Um grupo de homens estupra uma mulher desacordada. Tudo tão corriqueiro que um dos criminosos filma o crime. Crime? A menina é rata. É só mais uma farra
"Fizeram um túnel na mina, mais de 30."
O comentário arrematava o vídeo da adolescente de 16 anos sendo estuprada, tuitado no fim do mês passado.
Igualmente assustadoras as opiniões postadas internet afora, em reação às reportagens sobre o estupro coletivo no Morro do Barão, zona oeste do Rio:
"Devia estar em casa, e não em baile funk."
"A estuprada era decente?"
"Errado quem fez, muito mais errada ela, que procurou."
"Cadeia para essa mocinha santa pela associação com o narcotráfico."
"Daqui a pouco ela vai ser destaque em escola de samba."
E por aí vai. Difícil imaginar uma demonstração mais didática de como a cultura do estupro se manifesta.
Um grupo de homens estupra uma mulher desacordada. Tudo tão corriqueiro que um dos criminosos filma o crime. Crime? A menina é rata. É só mais uma farra. Tão divertida que vale dividir com os amigos e compartilhar nas redes sociais. Mais de 500 curtidas. Lacrou.
Ato contínuo, o tribunal do Facebook passa a funcionar como um paradoxo em tempo real. Cada post afirmando que não é bem assim confirma a inaceitável naturalidade com que o estupro é encarado. Cada mensagem contemporizando a barbá-rie
reforça a barbárie.
Fez lembrar a pesquisa que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada divulgou há dois anos: para 65% dos brasileiros, “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. E 58% acreditam que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.
Essa lógica estúpida não se aplica ao resto do código penal. Em qualquer outro crime, por mais irrelevante que seja, a vítima é vítima e pronto. Ninguém discute.
Há alguns carnavais, surrupiaram minha carteira. Estava no meio de um bloco e só fui me dar conta de volta pra casa. Fiz o B.O. da delegacia. Ninguém insinuou que dei mole com a carteira. Ninguém perguntou se eu havia bebido. Ninguém questionou se minha roupa era apropriada para proteger meus pertences.
Uma outra vez, estava parado no sinal vermelho à noite quando um motorista distraído bateu na traseira do meu carro. Escrevi um relatório para a seguradora e pronto. Ninguém imaginou que eu talvez estivesse dirigindo de ré e provocado a batida. Ninguém achou que eu estava pedindo uma colisão parado ali. Ninguém estranhou eu estar na rua àquela hora.
Mas quando se fala dos 500 mil estupros por ano no Brasil, 500 mil crimes hediondos, vira tudo pelo avesso. Do campus da USP ao Castelo do Piauí, o Ministério da Cultura do Estupro adverte: a vítima é culpada.