Grace Passô e a arte do impossível
Atriz, dramaturga e diretora, a mineira dirige peça sobre Itamar Assumpção, que estreia hoje e fala sobre fazer arte no Brasil
Para Nina Simone (1933-2003), cantora e musicista que se juntou à luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, nos anos 60, o dever do artista é refletir os tempos em que vive. É assim que Grace Passô encara seu ofício, seja no teatro, cinema ou literatura, linguagens que usa para jogar luz em questões urgentes: “É impossível não pensar nas mulheres e pessoas negras na contemporaneidade, nos povos em extinção, nas invenções e falácias sobre o que é o Brasil”, diz a mineira.
Ela dirige a peça Pretoperitamar – O caminho que vai dar aqui, que estreia hoje (28), baseada na obra de Itamar Assumpção (1949-2003), cantor que completaria 70 anos, em 2019. No elenco, nomes como Fabrício Boliveira, Iara Rennó, Negro Leo, Thalma de Freitas e Tulipa Ruiz ajudam a contar a história do cantor paulistano, considerado um precursor da música independente brasileira, segundo Anelis Assumpção, filha do cantor e idealizadora da peça, que também assina a direção geral e musical. Com dramaturgia de Grace e Ana Maria Gonçalves (autora do livro Um Defeito de Cor), a peça mergulha no universo afrofuturista construído pelo artista, reflete sobre negritude, resistência e as relações afetivas que foram importantes em sua trajetória.
Grace Passô, 39, tem uma carreira consolidada no teatro e passou a se destacar também no cinema, levando o prêmios importantes da área desde a emocionante atuação no longa Praça Paris (2018), que lhe rendeu o prêmio de melhor atriz no Festival do Rio, em 2017. Este ano, a Netflix disponibilizou dois filmes que contam com a atuação da mineira: Elon não acredita na morte (2016) e Temporada (2018), este último produzido pela Filmes de Plástico, que vem se destacando na cena audiovisual mineira e que também contou com a atriz no longa No Coração do mundo, lançado este semestre.
Em um papo com a Tpm, Grace Passô fala sobre a peça Pretoperitamar – O caminho que vai dar aqui (em cartaz no Sesc Pompeia, em São Paulo), a importância da obra de Itamar Assumpção, carreira e o papel do artista em tempos de crise.
Tpm. Como rolou o convite para dirigir a peça Pretoperitamar – O caminho que vai dar aqui?
Grace Passô. Esse é um projeto antigo da Anelis Assumpção, que me procurou no ano passado por conhecer meu trabalho com o teatro. Tem tudo a ver, porque os shows do Itamar eram verdadeiras obras teatrais. Ele ia muito além do intuito de fazer música.
Como você definiria a obra do Itamar Assumpção? A obra do Itamar é um manancial da arte. São muitas composições, poesias e performances inesquecíveis. Ele sempre teve um compromisso com a invenção. Para mim, ver e ouvir o Itamar é testemunhar um corpo em liberdade.
Como começou sua história com o teatro? Comecei com o teatro aos 14 anos. Depois de passar por algumas escolas, eu quis dirigir um trabalho cênico, então, comecei a escrever para conseguir colocar em cena o meu cotidiano, dos meus parceiros, da minha comunidade. É um desejo de aproximação radical com meu próprio universo, não quero que a arte que eu produzo esteja dissociada do lugar de onde venho, das minhas referências.
Então, a escrita e o teatro andam juntos. Eu tenho essa relação de escrever para a cena. Meu desejo passa muito por criar, conceber experiências artísticas. Com a dramaturgia teatral, eu me aproximei da literatura. Já escrevi crônicas para jornal, inclusive.
E como foi o salto dos palcos de teatro para o cinema? O primeiro trabalho que fiz foi o filme Elon não acredita na morte. Apesar de ter feito poucas cenas, isso despertou em mim um desejo profundo de entender mais sobre a maquinaria do cinema. O primeiro papel como protagonista foi com Praça Paris, dirigido pela Lúcia Murat. Tive que construir uma personagem com muitas modulações.
Em Temporada, você interpreta uma agente de saúde que visita a casa das pessoas em busca de focos de dengue. Como foi a construção dessa personagem? O filme é sobre um período de transformações profundas na vida de uma mulher, que é a Juliana. Ela tá mudando de cidade, de trabalho, revendo sua relação amorosa, suas amizades, se olhando de forma diferente. A interpretação foi inspirada no roteiro do André Novais Oliveira. Ela não fala muito, mas tá sempre ouvindo e vendo. É um estado sensível de observação.
Como você encara seu papel como artista? Sempre tive uma relação intencional de lidar com as urgências do tempo, dos assuntos que me tocam profundamente. É impossível não pensar nas mulheres e pessoas negras na contemporaneidade, nos povos em extinção, nas invenções e falácias sobre o que é o Brasil. É impossível que isso não afete a mim e ao meu trabalho.
O que o seu corpo em cena representa? O que nos resta enquanto sociedade é perceber as imposições históricas que existem sobre determinados corpos e reconfigurar essa condição. Ter um corpo não padronizado, que não aparece na mídia, em geral, é uma saga de reconhecimento. É reconhecer esse corpo como algo que detém a minha memória e lutar para que ele seja respeitado.
Por que a arte vem sendo tão atacada nos últimos tempos? O modo como estamos vivemos hoje, aliás, há muito tempo, está sendo escancarado. Existe uma profusão gigantesca de vozes que vêm trazendo novas perspectivas do que significa a nossa memória e nossa história. Isso cria uma tensão no ar. Arte é o que mobiliza, expande a sensibilidade, aquilo que nos lembra que existem coisas que ainda não existem e que podemos inventar.