Mira, papá, soy yo
O dia em que nossa colunista quase matou uma mulher na sala de meditação
Era meu décimo dia no retiro de meditação e me sentia bastante leve, e não apenas porque estava forçadamente sem açúcar, sem glúten e sem álcool durante todo esse tempo, mas porque minha mente tinha finalmente dado sinais de que seria capaz de visitar o silêncio e nele descansar. Animada com a perspectiva de estar me desintoxicando de mim mesma, me dirigi à sala de meditação, onde já estavam quase todos depois de terem tomado o café da manhã. Era quarta-feira, dia do silêncio absoluto, então me desloquei até a sala mantendo minha cabeça baixa, sabendo que se cruzasse com outra pessoa não poderia sequer dizer “oi”.
Caminhando com minhas mãos no bolso, lembrei da história que Tere, minha colega de quarto espanhola, tinha me contado no dia anterior. Quando era pequena, depois de comer, ela era colocada pelo pai numa cadeirinha na varanda de casa e, da sacada, podia ver outras pessoas passando pela rua. Tere apontava seus pequenos dedos para cada uma das pessoas e repetia: “Mira, papá, soy yo!”. Por algum motivo, havia nela a absoluta certeza de que ela estava contida em todos os que passavam na rua. “Soy yo! Soy yo! Soy yo!”, repetia apontando, um a um, para uma infinidade de estranhos. Eu ria enquanto lembrava da história e apertava o passo para escapar do frio a caminho da sala de meditação.
Ronco profundo
O vento era dilacerante, mas a sala estaria aquecida e eu poderia passar muito tempo fazendo exatamente o que me propus a fazer quando, no começo de novembro, saí do Brasil para fazer um retiro de meditação numa montanha da Catalunha.
“Talvez anjos sejam apenas pessoas que, numa quarta-feira qualquer, cruzam nossos caminhos”
Milly Lacombe
Ali, peguei uma cadeira perto da janela, ajeitei o cobertor sobre as pernas, a almofada nas costas, coloquei na cabeça o capuz do casaco e, depois de um suspiro, fechei os olhos para começar a observar meus pensamentos, como manda a cartilha do meditador. Já estava afundada em silêncio quando escutei um zunido metálico e agudo que entrou no meu cérebro, reverberou dentro do meu crânio e me fez pular da cadeira em sobressalto.
Tirei o capuz esperando alguém gritar “Terremoto!”, ou “Tsunami!”, ou “Guerra!” e mandar que corrêssemos. Mas tudo o que vi foi a garota argentina parada ao lado do sino olhando furiosamente para o venezuelano que roncava livremente.
Em segundos, saí de um estado de absoluta paz para outro de ira. O que ela estava pensando? Que bastava ficar incomodada com o ronco alheio para sair tocando a porra do sino que só era tocado para avisar que as refeições estavam sendo servidas? Esperava que meu olhar fosse capaz de comunicar pensamentos inteiros, como “que porra é essa que você está fazendo, sua mimada?”. Mas, ao meu redor, as pessoas seguiam meditando, alheias ao que tinha acontecido.
Respirei fundo e pensei nos ensinamentos que tinham sido dados até ali. “Somos todos um”, disse um dos monges durante a palestra inicial. “Fazemos parte de uma mesma singularidade, de uma mesma substância. O outro é apenas um reflexo do seu eu e ele não cruza seu caminho sem que haja um propósito”, foi o que ele falou. Lembrando dessas palavras, coloquei outra vez o capuz na cabeça e fechei os olhos, mergulhando na paz que só o silêncio pode oferecer.
Não sei quanto tempo se passou até que eu escutasse o barulho atordoante do sino, agora ainda mais forte. Tirei o capuz e vi a mesma imagem: a argentina com cara de poucos amigos ao lado do sino olhando furiosamente para o venezuelano que roncava. “Caralho”, pensei monasticamente. “Que porra de mulher folgada. Ela acha que por estar incomodada com o ronco pode sair quebrando o sino e invadindo a paz de todos? Eu não quero essa argentina na minha singularidade. Não quero fazer parte dessa substância que deveria nos ser comum. Quero essa mulher fora da tal matéria cósmica que nos une”. “No oness for you!”, era o que eu queria gritar para ela dentro da sala de meditação.
Quilômetros de raiva
Incapaz de pensar em qualquer outra coisa que não fosse me atracar fisicamente com aquela argentina, e colocar o sino em lugares de onde ele seria retirado apenas por especialistas durante uma cirurgia, decidi deixar a sala e ir caminhar.
“Existe uma tremenda liberdade em entender que a vida, afinal, não erra, e que o outro – mesmo incrivelmente chato - também sou eu”
Milly Lacombe
Se o outro é apenas um espelho, para que tipo de chatice o comportamento da argentina apontava em mim? Que parte de mim poderia ser tão desesperadoramente ranzinza? Andei quilômetros até que minha raiva pudesse ser atenuada.
E foi apenas no dia seguinte, conversando com um dos monges, que percebi o verdadeiro problema: não era o sino ou a forma alucinada com que a argentina o tocava. Era a maneira igualmente raivosa como eu reagi a tudo, e a ira que me possuiu e me fez ser incapaz de meditar. Não havia nada errado em dizer a ela “por favor, não faça mais isso” se eu pudesse encerrar aí a história. O que estava errado era pegar o resíduo que ficou em mim, nutri-lo de atenção, aninhá-lo e acariciá— lo por horas.
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Talvez anjos sejam apenas pessoas que, numa quarta-feira qualquer, cruzam nossos caminhos. Eles certamente não estão andando por aí vestidos de branco com as asas à mostra. Alguns, aliás, vêm das sombras, de lugares frios e soturnos, trazendo lições importantes a nosso respeito. Todos, sem exceção, oferecem a chance para que nos transformemos. Todos, sem exceção, carregam cartilhas que nos fazem aprender que a vida tem um jeito muito particular de nos conduzir. É como diz o ditado: os fados dançam com aqueles que querem dançar. Os que não querem dançar, eles arrastam.
Confiar na vida, em seu ritmo, em suas surpresas, em suas reviravoltas, em seus anjos sombrios; eis aí uma pista para decifrar o grande mistério que é estarmos todos aqui e agora, alertas e conscientes. Alguns chamam de fé, outros chamam de entrega, e os livros sagrados colocam como “seja feita a sua vontade”. Existe uma liberdade que vem com isso. Existe uma tremenda liberdade em entender que a vida, afinal, não erra, e que o outro – mesmo incrivelmente chato, mesmo insuportavelmente pentelho – também sou eu. Ou, como sacou Tere ainda bem pequena: “Mira, papá, soy yo”.