Narração de futebol é coisa de mulher

por Carol Ito

Pela primeira vez na televisão brasileira, uma Copa do Mundo contou com narradoras mulheres. Estreantes e pioneiras falam sobre seus desafios

14 de junho, primeiro jogo da Copa do Mundo na Rússia e os anfitriões enfrentam a seleção da Arábia Saudita. A mineira Isabelly Morais, de apenas 20 anos, assume o microfone para se tornar a primeira mulher a narrar uma partida da Copa na televisão brasileira. “Quando fui escalada para narrar o jogo de abertura, não tinha me tocado que seria a primeira. A gente tá abrindo uma porta muito bacana para a nossa carreira e pra mulher no jornalismo esportivo”, comemora Isabelly. Ela fala no plural porque foi escolhida, junto com Manuela Avena e Renata Silveira, para compor o time de narradores da Fox Sports, que contou com 300 candidatas.

As três já tinham experiência no jornalismo esportivo. Estudante de jornalismo, Isabelly é estagiária na Rádio Inconfidência, em Belo Horizonte e já havia sido pioneira ao narrar um jogo em Minas Gerais, em 2017. Renata, 28, é carioca, professora de dança e narrou partidas na Rádio Globo, em 2014, mas não continuou na profissão por falta de oportunidade, conta. De Salvador, Manuela, 30, trabalha como repórter de campo da Rádio Sociedade, além de já ter passado pela Rádio CBN.

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Em fevereiro, antes da seleção de narradoras começar, a funcionária de uma agência de comunicação publicou na internet um chamado para inscrição que, além do portfólio das candidatas, exigia foto de rosto e corpo. A Fox Sports recebeu várias críticas que também questionavam se o canal teria a mesma postura em relação a candidatos homens. A Fox afirmou que a agência não havia sido contratada para prestar o serviço nem tinha autorização para publicar o chamado. 

Suando a camisa

Foi a mineira Zuleide Ranieri (1945-2016) a pioneira na narração feminina no Brasil, na década de 70, na Rádio Mulher. Na TV, elas só estrearam em 1997: a paulista Luciana Mariano, 42, narrou o Torneio Primavera de futebol feminino na Rede Bandeirantes. Hoje, Luciana trabalha como narradora no canal ESPN e conta que nos anos 90 não pensava em seguir na profissão por falta de referências femininas. Foi incentivada pelo então marido, ninguém menos que o narrador Luciano do Valle (1947-2014), e conta que ele sempre se incomodou com a falta de mulheres no jornalismo esportivo. “As equipes que ele montou na Bandeirantes sempre tiveram mulheres apresentadoras, repórteres etc. Pra ele, não era possível não ter narradoras”, conta Luciana.
Em comum, as pioneiras têm a fala acelerada (e articulada), além da paixão pela narração de futebol. As selecionadas pela Fox tiveram um treinamento que começou 45 dias antes dos jogos, em que foram acompanhadas por fonoaudiólogos e puderam narrar alguns jogos da Copa América Feminina deste ano, que garantiu o sétimo título para o Brasil. 

Os estudos e preparação vocal ficaram mais intensos com o início dos jogos na Rússia: “A gente estuda as seleções que vão entrar em campo, 32 no total, e os esquemas de jogo. Também estudamos a pronúncia dos nomes”, conta Manuela. “Passei a mergulhar nas seleções, gosto muito de pesquisar sobre os atletas, faço uma tabela com informações sobre cada um”, conta Isabelly.

Como mulher, Renata acredita que o é importante “errar menos” durante a narração e por isso vira as madrugadas estudando sobre os times. “Com certeza, a pessoa já liga a televisão duvidando do nosso potencial. Se a gente erra, já é apontada nas redes, a responsabilidade aumenta”, conta. Ela acredita que deve tomar cuidado extra por ser mulher e iniciante na narração de futebol: “Às vezes, você quer usar alguma expressão diferente, mas, como está começando, é melhor fazer o mais simples. Depois que estivermos consolidadas no mercado podemos imprimir melhor nosso perfil”. 

As narradoras contam que a maior parte do retorno do público é positiva, com mensagens de apoio e dicas construtivas, embora ainda recebam comentários do tipo “que horror a voz feminina narrando” ou “que produto eu uso para tirar uma mancha da minha roupa?”, como relata Isabelly. “As pessoas podem pensar o que quiserem, não podemos entrar nessa de que elas ‘vão ter que nos engolir’, como falava o Zagallo. Com o tempo, vão saber diferenciar o que é bom e ruim independentemente do sexo”, reflete Luciana. 

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Para Isabelly, o que pode diferenciar as narrações de homens e mulheres é apenas a voz, por fatores biológicos. “A voz da mulher é mais aguda. Em termos de identidade, cada um cria a sua”, explica a mineira. 

O acolhimento é um fator importante nesse estágio embrionário da narração feita por mulheres, segundo Luciana: “Um homem faz em média dois mil jogos em 20 anos. Nesse mesmo período, eu fiz 40. A prática vem com oportunidade e tempo, não tem jeito, a gente está muito em desvantagem. Mas a ESPN sempre foi cuidadosa comigo, perguntam se estou confortável, porque pensam ‘essa diferença existe, então, o que é preciso ser feito para que isso mude de forma contínua?’”. O caminho é longo, mas a narradora é a favor da diversidade de olhares e vozes no futebol: “Sempre que a gente parte de um ponto de vista diferente, a tendência é que surjam coisas novas. A gente amplia o discurso, o modo de enxergar as coisas”.

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Imagem principal: Carol Ito

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