Como encarar a própria imagem?

Em meio à era do Instagram, dos filtros e retoques digitais,
tentamos descobrir como fazer as pazes com a vida real

por Daniela Arrais em

Durante a adolescência, meu sonho era ter o nariz da Sandra Bullock. Sofria pedindo à minha tia de presente uma cirurgia plástica. Ela sempre negou. O tempo passou, continuo não gostando muito do meu nariz, mas até que aprendi a conviver com ele. Talvez se fosse adolescente hoje e tivesse acesso a tantos recursos tecnológicos para melhorar minhas selfies, continuasse querendo fazer a plástica, mas levaria à consulta com o médico meu próprio nariz moldado por filtros e aplicativos.

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É isso que tem acontecido com quem é acometido pela Dismorfia do Snapchat, termo que define o comportamento de jovens que recorrem a cirurgias para ficar parecidos com suas selfies: lábios mais cheios, olhos maiores, nariz mais fino. Se antes desejávamos as características das celebridades (a boca de Angelina Jolie ou o nariz arrebitado da Isis Valverde), agora optamos por nossas versões digitais turbinadas.

Joana de Vilhena Novaes, psicanalista - Crédito: Alex Batista

A tendência foi identificada por um grupo de pesquisadores da Universidade de Boston, no ano passado. “Vivemos em uma era de selfies editadas e padrões de beleza em constante evolução. O advento e a popularidade das mídias sociais baseadas em imagem colocaram o Photoshop e os filtros no arsenal de todos. Alguns toques no Snapchat podem dar à sua selfie uma coroa de flores ou orelhas de cachorro. Um pequeno ajuste no Facetune pode suavizar a pele e fazer com que os dentes pareçam mais brancos e os olhos e lábios, maiores. Um compartilhamento rápido no Instagram, e as curtidas e comentários começam a aparecer. Esses filtros e edições se tornaram a norma, alterando a percepção de beleza das pessoas em todo o mundo”, resume o estudo.

“Não somos lindos nem nos amamos o tempo todo. E tudo bem. É preciso conviver com a insatisfação.”
Julia Petit

Em outras palavras, a linha entre realidade e fantasia fica cada vez mais tênue. Os riscos são o aumento nos níveis de insatisfação e ansiedade, levando, em casos extremos, até a um distúrbio dismórfico corporal (quando há um foco obsessivo em um defeito físico que a pessoa acredita ter). Mas o que faz com que a gente queira cada vez mais se parecer com as versões editadas que postamos na internet?

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Um dos motivos é que, para camadas mais jovens, a distinção entre o digital e o analógico já não existe mais. Adolescentes hoje são nativos digitais, já nasceram desfrutando da conexão incessante.

“Um adolescente entende que ele é a máquina. Não tem distância entre ele e o app que vai aperfeiçoar sua imagem”, diz Joana de Vilhena Novaes, psicanalista que coordena o Núcleo de Estudos de Doenças da Beleza da PUC-RJ. Ela cita a pesquisadora argentina Paula Sibilia, que fala de um corpo pós-orgânico, em que o ego não está mais dentro de cada um, e sim na tela. “Esse tipo de dismorfia só vem comprovar isso. Se a tecnologia e todos os dispositivos que uso são apenas tão somente uma extensão minha, é natural que eu busque práticas corporais de inclusão. Cirurgia é uma delas. Quero, de alguma maneira, incorporar a mim algo que eu já vivo como meu.”

“Se você é negra, ele te clareia mais, afina o nariz, o que te deixa mais aceitável para a sociedade.”
Amanda Abreu

Para Joana, esse tipo de acontecimento é fruto da junção da sociedade do consumo à sociedade do espetáculo. A primeira cria um acesso muito facilitado aos dispositivos. A segunda reflete uma busca incessante pelo ideal. “Para que vou conviver com um defeito se tenho à disposição cada vez mais recursos acessíveis de aprimoramento da minha imagem? Não preciso ter incômodo com qualquer imperfeição, não preciso mais lidar com essas feiuras.”

Julia Petit, empresária - Crédito: Alex Batista

Julia Petit, criadora do site Petiscos, que tinha a beleza como um dos seus principais temas, e hoje está à frente da marca de produtos para pele Sallve, acompanha a tendência com preocupação. “Na China e no Japão, já existem aplicativos de realidade 
virtual em que você fala com outras pessoas como se tivesse a aparência dos filtros. A pessoa vive como outra, já não se reconhece como ela é.” Nas pesquisas para sua marca, um pedido surpreendeu a equipe: produtos que deixem a pele sem poros. “Querem que eles sumam. É reflexo do efeito blur [de borrão] dos apps, querem essa textura na vida real. E nunca vão ter. A gente tem poros, da mesma forma que tem nariz.”

Para Julia, entender qualquer mudança estética como consumo é perigoso. “Agora está na moda ter a aparência das Kardashians. Você coloca mais boca, mas depois quer menos, como se estivesse comprando uma bolsa. Por que modificar tanto seu rosto, que é sua identidade primordial?”, questiona, mas também ressalta a liberdade de cada um. “As pessoas se observam demais. Talvez faça mal a gente se analisar tanto, se comparar tanto.”

“Um adolescente entende que ele é a máquina. Não tem distância entre ele e o app que vai aperfeiçoar sua imagem”
Joana de Vilhena Novaes

Nunca tivemos tanto acesso a imagens como hoje em dia. Estima-se que sejam publicados 100 milhões de fotos e vídeos no Instagram diariamente. Também acumulamos centenas de fotos de nós mesmas no celular. Até postar a selfie perfeita, não duvido que você tenha feito umas 50 tentativas, certo?

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“Acho que tem uma diferença entre se olhar no espelho por alguns instantes e ficar se vendo em fotos”, diz Vânia Goy, jornalista especialista em beleza e criadora do site Belezinha. “Mesmo quando a gente colecionava os nossos cliques digitais ou impressos e era supercrítica com a imagem, a gente não ficava fuçando nos arquivos o tempo todo, como agora, com o celular. As selfies e aplicativos focados em imagem aumentaram o nosso repertório visual e acabaram colocando a nota de corte do que é considerado perfeição lá no alto.”

Vânia Goy, jornalista - Crédito: Alex Batista

O fato de a manipulação de imagens estar ao alcance de todos contribui. “Sai da mão do profissional e coloca na mão de todo mundo o bisturi virtual. E você muda completamente o relacionamento com seus defeitos”, afirma Iza Dezon, especialista em macrotendências e parceira da agência Peclers Paris no Brasil. Ela lembra que, após uma queda no número de jovens que recorrem a plásticas nos últimos anos, esse índice voltou a crescer.

Da tela para a pele

Dados da AAFPRS (Associação norte-americana de cirurgia plástica facial e reconstrutiva) de 2017 apontam que 55% dos cirurgiões relataram ter visto pacientes solicitando procedimentos para “melhorar sua aparência em selfies”, um aumento de 13% em relação ao estudo anterior.

“Quando você testa esses filtros, eles te colocam em um padrão. Se você é negra, ele te clareia mais, afina o nariz, o que te deixa mais aceitável para a sociedade”, diz Amanda Abreu, publicitária e uma das fundadoras do projeto Indique uma Preta, rede de apoio, empregabilidade e desenvolvimento profissional para mulheres negras. Aos 28 anos, ela se sente confortável em seu corpo, mas, caso fosse adolescente, pensa que o impacto seria outro. “Iria querer ser mais clara, fazer plástica no meu nariz. A gente está vivendo um momento muito estranho. As pessoas não se perguntam por que não se aceitam”, diz ela, citando como a internet hoje se divide em dois espaços. “Um mais saudável, em que a gente começou a falar de libertação dos corpos, de autoimagem. E outro mais tóxico, de querer alcançar um padrão a todo custo. É isso que é beleza?”, questiona.

Amanda Abreu, publicitária - Crédito: Alex Batista

Para um problema da nossa época, o antídoto de sempre: consciência. Precisamos falar sobre beleza, autoaceitação, insatisfação, padrões inatingíveis. Precisamos pensar nessas tantas horas na internet e entender por que passamos tanto tempo olhando vidas perfeitas de outras pessoas. Instagram e Facebook, aliás, anunciaram que vão restringir para o público menor de 18 anos o alcance de posts sobre produtos e serviços relacionados a emagrecimento e cirurgias plásticas para fins estéticos. E, em outubro deste ano, o Instagram passou a remover os filtros que simulam cirurgias plásticas.

“Acho que tem uma diferença entre se olhar no espelho por alguns instantes e ficar se vendo em fotos.”
Vânia Goy

Iza aposta que vamos voltar a prestar mais atenção nessa juventude que está tão obcecada consigo mesma. “Estamos passando por um autoapaixonamento. A quantidade de reação que você tem quando posta uma selfie é exponencial. Precisamos entender como conversar sobre isso em casa, no trabalho, nas escolas.” Julia concorda: “A gente vem de um tempo da hiperautoestima, em que precisamos nos amar, nos achar lindas e maravilhosas o tempo todo, nos elogiar sempre. Isso criou um falso diálogo das pessoas com elas mesmas”, diz. “Não somos lindos nem nos amamos o tempo todo. Devíamos aprender a ter uma convivência pacífica, achar coisas que a gente ame em nós mesmas é suficiente. Tem outras que vamos detestar mesmo. E tudo bem. É preciso conviver com a insatisfação.”

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Outra estratégia é pensar no quanto estamos sendo impactados por imagens. “Reduzir o tempo que você passa olhando o Instagram, o Snapchat, as imagens que você manipulou”, completa. “Precisamos usá-los de maneira frugal, reduzindo o consumo de selfie e de imagens de outras pessoas.”

Amplificar o conceito de beleza é urgente. “Tem que ser algo mais amplo do que medidas corporais. Lembre que seu corpo é companheiro, não pode ser algoz. Precisamos fazer do corpo uma morada agradável, uma fonte de prazer, desenvolver uma relação de mais serenidade, brincar com ele”, diz Joana. E fazer um mergulho para dentro. Porque não tem efeito que dure mais do que fazer as pazes com nós mesmos.   

 

Daniela Arrais é jornalista e sócia da @contente.vc, estúdio de criação
que trabalha para promover uma vida digital mais atenta e consciente.

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