Nomadland: O trabalho sem sentido rouba a vida

O grande favorito ao Oscar 2021 não é fundamentalmente um filme sobre não ter casa, mas sobre o sentido do trabalho, e o valor do tempo e da liberdade

por Paola Lins de Oliveira em

Uma mulher com sessenta anos peregrina o oeste estadunidense numa van, encontrando sustento em trabalhos temporários, arriscados e maçantes, e passando por várias situações de privação. Essa é uma síntese possível do enredo de Nomadland, filme roteirizado, dirigido e editado por Chloé Zhao, estrelado e coproduzido por Frances McDormand. 

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Uma das estreias mais celebradas nos festivais de cinema da temporada de 2020-21, o filme recebeu inúmeras indicações (entre elas, ao Oscar em seis categorias) e muitos prêmios, incluindo o Leão de Ouro de Veneza, o Globo de Ouro e o Prêmio da Academia Britânica de Cinema, nas categorias melhor direção e melhor filme. 

Já nos primeiros minutos, descobrimos o motivo que levou a protagonista Fern, personagem ficcional enredada em uma trama de eventos reais, à experiência nômade: a fábrica de placas de gesso em torno da qual orbitava a vida na sua cidade fechou, deixando um rastro de desemprego e, finalmente, de vazio. Viúva, sem casa, sem aposentadoria ou rendimentos, ao que parece à Fern só resta partir.

Em muitos aspectos, a vida de Fern se aproxima da vida precária, formulação da filósofa Judith Butler. Para Butler, embora todas as vidas sejam precárias por sua vulnerabilidade e necessidade de abrigo, de alimentação e subsistência, nossa sociedade distribui desigualmente essa condição.

“A condição precária designa a condição politicamente induzida na qual certas populações sofrem com redes sociais e econômicas de apoio deficientes e ficam expostas de forma diferenciada às violações, à violência e à morte. Essas populações estão mais expostas a doenças, pobreza, fome, deslocamentos e violência sem nenhuma proteção”, escreveu a filósofa no livro Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto?

Não é difícil identificar no filme os momentos em que Fern experimenta a perda e o estado de despossessão, alicerces da vida precária para Butler. A perda do marido, do emprego, do lugar de residência e, no limite, da própria cidade são pontos de partida para uma sequência de outras despossessões: o frio, as condições quase sempre insalubres de higiene, o alimento industrializado, a falta de conforto para o repouso, o isolamento. 

É bem razoável que essa linha de pensamento esteja por trás de diversas manifestações de pena que encontrei articuladas explícita ou implicitamente em críticas e reações a Nomadland. Logo depois de assistir, ainda muito emocionada, fui atrás do que outras pessoas pensaram sobre o filme e, para várias delas, essa descrição da escassez foi a sua característica mais marcante. 

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Minhas impressões vão em outra direção. Como eu vejo, Nomadland não é fundamentalmente um filme sobre não ter casa, mas sobre o sentido do trabalho, e o valor do tempo e da liberdade. Ainda no comecinho, a protagonista Fern responde à filha de uma conhecida que pergunta se é verdade que ela é uma “sem lar” (homeless) dizendo que não, ela é uma “sem casa” (houseless). Fern existe, tem um lar, tem uma história, assim como os outros personagens, muitos deles nômades na vida fora do filme. 

Até onde consigo ver, o sentimento de pena singulariza o problema da precariedade e congela aquelas vidas num lugar ético e emocional dentro da gente onde se tornam vidas que já consideramos perder, que já nos habituamos a perder. Vidas que não são nem passíveis de luto, como diria Butler. Nessa toada, nossa pena nos protege de assumir que o verdadeiro problema, o vilão de Nomadland, que causa a condição de precariedade de tantas vidas, da maioria das vidas, é o capitalismo. 

A precariedade das vidas em Nomadland não me provocou pena, mas sim um sentimento muito menos domesticado: o ódio. Senti ódio contra o capitalismo, contra o seu poder de aniquilar a vida das pessoas, de tirar suas casas, destruir o lugar onde vivem, até mesmo banindo suas cidades do mapa, jogando suas memórias num vácuo desumanizante. Ódio contra o modo perverso como o capitalismo se estrutura obrigando as pessoas a venderem a coisa mais preciosa que possuem, sua vida, para sobreviver. O problema não é a vida nômade, mas como o trabalho sem sentido criado pelo capitalismo transforma todos os modos de vida alternativos ao modelo casa-patrão-família mononuclear, como os nômades, em sinônimo de pobreza. 

Eu sinto ódio contra o capitalismo e a exploração da força de trabalho de Fern, mas não sinto pena dela. A matéria da sua vida é dura, suave, amarga, doce, fascinante. 

Frances MacDormand segue numa direção parecida na sua percepção sobre a personagem que interpreta no filme. Ela disse no Festival Internacional de Cinema de Toronto: "Acho que realmente esperávamos que o público não se preocupasse com ela, mas apenas se empolgasse com a possibilidade de ela ver o que estava por vir na próxima esquina." Ela continua: "Pessoalmente, acho que ela sempre foi uma verdadeira nômade por dentro e, quando ela finalmente foi embora, demorou um pouco para descobrir quem ela realmente é. E eu torço de verdade para que, quando você assistir ao filme, no final, você pense, 'Ela pertence à estrada. Não vai ser fácil. Mas é onde ela se encontra. Ela parece em casa lá.'"

Não se trata de romantizar a pobreza, mas de afirmar, como o filme faz lindamente, que as pessoas não se reduzem às dificuldades por que passam. Fern é muito mais do que os obstáculos da sua vida, suas perdas, sua dor. Ela é suas memórias, as coisas lindas que viu, por onde passou, a brisa que tocou seu rosto. 

Dirigir num fim da tarde encarando a paisagem multicolorida do deserto. Entrar numa floresta com árvores que arranham o céu. Mergulhar nua num rio. Se perder e se encontrar em labirintos de rochas lilases. Compartilhar uma refeição fresca ao ar livre na companhia silenciosa das montanhas. Desfrutar de uma caminhada a beira-mar num dia de chuva. Acordar a cada dia com o sol nascendo na sua janela em um novo cenário. Olhar para o céu e descobrir que é possível ver as estrelas em suas mãos, já que ambas são feitas da mesma poeira cósmica. Essa vida não mereceria ser vivida?

A vida pulsante de Fern e seus companheiros itinerantes fica mais evidente quando pensamos sobre a construção dos diferentes tempos e espaços no filme. Na maior parte das vezes, o tempo do trabalho é repetitivo, automático, alienante, perigoso. Já o tempo da vida que não é trabalho é feito de limitações e surpresas, acelerações, dilatações, pausas, enfim, de emoções e experiências criativas. Da mesma forma, o filme tem uma diferença marcada entre a paisagem do trabalho e a paisagem da vida. Enquanto a paisagem do trabalho é mecanizada, cinzenta, fisicamente isolante; a paisagem da vida transborda em cores, tonalidades, texturas, e experiências livres do espaço que acompanham os ciclos do dia, e dos outros seres e ambientes vivos. É interessante notar a humanidade e o sentido de prazer tomando a protagonista quando ela realiza um trabalho na paisagem da vida, com relações de afeto e alguma criatividade. 

As histórias de Fern e de seus companheiros nômades mostram que, mesmo com todas as privações, a vida transcende as amarras do trabalho; ela transborda nas frestas. Na sua abundância, a vida escancara que é muito maior do que esse sistema de gerar lucro moendo gente. A vida é muito mais do que todas as insuficiências que o trabalho sem sentido nos impõem. A vida é imensa. 

Para Butler, caminhar em direção à desprecarização da vida é valorizar a nossa interdependência na vulnerabilidade, e para isso precisamos agir coletivamente. A mudança real e concreta vem do reconhecimento de que todas as vidas merecem ser vividas. E se forças se organizam contra esse princípio vital, a tarefa é desarticular essas forças. 

A gente precisa superar o capitalismo, porque o trabalho sem sentido rouba a vida.  

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