínimo, a melhor metáfora que temos para descrever a situação do nosso planeta, porque, diferente dos Krenaks, que vêem tudo junto, o ser humano ocidental, vê a natureza no outro. Então, quando a gente fala em natureza, a gente já está falando do outro. Se falamos em Gaia, aí as pessoas entendem que é tudo junto.
Eu acho que a gente não precisa ser cientista, acadêmico, nem pertencer a uma etnia nativa para perceber que tem alguma coisa esquisita e que estamos passando por um momento de convulsão. Tivemos a síndrome respiratória aguda grave de 2002, depois teve a gripe aviária em 2004, gripe suína em 2009 e agora chegou a Covid-19. Chama atenção que são todas doenças zoonóticas, ou seja, são transmitidas de animais para os seres humanos. Fabio, qual é a tua percepção de risco que a destruição e os incêndios na Amazônia e no Pantanal estão acrescentando para o surgimento de novas pandemias.
Fábio Scarano. Várias epidemias a que você se referiu decorrem, em grande parte, da perda de ecossistemas, da perda de habitats. Populações locais se alimentam de elementos da fauna que, por sua vez, estão cada vez mais encurralados. A partir do instante que a fauna perde ecossistema, os vírus que habitam nesses animais se multiplicam, mutam e contaminam as pessoas com vírus novos. Então, as doenças zoonóticas têm uma gigantesca relação com o desmatamento, assim como a dengue, a febre amarela, a leishmaniose, a malária.
Ailton Krenak. É gravíssimo, porque se estivéssemos só sofrendo a erosão resultada das mudanças climáticas, nós íamos poder atuar dentro desse contexto de uma maneira mais eficaz. Diante de uma violência programada pelo estado brasileiro de destruir o ecossistema do pantanal, de devastar a Amazônia, a gente sai de um contexto de um debate de mudanças climáticas e entra numa questão política grave, que está assolando a mais de um ecossistema do território brasileiro como se nós estivéssemos decididos a destruir nossa própria casa.
Algumas reflexões dizem que, na verdade, a Covid-19 é como se fosse uma resposta da Terra a um incômodo, que é a nossa presença aqui. O ser humano é, na verdade, o vírus destruidor do planeta e a Covid-19 seria o mecanismo de defesa. A gente é mesmo o vírus? Estamos fadados a esse destino ou foi um caminho equivocado?
“Em meio a essa situação toda da pandemia, o Brasil estava em chamas. E isso não é só feito de mudança climática, é ação criminosa”
Fábio Scarano
Ailton Krenak. Como disse Fábio, Gaia convoca a gente para uma outra percepção dos eventos da vida no planeta. Ela nos tira daquele lugar antigo, de separação da natureza e do homem e provoca uma benéfica colisão desses pensamentos onde o que mais se ressalta é que existe uma orientação antiga que implica nos pensamentos de muitos povos de que a Terra é um lugar que vai acabar. Essa ideia imprimiu um tipo de cultura, de atividade em que as comunidades humanas começaram a se acomodar nessa opção antropocêntrica, nessa posição de dominar o sítio, a caverna, o território e isso gerou todo um dano sobre esse organismo vivo da Terra. Mas, não é uma forçação de barra nem da ciência nem um exagero dos povos antigos entender que esse organismo é vivo porque ele tem a capacidade de se autorregenerar, como disse o Fábio. Mas, é claro que se você tem um lugar que cria vida e nele tem agentes que predam a vida, a fantástica euforia que a vida pode nos proporcionar vira um embate de interesses, de conflitos. Se a gente ensinasse nas escolas, para as nossas crianças, que nós não fomos criados, mas que somos o resultado da evolução da vida na Terra, elas iam ter outra ética, com a formiguinha, com o passarinho, com um gato. É muito comum crianças experimentarem ver se os outros bichinhos são vivos matando pequenos bichinhos. Se elas já entendessem desde pequenas essas questões, se começassem a ser animadas a entender que a vida está ali também no bichinho, na árvore, na terra e que tudo reage a um tratamento amoroso, a gente ia criar um outro tipo de humanidade. Não é que eu não acredito que a gente possa fazer isso ainda, mas eu acho que a gente já perdeu muito tempo ensinando religião.
Mas será que valeu a pena criar a agricultura, a prensa móvel para democratizar o conhecimento, rádio, eletricidade, medicina, genética, internet... A gente está num momento de reflexão do que está valendo a pena?
Ailton Krenak. No livro O Amanhã não está à venda eu, indiretamente, respondo essa questão pondo em perspectiva a duração da nossa vida como humanidade no planeta. As mudanças climáticas não são uma invenção do Fábio, elas são um evento que está torrando a Califórnia e que, no ano passado, não deixou os aviões decolarem do Aeroporto de Berlim porque os equipamentos não suportavam o calor. Então, nós, literalmente, estamos começando a fritar aqui na Terra. E ninguém conhece alguma outra maneira de resfriar o planeta que não seja com os oceanos, com as florestas e com a redução do uso de combustível fóssil, diminuindo a industrialização. A gente pegou uma trilha da industrialização que virou um vício, parece que estamos fascinados com a velocidade da invenção de novos aparatos, de novas coisas, sendo que não precisamos dessas coisas. Nesse sentido, deu errado, inclusive, porque uma pergunta hoje é como alimentar 7 bilhões de pessoas no planeta Terra. Então, toda essa evolução deu errado em vários sentidos, porque a única coisa que prolifera indefinidamente, que cresce indefinidamente, sem nenhum contorno, sem nenhuma expectativa interna de autocontrole, é a doença, é o câncer, é o vírus. É, por isso que, às vezes, eu digo que nós nos tornamos a praga da Terra.
Acredito que não adianta chorar pelo leite derramado. A gente está aqui, essa é a terra e a vida que temos, mas é interessante observar, Fábio, pelo teu histórico acadêmico, tua militância e carreira científica, que você busca mais a ideia de adaptação do que combater as mudanças climáticas. O que mais te preocupa além da pandemia?
Fábio Scarano. Foi por volta de 2007, que eu comecei a ver os relatórios do Painel Intergovernamental de mudanças climáticas do IPCC. No relatório de 2007, dizia que mesmo que a gente interrompesse todas as emissões de gases estufa, chegaria em 2100 com a temperatura aumentando, ou seja, tem uma inércia no que já está aí. Mesmo que a gente pare hoje, em 2020, toda emissão de gás estufa, a gente vai seguir sentindo os efeitos de aumento de temperatura pelos próximos 100 anos. Então, o que esse relatório deixava claro é que, além da gente ter que reduzir drasticamente a emissão de gases estufa, a gente precisa começar a se adaptar a um mundo que invariavelmente vai ser mais quente.
“Nós nos tornamos a praga da Terra”
Ailton Krenak
Vamos ter que seguir combatendo as mudanças climáticas, mas, ao mesmo tempo, a gente vai ter que se adaptar, trocar o pneu com o carro andando. E aí para entender sobre adaptação, temos que pensar nas pessoas mais vulneráveis, que são também as mais pobres e não tem acesso à água, a alimento, à educação. Já os sistemas naturais mais vulneráveis são os que perderam a sua biodiversidade, por desmatamento, por destruição... Então, para sair dessa enrascada e se adaptar a essa nova circunstância climática no planeta, a gente precisa conservar a natureza e no processo de fazer isso, reduzir a vulnerabilidade das pessoas e a pobreza. Mas, se pensar que toda a história da humanidade a gente construiu a chamada riqueza do capital destruindo a natureza, tem que reaprender tudo. Precisa se reintegrar, tem que voltar para a nossa casa que é a natureza, e aí, nessa hora que eu acho que a gente que faz ciência peca um pouco porque acha que a ciência vai trazer a solução. Somos parte do problema, a ciência é parte desse problema, assim como ela tem que ser parte dessa solução. Mas para entender como se reintegrar na natureza, precisamos conversar e aprender com os povos originais, com os povos antigos, com o nosso querido Ailton aqui, porque eles nunca se separaram dessa natureza. Tem que conversar com os nossos amigos artistas que conseguem tocar o coração das pessoas, às vezes, com muito mais facilidade que nós cientistas conseguimos com os nossos aparatos, com a nossa linguagem incompreensível. Esse grande diálogo global que a gente precisa fazer entre nós, seres humanos, precisa, também, fazer com a natureza. Há pouco tempo, o Ailton fez uma live para a escola do meu filho de 15 anos aqui no Rio. Ele virou para mim e falou: 'Pô, pai, o professor um dia antes falou para a gente que durante a aula do Ailton Krenak, tem que estar segurando em alguma coisa da natureza'. Ele pegou uma planta e ficou segurando durante a aula. Eu achei tão legal porque essa juventude urbana perdeu muito o contato com a natureza, os psicólogos chamam esse fenômeno de extinção da experiência de estar em contato com a natureza, o que gera um monte de problema psicológico e psicomotor até. Nesse processo, é como se os humanos ocidentais fossem alienados da natureza, uma crença perdida e em busca do pai e da mãe. Para isso, a gente precisa de orientação e é nesse ponto que vai ser indispensável todas essas formas de conhecimento e de saber conversarem umas com as outras.
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Ailton Krenak. É, eu me alegro com a presença de vocês porque as ciências sociais têm uma tendência forte a supervalorizar os sentidos, ela aprecia pouco o fato de que nós somos continuidade de vida. Então, assim, está implícito em todo o debate das ciências sociais e humanas, que nós somos separados dos bichos, dos outros seres. Mas, na verdade, deveriam se agrupar em seu próprio distúrbio zoológico, nós somos bichos, somos animais e a conotação de bicho e animal ficou pejorativa.
Eu quero fazer uma provocação para o Fábio baseada no livro novo do James Lovelock, que está com 101 anos e comentou uma coisa que eu achei interessante. Ele falou: 'A natureza humana não é passível de curas sensatas'. Ele diz que o que vai suceder o antropoceno vai ser uma era de hiper inteligência não-humana em que os ciborgues vão substituir os humanos nesse reino da vida e que eles vão entender melhor do que a gente a importância de se manter as condições climáticas adequadas, porque mesmo máquina não pode esquentar muito. Os ciborgues vão precisar da gente da mesma forma com que a gente precisa das plantas. Então, fazendo uma conexão com o seu livro, 'Regenerante de Gaia', você acha que existe a chance dessas células do planeta que vão para os outros mundos serem basicamente de silício.
Fábio Scarano. Eu acho o seguinte: gosto de fazer esse exercício de ficar pensando em futuros possíveis, mas óbvio que dentre eles têm aqueles que a gente gosta mais e os que a gente gosta menos. Eu li o Novacene, do Lovelock, que é um livro muito interessante, mas é um futuro no qual eu não gostaria de estar. O livro é uma espécie de tecnologia em que ele propõe esse encontro da tecnologia com a natureza e eu acho que ele pensa pouco da humanidade. No meu livro, Regenerante de Gaia, eu falo sobre essa possibilidade, de a gente a vir a colonizar outros lugares, mas não tem lugar melhor que esse aqui e eu espero que a gente não saia dele, só que daqui a cinco bilhões de anos. Então, me parece interessante propagar isso que é mais comum da gente, das bactérias, dos macacos, das plantas, que é o DNA. Eu não acho que vai ser o silício que vai colonizar outros planetas, pra mim vai ser o DNA. Mas tomara que quando essa hora chegar, a gente já se perceba como uma família só de seres vivos para chegar nesses outros lugares e, quem sabe, ter um começo melhor que o nosso aqui.
Agora, falando de sustentabilidade, Fábio, você declarou em algumas entrevistas que não tem uma oposição entre crescimento econômico, conservação e uso sustentável da natureza. A melhor maneira de estimular a preservação é mostrar o quanto de dinheiro pode se ganhar preservando? E como a gente ganha dinheiro preservando?
Fábio Scarano. Eu tenho lido muito sobre o antigo navegador Américo Vespúcio e ele tem uma história muito bonita que ajuda a responder essa pergunta. Quando se fala em sustentabilidade, interpreta-se de diferentes maneiras. Às vezes, de uma forma mais voltada para esse olhar do capital, de conciliar conservação da natureza com ganho econômico e há inúmeras evidências de que isso é possível. Mas sustentabilidade para mim é um negócio que os nossos ancestrais, os povos originais daqui já praticam há muito tempo e é o que o Américo Vespúcio viu quando ele navegou na Baía de Guanabara. Ele navegou essa costa toda, ficou fascinado com os Tupinambás, e fez uma carta linda para os mecenas dele lá em Portugal chamada 'Mundo Novo', na qual indica que estava encantado com os Tupinambás porque era um povo que amava a si mesmo e a impressão que ele tinha disso é porque eles todos nus, numa época em que a Europa andava cheia de roupa, eles amavam ao próximo por conta das festas e da celebração que eles tinham, eles amavam a natureza.
Então, nesse trinômio de amor - a si mesmo, ao próximo e à natureza -, o capital é secundário e pode ser até desnecessário. Por que precisa gerar mais renda se a gente vive num mundo em que 60% do capital está concentrado na mão de 1% das pessoas? Será que não é mais uma questão de distribuição do que de geração? Então, eu tenho a impressão que a grande utopia dos últimos 500 anos do mundo ocidental, o Américo Vespúcio viu nos Tupinambás. E o que eu acho mais bonito disso é que é uma volta, uma espécie de missão que os brasileiros tem, de fazer com que essas coisas funcionem, de mostrar isso para o mundo. O Américo Vespúcio dizia que achava que a Europa tinha muito a aprender com os Tupinambás, mas ela não só não aprendeu nada, como dizimou eles e outros povos. Então, a gente precisa corrigir esse erro histórico e retomar essa utopia que tem 500 anos de idade e caminhar em direção a ela para honrar essa turma que andou por aqui e que criou esse pensamento, essa forma de viver tão bacana, tão harmônica, humana com as suas falhas como a gente sempre tem. E eu acho que esse reencontro prescinde do capital. Mas, se mesmo assim, precisar ganhar recurso em cima da natureza conservada, tem aí o ecoturismo, a biomimética, o Amazônia 4.0 e uma série de visões que já mostraram que isso é super possível.
Vou aproveitar esse gancho do Américo Vespúcio porque lembrei do Caetano Veloso na entrevista que ele deu para o Bial e também falou dessa oportunidade da gente ensinar o mundo a viver melhor. Estamos numa situação em que temos tudo concentrado: fogo, vírus e uma gestão política de extrema direita muito questionável. Então, Ailton eu vou te perguntar: o que nesses 500 anos aconteceu que a gente não conseguiu ensinar? O que você acha que acha que aconteceu e o que está acontecendo?
Ailton Krenak. Eu gosto muito da maneira com que o Fábio consegue buscar em diferentes lugares, inclusive textos históricos, matérias para esclarecer algumas confusões como essa ideia de riqueza, por exemplo. O Américo Vespúcio viu o que a Europa não queria ouvir, porque o continente já tinha um projeto colonial estabelecido na dinâmica do acúmulo de riqueza e já vinha fazendo isso.
O que me faz lembrar de Alexandre O Grande. Quando Alexandre inventou de ir para a Ásia e sair integrando todo mundo debaixo da ideia de um governo geral, aquilo já era uma síndrome totalitária que evoluiu com o tempo até a Europa ter essa ideia de sair colonizando o planeta inteiro. Se a gente fosse pensar em coisas que dão certo e coisas que dão errado, teria que dizer que a Europa teve um sucesso incrível em colonizar o planeta inteiro e teve a infelicidade enorme de colonizar ele de uma péssima maneira, porque se o movimento de colonizar fosse essa ação que integra diferentes continentes, povos e cultura, ela podia ter produzido outras coisas, diferente dessa destruição que eles fizeram nas vidas e nos organismos não-humanos que eles foram encontrando pelo caminho.
“A gente deve continuar ouvindo Mahatma Gandhi, andando com Mahatma Gandhi, mas com um cacete na mão”
Ailton Krenak
Pois bem, se essa é a parábola que a gente tem de base para pensar como nós vivemos hoje, não é confortável para mim imaginar o Brasil sendo um laboratório para o mundo nesse sentido. O antropólogo Bruno Latour chama essa situação que nós estamos vivendo no Brasil de 'tempestade perfeita'. Eu fiquei imaginando, ora bolas, quem é que quer ser o 'vote-se' ou o 'assento' de uma tempestade perfeita? A gente quer acabar com o nosso mundo no sentido social, cultural, ecológico? Nós vamos virar, na verdade, um abismo, um buraco, um desgoverno total. A Europa, que tem uma história antiquíssima de responsabilidade em relação a essa colonização errada, deveria agora se engajar com o povo do Brasil, com os povos vizinhos da bacia Amazônica, como Peru, Colômbia, Venezuela, lugares que estão passando por crises terríveis. O gesto que a Europa deveria fazer agora é de solidariedade implicada, o que significaria investir aqui para gente se aproximar daquilo que o Fábio disse, que é um tipo de desenvolvimento onde a prioridade não é fato, mas dinâmica do saque foi instalada em 1500 e não parou.
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A gente está chegando no final do nosso papo e eu queria fazer duas perguntas para vocês. Uma, eu acho que a resposta já está acontecendo naturalmente até pela afinidade de temas e pela amizade entre vocês, que é de como integrar saberes, o acadêmico e o ancestral. Mas a gente está vivendo um momento que é muito mais complexo e a solução a gente nem sabe de onde vai vir, mas é preciso dar um primeiro passo, então, eu queria saber de vocês honestamente. Qual pode ser um primeiro passo para a gente resgatar muito do que vocês estão falando que é, de certa maneira, a nossa essência enquanto parte integrante da natureza?
Fábio Scarano. Eu acho que a minha sugestão é fazer um pouco daquilo que o Ailton fez na escola do meu filho, 'segurar a natureza’. Foi um pouco do que eu fiz de manhã cedo quando eu acordei, fui andar no Jardim Botânico,fiquei olhando as plantas, toquei nelas.É óbvio que tem todo um componente que escapa, mas para mim as soluções começam muito com a gente se percebendo como ator de transformação e para isso precisa se transformar, se perceber como parte do problema, mas como parte da solução também. É muito comum a gente atribuir culpa a quem quer que seja, a governos, a empresas, que muitas vezes têm culpa, mas estão lá porque a gente consome os produtos que produzem, porque vota neles. Então, tem algumas coisas que dizem respeito a nós, individualmente. Nessa pandemia, alguns de nós tivemos o luxo de ficar em casa, em quarentena, e espero que esse tempo possa ter dado material para refletir sobre a mudança que a gente pode fazer em nós mesmos.
Ailton Krenak. A gente não pode também concluir a nossa conversa, só termos da longa duração, pensando no que pode ser regenerado ou restaurado. Para você trabalhar com a restauração, você tem que ter, pelo menos, uma matéria inicial. Se estão destruindo o Pantanal e a Floresta Amazônica, vai sobrar o que para a gente restaurar depois? Eu acho que, na verdade, nós já estamos entrando naquela chave que dentro do painel do clima foi identificado como ‘mitigação'. Não é mais para trabalhar com a ideia da conservação, pois está sendo destruído o material que a gente conservava. A restauração, do ponto de vista político, é inviável porque os caras estão botando fogo no Pantanal e isso virou uma piada dentro do Palácio.
O negacionismo está nos impedindo de restaurar qualquer coisa no nosso país, inclusive as relações sociais. É uma narrativa maldosa, regada de más-intenções e muito associada à ideia do lucro e da vantagem econômica. Eu não consigo achar que nós temos o tempo para a mudança necessária em cada um de nós sem ser nesse tempo urgente de resolver os problemas que estão pegando fogo, mas sem perder a ternura. A gente deve continuar ouvindo e andando com Mahatma Gandhi, mas com um cacete na mão.