A primeira livraria feminista de Santa Catarina
Livras, em Florianópolis, é um dos poucos espaços dedicados ao gênero no Brasil; criadoras listam à Tpm dez livros para pensar o feminismo atual
Entre as construções coloridas da tradicional Rua Quinze de Novembro, a casinha azul do número 181 vem movimentando o distrito histórico de Santo Antônio de Lisboa, no norte de Florianópolis (SC). Desde o fim de dezembro, o endereço abriga a Livras: Mulheres e Livros, a primeira livraria feminista de Santa Catarina – e uma das primeiras lojas físicas dedicadas ao gênero (literalmente) no Brasil.
Além da Livras, há iniciativas como o movimento #LeiaMulheres, a digital Livraria Feminista e a paulistana Livraria Africanidades.
“Aqui”, diz a bióloga paulista Ligia Moreiras, 40, “você não vai encontrar manuais para criar crianças, livros que padronizam, culpabilizam ou agridem mulheres; você vai encontrar publicações que respeitam a diversidade de mentes, corpos e amores”.
“Aqui” é o segundo andar da casa azul – o térreo é ocupado pelo Atelier Santo de Casa, uma galeria colorida que reúne souvenires, peças de artesanato e azulejos ilustrados com o rosto de Frida Kahlo; ao lado, o endereço ainda abriga um bar tradicional e uma cervejaria artesanal.
Apaixonada pelo ateliê e habituée de Santo Antônio, Ligia conseguiu abrir a loja, com pouco dinheiro, já que a proprietária abriu as portas da casa. “Ela disse: ‘Quando vocês estiverem engrenadas, pensamos num valor justo para vocês e para nós. É minha forma de contribuir com a causa’. Esta é a ideia. Na verdade, nós não somos ‘livreiras’, embora tenhamos o registro certinho. Nosso negócio não é só vender livros – livro é um produto caro, não é acessível para todos. Nosso negócio é acolher autoras e leitoras”, define.
A experiência vem na contramão do mercado editorial, com a crise de grandes editoras e livrarias. Ligia, na verdade, vem construindo essas estantes há dez anos. Mestre em psicobiologia pela Universidade de São Paulo (USP) e doutora em farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ela dedicou 15 anos à formação acadêmica, almejando uma carreira científica. Em 2009, após a defesa do doutorado, descobriu que estava grávida.
“Foi uma surpresa. E eu, cientista e curiosa, fui ‘estudar’ o assunto. Notei que as informações voltadas para mulheres grávidas e mães eram muito ruins: dados superficiais, cientificamente incorretos e atrelados ao mercado, empurrando enxovais ou reforçando o papel social da mulher como mãe. Era a época do boom de blogs sobre maternidade – e das primeiras discussões sobre violência obstétrica e parto humanizado. E decidi criar um diário anônimo para compartilhar descobertas e informações que levantei de investigações científicas. Assim nasceu o blog Cientista que virou mãe”, lembra.
Após o nascimento de sua filha, Ligia parou para repensar a vida. Antes, ela trabalhava na área de farmacologia, muitas vezes cercada pela indústria farmacêutica. Em 2011, decidiu recomeçar: inscreveu um projeto para um novo doutorado na UFSC, desta vez na saúde pública, onde ouviu mais de 1.200 relatos de mulheres sobre violência no parto.
Ligia publicou dois livros (Educar sem violência e Mulheres que viram mães) e, ao fim do segundo doutorado, viu o blog crescer e se tornar um site colaborativo sobre maternidade e feminismo com cerca de 40 colaboradoras, entre acadêmicas, jornalistas e produtoras independentes. Diante dos pedidos de indicação de livros, ela montou uma primeira livraria on-line, dentro do Cientista que virou mãe.
Em 2015, o site recebeu o Prêmio Social Good Brasil (SGB), que incentiva movimentos de tecnologia para impacto social. No encontro do SGB, a bióloga conheceu a publicitária paulista Mariana Pellicciari, 31, fundadora do estúdio Roupa Livre, que desenvolve apps, livros digitais e outras iniciativas para o consumo consciente na moda, como o Mapa da Mina.
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Radicada desde 2016 em Florianópolis, Mari foi voluntária na campanha simbólica da amiga ao cargo de deputada estadual pelo PSOL. “Ao lado de amigas feministas, decidi me lançar candidata para marcar posição: para mostrar que uma mulher, uma mãe comum, pode disputar espaço na política. Não gosto de política partidária, institucional, mas diante do contexto político de 2018, senti que era importante tentar”, lembra Ligia, que recebeu 5.030 votos e não foi eleita.
Durante a campanha, Ligia e Mari se aproximaram. Depois de outubro, Ligia decidiu abrir a livraria e convidou Mari para ajudá-la na empreitada. “O ano de 2019 será difícil. Sentimos que é preciso aumentar espaços de encontro para discutir assuntos que talvez sejam cada vez mais reprimidos, como o feminismo. Esta é a ideia da Livras”, diz Mari.
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Autoras famosas como Rebecca Solnit, Judith Butler e Chimamanda Ngozi Adichie dividem prateleiras improvisadas em caixotes coloridos com nomes novos como Manu Cunha e Angélica Kalil. À estrutura das estantes, Mari acrescentou outro pilar para a livraria: “um olhar através do consumo”, ela define. “Pensamos o negócio de uma forma diferente do mercado. Não é uma mega livraria ou ‘só’ um ponto de comércio, é outra história. Mais que vender livros, queremos distribuir conhecimento e articular encontros. Queremos que as pessoas frequentem a livraria para conhecer autoras independentes, para ler, para pensar – e para escrever.”
Na noite de 30 de janeiro, Mari coordenou o “Ninho de Escritoras”, uma oficina de escrita para mulheres. No dia seguinte, foi a anfitriã de benzedeiras de Florianópolis para a Roda de Bendizê, presentes no projeto Benze é bem dizer, da antropóloga Bruna Donato e da socióloga Tade-Ane de Amorim, que mapeou mulheres da cultura tradicional na ilha.
“Florianópolis tem uma cena feminista forte”, diz Ligia. “São muitas mulheres, de diferentes coletivos. Mulheres que precisam ser ouvidas e lidas. Agora, mais do que nunca.”
Dez livros para pensar o feminismo atual:
A pedido da Tpm, as criadoras da Livras listam suas indicações.
- Amora, de Natalia Borges Polesso
- Chora lombar, de Thaiz Leão
- Mulher, cultura e política, de Angela Davis
- O calibã e a bruxa, de Silvia Federici
- Os homens explicam tudo para mim, de Rebecca Solnit
- Outras meninas, de Manu Cunha
- Quem tem medo do feminismo negro?, de Djamila Ribeiro
- Sejamos todos feministas, de Chimamanda Ngozi Adichie
- Um buraco com meu nome, de Jarid Arraes
- Você é feminista e não sabe, de Angélica Kalil
Créditos
Imagem principal: Rodrigo Sicuro