Novas baianas
Duas garotas de Salvador se reencontram em São Paulo e criam a Caetana Filmes, uma produtora de vídeos em que usam a moda para refletir sobre o feminino e o feminismo, com uma linguagem 100% autoral
Duas meninas, uma câmera (recém comprada, até pouco ainda usavam uma emprestada), um kit de luz (usado apenas uma vez até hoje) e uma vontade: "Coisas femininas, que celebrem a cultura, a criatividade e a beleza em nós, com um pezinho na Bahia, super brasileira, tudo em português, nada de nome em inglês pra designar nada. E pensamos que podia ter um nome feminino, porque é isso a gente, mas um nome feminino antigo. Aí fomos no Google procurar nomes antigos", conta a estilista e fotógrafa Camila Fraga, 24, uma das metades da produtora independente de vídeos Caetana Filmes. "A Camila queria um bocado de coisa horrorosa, uns nomes bizarros, e eu ficava falando: não, pelo amor de deus" [risos], lembra Maria Spector, 26, a outra metade. A discordância acabou quando esbarraram em Caetana.
Da escolha do nome a começar a trabalhar foi um processo que se concretizou rapidamente. Em pouco mais de duas semanas, elas deixaram de ser duas amigas que tinham pensado em juntar suas formações em moda e cinema para criar vídeos e editoriais 100% autorais, para se tornarem duas amigas que convidaram várias outras meninas para protagonizar o primeiro vídeo que gravaram juntas, com o Minhocão como cenário. Desde então, filmam semanalmente. "Sobe um vídeo hoje (na página da Caetana no Facebook), segunda vamos subir outro", conta Maria.
As produções usam predominantemente a moda como ambiente, mas refletem, com uma linguagem delicada, sobre questões ligadas ao feminino e ao feminismo. "A maioria dos vídeos é ligado feminino, mas a gente gosta de mostrar um lado do feminino diferente do que geralmente a gente tem nos vídeos de moda, com aqueles cabelos voando... A maioria é de força e aceitação, porque é muito difícil você crescer mulher no Brasil", explicam.
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Poética e sem necessariamente explicitar opiniões literais ou narrativas agressivas, a abordagem da dupla ao falar sobre o feminismo - inevitável, como elas dizem - se deve a uma postura pessoal frente ao que observam. "Não foi algo necessariamente pensado de ser mais sensível. Nossa linha não é ser agressiva. É fazer a pessoa parar um pouco e pensar, sem ser muito direto, didático...", pensa Maria. Mesmo assim, ajuda com certeza alguns a vestirem suas carapuças. "Teve uma vez que a gente foi ver um trabalho para um cliente e ele disse que não queria trabalhar com a gente porque a gente era muito feminista", lembra Camila, que destaca a importância da moda para ajudar a romper com essa realidade. "Se a gente usasse a moda a favor das pessoas seria muito melhor. É uma ferramenta de empoderamento, de autoaceitação. É super importante, sem criar regras na moda", pensa.
Coração, desejo e sina
Elas se conheceram em Salvador, cidade natal de ambas, quando ainda cursavam publicidade, em 2011, e no mesmo ano fizeram um intercâmbio juntas, em Madrid. Porém, embora existisse já uma amizade desde os tempos de Bahia, elas perderam um pouco o contato depois que Maria se mudou para São Paulo, há quatro anos, e não imaginavam que o destino delas seria estarem tão juntas como estão hoje.
Camila só trocou a capital baiana pela paulista em 2016 - e só se reencontraram de verdade em janeiro deste ano. "A gente sempre se falava, eu não sei porque ficamos sem nos encontrar", lembra a estilista. "Agora a gente se vê quase todo dia", brinca Maria sobre o fato de elas morarem literalmente uma em cima da outra.
Em um prédio encostado na estação Marechal Deodoro do metrô, Maria mora no apartamento 102, no décimo andar, e Camila acaba de se mudar para o 112, um andar acima. "É ótimo, porque a gente trabalha num ritmo bizarro, às vezes é meia-noite e eu mando uma mensagem falando de uma ideia. E agora é só descer", brinca a nova moradora.
Caetanear, o que há de bom
Tudo aconteceu de modo muito rápido depois do reencontro. Em uma semana, elas já tinham página, logo, site e até cartão de visita, tudo antes de ter o primeiro vídeo pra postar. "A gente estava meio perdida, aí Camila sugeriu de unir a moda, que ela já conhecia, com o cinema. E foi um negócio muito rápido, muito louco. A gente começou a falar sobre o assunto em janeiro e abriu em fevereiro. Em duas semanas a gente já começou", conta Maria.
O ritmo é meio alucinado, mas as duas não se afirmam workaholics, se enxergam de modo mais idealista. Preferem lembrar que, quando decidiram criar a Caetana, era para poder trabalhar e se divertir, fazer algo que as duas gostassem e acreditassem. E é assim que se sentem. "Isso é foda. Eu sempre falo pras minas: 'abre uma empresa, abre uma empresa com a sua amiga, menina', porque ela vai entender o que você está pensando", diz Camila.
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E essa compreensão cria uma dinâmica interessante, bem natural, e um humor fraternal, daqueles de gargalhadas compartilhadas, em que uma imita a voz da outra ao lembrar de momentos que passaram. É muita sinergia - "fazemos tudo juntas", dizem. A única câmera que têm, elas dividem - Maria faz a captação de imagens e edição, Camila, as fotos, o roteiro e o conceito. E tudo com muita conversa. "Se eu tiver uma ideia e a Maria não concordar, eu vou tentar convencer ela até o fim, porque se eu não conseguir convencer é porque realmente está muito ruim", conta Camila. "Acho que o ponto é que a gente se respeita. Funciona. Uma diz 'eu pensei isso', aí outra diz 'será?'. A gente destrincha aquilo, pensa com carinho", conta Maria.
E se você pensou, quando leu que elas dividem uma mesma câmera para trabalhar, que elas ainda encaram dificuldades, que falta equipamento... Elas discordam. "Funciona bem assim", diz Camila, e Maria lembra de uma história recente: "Outro dia, ela foi experimentar uma câmera maravilhosa, super cara, e quando ela pegou na mão, falou 'eu quero a minha câmera, eu não quero essa' [risos] Como é que você tá rejeitando? 'Eu prefiro minha câmera'", conta rindo enquanto imita o jeito de falar da amiga, sócia e vizinha.
O sol e o dom
As duas assistem vídeos e mais vídeos, e curtas, e documentários, todo dia trocam informação. A busca atual é encontrar cada vez mais uma linguagem própria, que possam imprimir tanto nas produções de moda que marcam o trabalho da Caetana, como em séries documentais e clipes, áreas que pretendem explorar cada vez mais - além de seguir na missão de captar novos clientes. Hoje, trabalham com três marcas - todas independentes e todas de meninas, como elas -, além de um brechó e trabalhos para outras mídias, como a Vogue - "a gente mal tinha completado duas semanas de Caetana e rolou esse convite da revista".
No campo documental, elas estão no meio da produção de uma série com personagens da chamada "geração Z" e no fim do mês vão para Salvador para filmar um mini documentário sobre a cena artística independente baiana. "Há coisas muito legais que não vemos por aqui", contam.
E, no que depender de vontade, muito mais música deve pintar no portfólio da produtora. Nessa pegada, acabaram de lançar o vídeo de "Vambora", que marca a despedida de Rico Dalasam da turnê de seu primeiro álbum, Orgunga - e a estreia delas nesse segmento. "É algo que a gente adora, eu gosto muito de música", conta Camila. Outros clipes devem vir e, futuramente, desdobramentos da produtora. "A gente quer muito expandir a Caetana para outros meios. Vai ter texto em algum momento, textos maiores, podcast... Mas agora ainda é bem o começo".
Créditos
Imagem principal: Caetana Filmes/Divulgação