A mina do mano?
Eliane Dias é muito mais que isso: musa, sócia e mãe dos dois filhos de Mano Brown, ela comanda a Boogie Naipe, produtora responsável pelo Racionais MC’s
Em Cores & valores, disco que o Racionais MC’s lançou com estardalhaço no ano passado, há uma balada romântica chamada "Eu te proponho", na qual Mano Brown canta: "Baby, eu te proponho meu jardim secreto, a casa do meu sonho/ Matriz do meu lugar, onde você poderia nadar/ Sem lenda, sem fenda, eu tentei te levar/ Vamos fugir desse lugar". A canção é dedicada a Eliane Dias, companheira de Brown há 27 anos. "Quando escreveu essa música, há sete anos, ele queria que a gente se mudasse para Curitiba. Me mostrou as fotos de um terreno lindo, todo verde, com uma casa de tijolinho. Mas era num bairro perigoso e eu disse que não ia de jeito nenhum", conta a musa do rapper. A vontade dela prevaleceu e o casal permaneceu no apartamento de classe média na Estrada de Itapecerica, zona sul de São Paulo, onde eles moram com os filhos, Jorge, 19 anos, e Domenica, 16.
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Eliane impressiona pela beleza, pelo discurso articulado e pelo jeito forte e determinado que a levou longe na vida. Sua trajetória é digna de novela das 9, tendo como cenário uma das regiões mais pobres e violentas da periferia paulistana: o Capão Redondo. A mãe, uma empregada doméstica, foi expulsa de casa quando engravidou de Eliane. A avó não aceitou a gravidez. O pai não quis assumir a criança. Mãe e filha chegaram a morar na rua, quando foram resgatadas por uma tia.
Aos 9 anos, a menina começou a trabalhar, aos 12, cuidava do irmão mais novo e, aos 14, foi doméstica na casa de uma psicóloga que era a namorada do cantor Toquinho. Foi ali que percebeu que sua vida poderia ser diferente. "Minha patroa, a Maria Alice, era maravilhosa. Andava nua pela casa. Lá só tinha arroz e Coca-Cola. Ela me estimulava a ler os livros, ouvir os discos do Caetano Veloso e do Chico Buarque. Com ela aprendi que a mulher pode ser livre e fazer o que quiser", conta.
Eliane conheceu Pedro Paulo – como ela chama o líder do mais importante grupo de rap do Brasil – por meio do primo, Ice Blue, amigo e parceiro musical de Brown. Na época, ainda era o Paulinho, office boy que entregava as roupas de uma alfaiataria. Ambos tinham 18 anos. O que nos leva a concluir que, como ele, ela tem 45 anos. "Não vou falar a minha idade, mas tenho mais de 40 anos", tenta despistar. Eliane cuidou do marido e dos filhos, prestou vestibular para direito, virou advogada, foi assessora parlamentar, atuou na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e recebeu convite para ser suplente na chapa de Eduardo Suplicy ao Senado nas eleições de 2014 – ela recusou. Tudo isso longe dos holofotes. Pelo menos até agora. "Não gosto de aparecer. Não quero ser celebridade, nem subcelebridade", diz.
"Dizem que o dinheiro move o mundo, mas é a TPM. Porque a mulher com TPM muda de casa, entrega o marido corrupto"
Em 2012, a advogada assumiu o comando da Boogie Naipe, produtora que cuida da carreira do Racionais, por sugestão da empresária Paula Lavigne, que conheceu numa luta de UFC. Sob sua direção, a Boogie Naipe profissionalizou a gestão do Racionais. O grupo lançou disco novo – Cores & valores –, fez turnê pelo país comemorando os 25 anos de carreira e passou a se apresentar nas melhores casas de shows. Eliane criou site novo para o grupo, organizou as redes sociais, lançou um canal no YouTube e o Racionais responde, onde Mano Brown, Ice Blue, KL Jay e Edi Rock respondem às perguntas dos fãs. Foi dela também a iniciativa de colocar mulheres cantoras e DJs para abrir os shows dos quatro artistas – numa cena, como é a do rap, frequentemente acusada de machismo.
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Paralelamente ao trabalho na produtora, Eliane é coordenadora do SOS Racismo, grupo dentro da Assembleia Legislativa de São Paulo responsável por cuidar dos assuntos relacionados aos negros. Ela recebe denúncias de racismo, acompanha os processos e dá visibilidade às pautas. "É uma porta aberta para o negro na Assembleia Legislativa, que é majoritariamente branca", explica. Na produtora no Capão Redondo, a primeira dama do rap nacional recebeu a Tpm. Depois nos levou à Casa Azul, quartel-general de Brown na favela da Godoy, onde fica seu estúdio, e a um centro para mulheres que oferece apoio às vítimas de violência doméstica, onde daria uma palestra. Por onde passa, é cumprimentada com respeito por moradores e líderes comunitários. "Aqui na quebrada, todo mundo me conhece."
Tpm. Em 2002, você quis trabalhar com o Racionais e eles não aceitaram. Eles são muito machistas?
Eliane Dias. Eles são 50% machistas, mas melhoraram, antes eram 100%. O Brasil é um país machista, então é difícil o homem ter um comportamento diferente.
Como você venceu a resistência deles? Em 2012, a Paula Lavigne [ex-mulher e empresária de Caetano Veloso] quis trabalhar com o Racionais, mas o Racionais é muito difícil de trabalhar. Então ela chamou os quatro e falou: "Olha, precisa organizar, isso aqui tá muito desorganizado. Vocês precisam de alguém que cuide de vocês", e apontou para mim. Eu resisti um pouco porque já estava em outra.
O que você fazia nessa época? Era assessora parlamentar da Leci Brandão [cantora e deputada estadual pelo PC do B] e tinha um escritório de advocacia. Fiquei pensando por uns dois meses. Aí resolvi encarar o desafio, eu gosto de uma boa briga.
Como foi a reação deles? Dessa vez, eles aceitaram de boa. Mas foram taxativos: "Não vamos pagar o que o pessoal paga por aí, primeiro você vai ter que provar que é boa". Olha como eles são, você acredita? Até hoje eles não me pagam o que eu mereço.
A Boogie Naipe é comandada por mulheres. São as mulheres que mandam nos "quatro pretos mais perigosos do Brasil"? Na verdade, a Boogie Naipe é uma sociedade minha com o Brown, então tudo o que acontece ali é de minha responsabilidade e dele. Depois tem a Meire, que trabalha com o Racionais há 18 anos e vende os shows; a Vanessa, do financeiro; a Ana Paula, da comunicação; e a Eduarda, da recepção. É só mulher! Dizem que o dinheiro move o mundo, mas pra mim é a TPM. Porque a mulher com TPM muda a casa, termina o casamento, resolve engravidar, muda de emprego, entrega o marido político corrupto. É ela quem faz o mundo girar.
Como você conseguiu convencer os quatro de colocar mulheres – cantoras e DJs – pra abrir os shows deles? Eu não pedi autorização, eu coloquei. Se você pede, a resposta é não.
Arquivo pessoal
Eles não queriam? De jeito nenhum. O Brown falou: "Ô, Eliane, para de dar esperança para essas meninas". Eu falei: "Você larga de ser machista, vou colocar, sim!". Ele retrucou: "Ah, mas isso aí não vira". Eu falei: "Se não vira não é problema meu, a minha questão é a inclusão social. Eu tenho a obrigação de colocar as mulheres no palco e dar visibilidade a elas".
Como você conheceu o Brown? O Blue, meu primo, me apresentou. Ele não era o Brown ainda, era só o Paulinho, office boy, e eu não dava bola pra ele. Num sábado o Blue levou o Brown na minha casa, a gente conversou, mas não fiquei com ele. Aí fomos a um casamento. Um cara lá pegou meu telefone e anotou o número dele. O Brown pegou o papel da minha mão, rasgou e me colocou nas costas, igual um homem das cavernas. E falou: "Só vou te colocar no chão quando você falar comigo". Aí pronto: a gente começou a falar, se beijou e estamos juntos até hoje. Os dois tinham 18 anos.
"O Brown me colocou nas costas, igual a um homem das cavernas, e falou: 'Só vou colocar no chão quando você falar comigo'"
Ele conta que estava com um pé no crime e outro fora quando te conheceu. Você tirou o Brown do crime? Tirei. O pessoal saía muito pra roubar relógio Rolex. Lembro uma vez que a gente estava indo pro Carioca Club, em Pinheiros, e ele falou: "Eliane, vai indo na frente que daqui a pouco eu te encontro". Eu falei: "Não vou, não". Ele estava com um amigo, o Dilmar. O Dilmar foi roubar um Rolex na Faria Lima e foi preso. Saiu da prisão, voltou e acabou morto na penitenciária. Teve outra vez que o Brown ganhou um revólver de presente de outro amigo. Eu fiz ele devolver. O tempo todo a gente é convidado a fazer coisa que não presta. Mas eu não admito. Sou certinha, nunca tomei uma cerveja.
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Nunca? Nunca, nem whisky. Champanhe e vinho eu já tomei, mas não gosto nem de bebida nem de droga.
Você nunca fumou um baseado? Sou careta de tudo, nunca tive curiosidade. Meu pai é alcoólatra, então tenho no meu DNA essa propensão, não vale a pena arriscar. E não acho legal droga, não me seduz.
O Brown é mais liberal em relação a isso, né? É artista, né?
Vocês brigam por causa disso? Não, mas na minha casa não pode. E aqui na produtora ninguém bebe e ninguém fuma. Acho que é por isso que ninguém gosta de vir pra cá [risos].
Ele tem o canto dele, que é a Casa Azul. Lá ele manda? Lá ele toca o puteiro, faz o que bem entender [risos]!
É um acordo entre vocês: cada um tem o seu espaço? É. A repressão é péssima. A gente tem que se adaptar, cada um faz o que quiser desde que não ultrapasse o espaço do outro. Acho legal que as pessoas sejam livres. A mulher tem que ser livre: se ela quiser sair com mulher, ela pode; se ela quiser fazer aborto, também pode; se quiser sair com dois ou três homens, não tem problema nenhum.
Você é a favor do amor livre? Totalmente. Sou a favor de tudo. Eu não reprimo ninguém.
Como você educa os seus filhos? É liberal? Quando o Jorge começou a crescer, coloquei ele sentado na frente do computador e falei: "Olha, isso aqui é uma vagina com gonorreia, isso aqui é HPV". Depois o levei na Cracolândia e falei: "Olha, tem gente que fuma maconha e não acontece nada e tem gente que vem parar aqui". E falei: "Meu amor por você é incondicional. Se você colocar um salto alto e sair com a boca pintada de vermelho, batendo a bunda de um lado pro outro, eu te amo de qualquer maneira". E a minha filha, Domenica, também. Se ela quiser casar com uma menina, ela vai casar e eu vou continuar amando.
O Brown tem essa abertura também? Olha, ele tá bem treinado [risos]. Ele teve que entender isso. Os meus filhos até o momento são héteros, mas, se eles não fossem, ele teria que aceitar.
Como você encara a fidelidade no casamento? Acho que a fidelidade não é o topo da lista de uma relação, ela nunca foi, é utopia. As pessoas falam: "Meu marido é fiel". É até você procurar [risos]. Porque, na hora que você procura, acha. E o Brasil é machista, a mulher não tem a mesma liberdade do homem. A mulher não pode sair, ir na balada, ter um affair com um cara, tomar banho e voltar pra casa. Eu vi uma pesquisa que diz que, se as coisas continuarem andando do jeito que estão, as mulheres só estarão se igualando aos homens em 2095. Não vou ver isso.
"O Brasil é machista, a mulher não tem a mesma liberdade do homem. Não pode ter um affair, tomar um banho e voltar pra casa"
Você e o Brown estão juntos há muito tempo. Já se separaram, tiveram momentos de crise? Separar ainda não separou. Mas a gente tem uns pega pra capar feio [risos]. A gente nunca saiu no tapa, eu nunca bati nele e ele nunca bateu em mim, mas, quando a gente discute, é feio. Pensa num vulcão explodindo. Mas ir cada um pro seu canto, isso nunca aconteceu. Nós somos muito diferentes, eu sou uma pessoa que respeita a lei, ele odeia até o farol vermelho. A gente briga, discute, mas depois entra num consenso. Quando eu estou falando com as crianças, é proibido ele interferir e vice-versa. As nossas discussões muitas vezes são por conta disso.
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Por causa da educação dos filhos? Ou é por conta de filho ou é por conta de dinheiro. Ele não sabe falar de dinheiro. O homem tem um escorpião na alma.
Como foi a história da gravação do clipe do "Umbabarauma" do Brown com o Jorge Ben Jor para a campanha da Nike? Ele não queria receber dinheiro da Nike? Ele recebeu, mas pegou o dinheiro e comprou a Casa Azul, lá na comunidade. Eu discuti com ele três meses por causa disso. Ele falou assim: "Eu vou receber o dinheiro, mas esse dinheiro volta pra comunidade". Ele poderia dar 50% pra comunidade e 50% pra mim, para eu reformar a nossa casa, mas ele não me deu um real. Comprou a Casa Azul por R$ 90 mil. Não sei o que fez com a outra parte.
Como está a ideia de fazer um documentário sobre o Racionais? Todos os dias eu recebo uma solicitação de um documentário, de um livro, de uma novela. Mas falar sobre o Racionais sem ter o Racionais por trás não vai ser bom, não vai ser verdadeiro, não vai ser fiel. Fazer um documentário sem a anuência e a colaboração do Racionais não vai prestar. Tem muita particularidade deles.
Arquivo pessoal
Eles não têm vontade de fazer um documentário sobre eles? Estamos fazendo, mas ainda está bem no começo dos trabalhos. Não tem nem diretor ainda.
Seus dois filhos fizeram o filme Na quebrada, do Fernando Grostein, lançado no ano passado. Como foi o convite? Eu conheci o diretor do filme, o Fernando Grostein, na casa do Ronaldo Fenômeno. Eu conhecia a ex-mulher dele e ela me convidou pro aniversário dele. Ali conheci o Fernando, deixei meu telefone porque ele estava fazendo um documentário e precisava da autorização de uma música. Quando começou a fazer o Na quebrada, ele estava procurando jovens e eu tinha falado que a Domenica é atriz. Ele lembrou e falou que ia fazer uma seleção na região. Aí mandei meu filho e minha filha.
Como é a personalidade deles? Parecem mais com você ou com o Brown? A Domenica é o Mano Brown de saia. Igualzinha, teimosa, o mesmo signo, Touro. É determinada, focada, faz só o que quer. E é muito inteligente. Já o Jorge é mais introspectivo. Ele poderia ser mais persistente, ela começa e vai do início ao fim, ele muda de ideia no caminho. Ele tem a cara do pai, mas tem a minha personalidade.
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Como é a vida em família de vocês? Os quatro têm vida própria e fazem muitas coisas ao mesmo tempo. A Domenica faz teatro, cinema, estuda inglês e está no colegial. Vai pra academia e faz slackline. O Jorge estuda cinema, trabalha como produtor do Racionais e tem a marca de roupas e acessórios dele, a Müe. E o Pedro Paulo é o Mano Brown. Então é difícil juntar todo mundo, quando a gente se encontra é uma festa.
Vocês viajam juntos? Só no final do ano. A gente tem alugado casa no litoral norte. Mas nós quatro temos vidas próprias e fazemos as nossas coisas individualmente. Agora você imagina os quatro juntos como que é. Cada um quer fazer uma coisa diferente.
Alguém surfa? Surfa nada. As crianças sabem nadar porque eu coloquei pra aprender. Sabe por quê? Lembra do tsunami em 2004? Uma mãe falou que, na hora em que chegou a onda gigante, ela teve que escolher qual filho ia salvar. Aquilo me deu uma tristeza tão grande porque eu jamais conseguiria escolher um filho e abandonar o outro. Aí coloquei os dois na natação. Também coloquei pra fazer defesa pessoal. O Jorge faz muay thai e a Domenica é faixa marrom em caratê.
Você dá uma supereducação pros seus filhos. Meu amor, eu acordava as crianças e colocava pra ver noticiário na TV às 6 da manhã, ó o trauma delas! Eu eduquei, sim. Chamei essa responsabilidade pra mim. E meus filhos nunca apanharam do pai, nunca levaram um tapa, em casa só pode conversar. O meu filho abre a porta do carro porque foi educado por mim. Ele paga conta, carrega bolsa, vai buscar na porta de casa. Minha filha me liga às 2 da manhã e diz: "Mãe, vem me buscar". Saio da cama quebrada e vou buscar. Faço com prazer, dou a eles tudo o que não tive.
Como foi a sua infância? Você sempre morou no Capão Redondo? Nossa, morei em tanto lugar! Eu nasci em São Paulo. Quando minha mãe ficou grávida, foi pra Campinas atrás do meu pai e ele não quis ficar com ela. Minha avó expulsou minha mãe de casa. Não sei muito bem o que aconteceu, só sei que ela acabou indo morar na rua comigo por quase um ano. Aí minha tia Lurdes, que é a mãe do Ice Blue, levou a gente para o trabalho dela. A gente ficava no fundo da casa, escondida. Minha mãe trabalhava fora e eu e meus irmãos morávamos nas casas de outras pessoas. Minha família só foi ter casa quando eu já tinha 9 anos.
"Minha mãe era empregada do Vinicius de Moraes. Ele ficava cantando, fazendo música, bebia pra cacete, fumava demais"
Você conheceu seu pai? Não. Quando engravidei do Jorge, fiquei com vontade de conhecer meu pai. Aí o Pedro Paulo me levou para Campinas, tinha uma irmã dele lá. Ela me falou o nome dele, José Arnaldo da Silva, e me deu o telefone. Ele foi um dos melhores alfaiates da cidade, mas é alcoólatra e perdeu a alfaiataria. Foi morar em Goiânia, num quartinho no fundo de um bar. Estava separado da mulher havia dez anos, com três filhos. Quando liguei, ele perguntou: "A minha família sabe de você?". Falei: "Não". Ele respondeu: "Então vamos deixar assim, não quero que ninguém saiba". Graças a Deus não fui educada por ele, porque era um covarde! Nunca mais falei com ele, não sei se está vivo ou se está morto.
Como foi a época em que você trabalhou como empregada da namorada do Toquinho? A Maria Alice era boa pra caramba. Era psicóloga, cuidava de crianças com síndrome de Down. Morava sozinha na casa dela, então aprendi que mulher pode ser sozinha e se virar. Foi ali que eu me apaixonei pelo Caetano Veloso – sou apaixonada por ele até hoje. Ela me deixava ouvir os discos dele, do Chico Buarque. Tinha um escritório com vários livros e me estimulava a ler. Era um apartamento na rua José Maria Lisboa, nos Jardins.
Como você a conheceu? Minha mãe era empregada do Vinicius de Moraes, quando ele morou em São Paulo. Ela levava a minha irmã e eu para lá. Vinicius ficava cantando, fazendo música. Ele bebia pra cacete e fumava demais. A gente ouvia Vinicius de Moraes, Toquinho, Belchior. Era gostoso pra caramba, imagina, eu ouvia Vinicius de Moraes ao vivo! A Maria Alice era namorada do Toquinho.
Ela adotou você. É, mas eu não trabalhei muito tempo com ela. Eu voei, aprendi que podia voar porque até então o que eu via era a submissão total da mulher.
Quando você decidiu estudar direito e virar advogada? Eu nunca quis ser outra coisa na vida. Com 9 anos, achei no lixo um exemplar do livro Quarto de despejo, de Carolina de Jesus. A Carolina era uma escritora negra, catadora de papel. Ela escreveu e bancou esse livro. Ele tá guardado comigo até hoje. Eu gostava muito de ler dicionário [risos]. Criança é maluca, né? E me falaram que advogado entendia tudo de livros, então fiquei com aquilo na cabeça.
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Mas você só entrou na universidade depois que seus filhos nasceram. Como foi? Resolvi estudar porque uma vez o Mano Brown me chamou pra ir pra Alemanha e pros Estados Unidos, ele tinha ganhado umas passagens. Tirei o passaporte e, depois de tudo pronto, ele falou: "Você não vai mais". Eu respondi: "Como assim?". Ele disse: "O primo disse que só vai homem e é melhor você não ir". Aí ele viajou e eu fiquei em São Paulo cuidando dos filhos, da mãe dele e indo pra academia. Era malhadérrima, malhei dez anos seguidos. Quando ele voltou, eu tinha me matriculado no cursinho do Núcleo de Consciência Negra, na USP, e falei: "Agora vou estudar e ganhar o meu dinheiro pra poder ir aonde eu quiser".
Qual foi a reação dele? Ele falou: "Como assim, Eliane? Não estuda, não, fica em casa, você tá super bem". Porque pra ele tava tudo bem, né? Eu linda e maravilhosa, malhada, esperando ele em casa. Não botou uma fé. Quando eu passei no exame da OAB, ele chegou com um buquê de flores e falou: "Agora fodeu, né?" [risos].
Quando você conseguiu independência financeira? Quando me formei, fui trabalhar num escritório na Praça da Sé. Lá comecei a ganhar dinheiro, ganhei dinheiro pra cacete, mas meu filho Jorge começou a me dar trabalho. Ele tava no primeiro colegial. Saía da escola e ia com uma molecada pro Rodoanel, sentindo Embu-Guaçu. Eu ligava pra ele às 6 da tarde e não tinha chegado em casa. Aí eu pedi a conta do trabalho pra tomar conta do meu filho.
O que ele ia fazer no Rodoanel? Ah, quem sabe, né? Ele sofre a maior pressão por ser filho do Brown. As pessoas chamam pra fazer coisa certa e pra fazer coisa errada. Elas desafiam. Eu tinha ralado pra caramba pra estudar, tinha conseguido um trabalho que me dava mó grana e tive que sair. Eu falava: "Pedro Paulo, me ajuda com o Jorge", e ele falava assim: "Eu não tive pai, eu não sei ser pai". Mas sabia de uma coisa: eu sei ser mãe e não ia perder meu filho. Eu pegava o Jorge, abraçava e chorava, porque foram sete anos de estudo pra conseguir passar no exame da OAB e tava ganhando uma grana. Mas não teve jeito.
Você é uma liderança na sua região. Já pensou em seguir carreira politica? Eu não penso, não. O pessoal tem até planos pra mim, mas não quero.
Já recebeu convite? Já. Ano passado fui convidada para ser suplente do senador Suplicy na chapa dele para o Senado. Mas não topei. Se a gente ganhasse, ia ter que mudar toda a minha vida. Não ia conseguir tocar a produtora e ser suplente do Suplicy. Eles tinham um projeto, que era eu sair de suplente e, ele ganhando, ele se afastaria por pelo menos seis meses para eu ter uma visibilidade.
Como foi seu trabalho de assessora parlamentar da Leci Brandão? Fiquei cinco anos com ela, da campanha eleitoral até agora, em abril. Mas a liderança que toma conta do gabinete dela são todos homens e eu não tinha autonomia para fazer coisas. Foi um dos motivos pelos quais eu quis sair. Mas a Leci é maravilhosa, não tenho o que reclamar dela. É muito honesta. Hoje sou coordenadora do SOS Racismo, grupo que cuida de todos os assuntos relacionados aos negros dentro da Assembleia Legislativa. Tenho uma sala com quatro pessoas trabalhando comigo lá.
Você pode sugerir leis? Não posso apresentar nenhuma lei, mas se a pessoa tiver alguma proposta eu posso entregar para um deputado ou indicar um deputado que possa apresentar a proposta.
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Como é sua rotina de trabalho? Meu expediente é de segunda a quinta, das 2 da tarde às 8. Mas sair de lá às 8 da noite é raro. Ontem saí umas 9h50, às vezes a gente fica até as 2 da manhã. A gente tem muito trabalho fora pra fazer, você tem que levar a Assembleia aonde você vai. Agora mesmo eu vou como representante do SOS Racismo a esse encontro num grupo em Campo Limpo que dá apoio a mulheres que sofrem violência doméstica.
Qual a sua opinião sobre as manifestações pelo impeachment da presidente Dilma? Acho uma afronta à democracia. Essa "ditadura" que está sendo imposta pra gente é um perigo. Quer dizer que, se meu partido perdeu, então vai ter votação de novo? E é um machismo absurdo. A Dilma é a presidente que mais apanhou, nem o Collor sofreu tanta perseguição. Fiz questão de ir ao ato de apoio ao governo no Instituto Lula.
Arquivo pessoal
Qual é o peso de ser a mulher do Mano Brown? Um peso enorme. Portas se abrem, portes se fecham. As pessoas me batem muito, me usam muito, se aproximam de mim pra poder chegar no Brown, então sou esse canal. Fiquei mais de 20 anos desconhecida porque nunca quis ser chamada de mulher do Mano Brown, mas não tem jeito, mulher do Brown é mulher do Brown.
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Existe preconceito? Existe. Teve pessoas que foram na Assembleia Legislativa e falaram assim: "Você é a mulher do Brown? Eu vim aqui só pra te conhecer. Mas você é completamente diferente do que eu pensava, achei que você usasse roupa larga, fosse toda cheia de tatuagem". Porque na Assembleia eu trabalho de salto e roupa social. E as pessoas falam: "Você é muito diferente do que imaginava, você não fala gíria". Eu nunca falei.
Você não é vida loka... Sou vida loka porque tendo que encarar o Mano Brown e o Racionais só sendo vida loka. Você pensa que é fácil ser mulher num lugar desse? Não é fácil, não. É encrenca pura, tem que ser muito macho pra viver aqui. A gente enfrenta machismo, as mães perdem seus filhos pro crime, pra bala, pra droga. Você vê as meninas com 12 anos engravidando. E a violência? Pelo amor de Deus, gente. As minhas sobrinhas, quando vão casar, eu converso com os caras e falo: "Se encostar a mão na minha sobrinha vai se ver comigo". Eu vou pra cima mesmo.
"Sou de briga, fui criada sozinha. Eu sei matar uma pessoa com uma caneta Bic. Mas tem que estar com a tampinha"
Como você lida com o assédio das mulheres em cima do seu marido? Ele é assediado 24 horas por dia. Em qualquer rede social, pessoalmente, lá na Casa Azul, em qualquer festa que ele chega, se tiver cem mulheres, 99 querem sair com ele.
E você não fica puta? No começo pensava muito sobre isso, depois vi que não tinha muito o que fazer. Ou ele ia ser infeliz, ia ser, sei lá, motorista... bom, motorista também é assediado [risos]. Qualquer um é assediado...
Mas alguém famoso naturalmente é mais assediado. É, mas ou ele ia ser infeliz fazendo uma coisa que não queria ou eu ia ser infeliz se eu ficasse me preocupando com isso, ou a gente ia ter que separar e ir cada um pro seu lado. No fundo, isso não me incomoda muito, me incomoda quando a mulher não está assediando ele e sim me provocando.
Você já saiu no tapa com alguma mulher? Não. E nem preciso. Eu falo pouco, na festa eu só olho, porque ninguém é louco de me atravessar. Só uma vez quando ele estava começando a cantar, aqui no Taboão, e uma mulher abraçava ele e falava: "Brown, eu te amo". Uma vez beleza, quando foi na terceira eu peguei no cabelo dela e falei: "Você tá me tirando. Você quer aparecer? Vou te deixar pelada", e rasguei a blusa dela.
E o Brown não fez nada? Ele ficou olhando, aí um cara que trabalhava com eles falou: "Vambora". Porque eu sou de briga, fui criada sozinha, sem pai, sem porra nenhuma. Sei matar uma pessoa com uma caneta Bic. Se eu saio na rua com uma caneta Bic no cabelo, eu saio com uma arma.
Você já matou alguém? Nunca matei ninguém, mas eu sei. E tem que tá com a tampinha, sem a tampinha você não consegue [risos]. Tive que aprender. Saio de carro sozinha, saio de manhã, de tarde, de noite e de madrugada na quebrada.
E ninguém vai se meter a besta com você. Ninguém. É o que te falei: sou vida loka porque tive que aprender a viver nesse mundo louco que a vida me colocou. Mas espero nunca ter que usar a caneta Bic [risos].