Garotas revolucionárias

por Milly Lacombe

Em 1850, um grupo de mulheres norte-americanas criticava a revolução industrial e pôde prever que o capitalismo nos desumanizaria

Em 1850 um grupo de mulheres no norte dos Estados Unidos foi pioneiro em perceber que o sistema que estava surgindo – o capitalismo – criaria uma sociedade desigual e injusta. Para nossa sorte, essas revolucionárias deixaram perfeitamente documentada toda a crítica que faziam à revolução industrial, antecipando um mundo dentro do qual apenas homens brancos teriam poder de decisão e dentro do qual o trabalhador e a trabalhadora seriam tratados como instrumentos usados para conduzir os donos dos meios de produção, e apenas eles, ao acúmulo de capital.

Essas mulheres tinham em torno de 20 anos e a história de como elas rapidamente entenderam as mazelas de um sistema injusto é pouco conhecida. 

Estamos em Lowell, Massachussets, em 1845. O primeiro grupo de meninas é trazido das vilas e das fazendas para trabalhar nas novíssimas fábricas da indústria têxtil de Lowell. A jornada de trabalho começava às quatro e meia da manhã, e chegava a 14 horas por dia, e elas tinham o domingo de folga. O que recebiam como pagamento permitia que ao final de cada semana pudessem comprar um novo vestido, mas elas não demoraram para entender que não adiantava muito ser capaz de comprar uma roupa se não havia oportunidade para usá-la, e não gostaram de um sistema que premiava o trabalho penoso com a capacidade de consumir. E então começaram a se organizar em sindicatos e ajudaram a fundar um jornal, o Voice of The Industry.

Nele criticavam os rumos de um sistema que visava o lucro em detrimento da qualidade de vida, que era incapaz de gerar aumento de salário mesmo com o crescente aumento de lucro acumulado pelos proprietários e que exauria o ser humano a ponto de mesmo em seus dias de folga ele não ser mais capaz de pensar, de estudar, de refletir, de poder exercer, enfim, sua humanidade. Essas garotas queriam estudar, refletir, fazer política comunitária, amar; o trabalho nas fábricas não deixava que elas fizessem nada disso.

LEIA TAMBÉM: Todos textos de Milly Lacombe na Tpm

Todo o material de propaganda que produziam na época tinha como objetivo expor essas ideias, e é um material rico e farto. “Qual a diferença entre vender ou alugar um ser humano?”, questionavam para alertar para o fato de que de nada adiantava terem acabado com a escravidão para em seguida encontrar um novo modelo escravocrata. A preocupação com as evidentes mudanças sociais, que levavam o homem e a mulher a se tornar cada vez mais individualistas, era colocada em palavras edição após edição. Elas diziam que o sistema que nascia tinha como mote: ganhe dinheiro, enriqueça e esqueça tudo o mais. Essa ética individualista as apavorava porque as mulheres de Lowell, conhecidas como The Factory Girls, acreditavam que a essência da natureza humana pedia trabalho comunitário e social, e que o capitalismo, ao bloquear essas características, nos desumanizaria. O conceito de alugar sua capacidade física e seu tempo para que outra pessoa ganhasse muito dinheiro não fazia nenhum sentido para elas. 

Com o passar dos anos internalizamos como natural alugar nossa capacidade física e intelectual para lucro de terceiros. "Hoje, quase todas as pessoas que têm um emprego em nossa sociedade consideram legítimo estar na posição de ter que alugar a si mesmos a fim de sobreviver” diz o lingüista, ativista e anarquista Noam Chomsky.

O Voice of Industry, embora repleto de reflexões, de protestos e publicado pelo sindicato, também falava de amor, da preocupação com a família, com o tempo passado ao lado dos que amamos e tinha um espaço dedicado à poesia porque era, afinal, um jornal feito por mulheres.

Editado por Sarah Bagley, o jornal foi publicado até 1848. Depois disso, como mostra a história, o capitalismo venceu até chegar a seu produto melhor acabado: o trabalhador que agradece ao empregador pela oportunidade de servi-lo. 

Vai lá: industrialrevolution.org

Créditos

Imagem principal: Reprodução

fechar