Cristiane: lugar de mãe é (também) no futebol
Maior artilheira do futebol olímpico, a jogadora fala sobre preconceito, maternidade e a frustração em não ter sido convocada para os Jogos de Tóquio
Quando parou de competir porque não existiam torneios de futebol para meninas, quando jogava sem nenhuma remuneração ou mesmo quando a grana era curta até para comprar as chuteiras, Cristiane Rozeira sempre acreditou que as coisas iam mudar. “Eu tinha na cabeça: ‘Uma hora vai dar certo. Alguém vai me olhar, vou conseguir realizar meus sonhos’”. E ainda bem que ela confiou nesse instinto.
Depois de passar por times nacionais e internacionais, Cris se tornou uma das mais importantes jogadoras de futebol no Brasil. Com a Seleção Brasileira de Futebol Feminino, conquistou duas medalhas de ouro no Pan-Americano e duas de prata nos Jogos Olímpicos, em 2004 e 2008. É ela, inclusive, a maior artilheira do futebol em Olimpíadas, entre homens e mulheres, com a marca de 14 gols.
A maior visibilidade pelo público e a conquista de patrocinadores demorou um pouco mais para chegar. Foi em 2019, quando os jogos da Copa do Mundo Feminina de Futebol foram transmitidos pela primeira vez na televisão aberta, que todos os olhos se voltaram para as atletas. “A maneira como a gente jogou, como a gente se impôs, diminuiu o preconceito que envolvia o futebol feminino. As pessoas viram que não eram só meninas jogando, existia ali vontade, prazer, talento”, diz.
Depois de participar de todas as edições das Olimpíadas desde 2004, Cris não foi convocada para os Jogos disputados em Tóquio, onde a equipe comandada pela treinadora sueca Pia Sundhage foi eliminada nas quartas de final. A jogadora lamenta ter ficado de fora este ano: "Me deixou bastante chateada a maneira como foi, porque eu sabia que tinha condições de compor o grupo, tinha experiência pra isso".
Hoje jogando na equipe do Santos, Cris divide seu tempo entre os treinos e os cuidados com Bento, fruto de seu relacionamento com a advogada Ana Paula Garcia. Em agosto de 2020, elas se casaram em uma cerimônia intimista em Ilhabela, litoral norte de São Paulo, e logo em seguida decidiram realizar o sonho de se tornar mães. A partir de um óvulo de Cris, Ana gestou Bento, hoje com três meses.
No papo com a Tpm, Cristiane fala sobre a maternidade, a situação do futebol feminino no Brasil e a importância da discussão sobre a saúde mental dos atletas: "As pessoas não têm a sensibilidade de pensar que nós que estamos competindo somos seres humanos com sentimentos, com problemas pessoais".
Tpm. Você nasceu em Osasco, na Grande São Paulo. Como foi sua infância?
Cristiane Rozeira. Eu morava em uma casa muito simples com meu pai, minha mãe e meus dois irmãos. Eram várias casinhas no quintal da minha avó e a nossa tinha dois cômodos, bem apertadinha. Minha mãe era empregada doméstica e meu pai era caminhoneiro. Tinha muito amor, mas eu não vivi o glamour da infância, digamos assim. Graças a Deus meus pais nunca deixaram a gente passar fome, mas era o básico e o simples, sempre. Seja o chinelo que estourou e meu pai colocou um prego ou o único tênis que tive durante muito tempo para usar para tudo na vida.
Nessa época você já gostava de jogar futebol? Eu sempre digo que desde pequena eu tive o futebol dentro de mim. Ninguém me incentivou. Meu pai nunca jogou bola, não sabe fazer três embaixadinhas. Mas eu tinha dois tios, irmãos do meu pai, que na época participavam dos campeonatos de várzea. Então, sempre que dava, eu queria jogar com eles.
O que seus pais achavam desse gosto pelo esporte? Minha mãe não queria me deixar jogar futebol. Tinha isso da brincadeira de menino, o preconceito, a preocupação com as ofensas que eu ia receber. E ela também não tinha condição financeira para pagar uma escolinha, o dinheiro que ganhava era para colocar comida em casa. Ela até tentou me levar para fazer balé, que era gratuito. Lembro de chegar, olhar as meninas todas ali rodopiando, de vestidinho, arrumadinhas. Enquanto minha mãe conversava com a professora, saí correndo de lá. Quando minha mãe chegou em casa eu gritava que não ia fazer balé, que não queria. Na época, um ex-patrão do meu pai também me levou para fazer um teste para ginástica olímpica e eu passei. Mas, como as aulas eram no Morumbi e eu não tinha ninguém para me levar nem dinheiro para a condução, deu errado.
E como você conseguiu dobrar sua mãe para te colocar em uma escolinha de futebol? Foi um vizinho que me descobriu. Eu jogava bola em um campinho na frente da casa dele e ele falava para a minha mãe que eu tinha talento, pedia para me colocar em uma escolinha. Mas ela sempre dizia que não. Um dia, eu cheguei em casa chorando e contei para ela que os meninos da rua faziam gracinha comigo por jogar futebol, falavam que eu não tinha que estar na rua, que devia estar em casa ajudando a minha mãe a lavar louça e que eu me vestia igual menino, porque ficava de shorts e camiseta. E aí de tanto a minha mãe ver esse preconceito, essas ofensas, ela cedeu.
Como foi a experiência na escolinha? Na escolinha eram só meninos. Eu lá novinha, com 12 anos, no meio de vários garotos. Foi bem difícil. Uma vez eu fui disputar um campeonato com os meninos e, quando entrei em campo, o treinador do outro time nem ligou, até esnobou. Só que quando eu comecei a driblar, fazer gol, ele começou a gritar: “Menina não pode jogar, tem que anular o jogo! Está na regra”. Infelizmente, eu tive que parar de disputar o campeonato dos meninos e ficar de fora por um tempo. Mas foi interessante porque começaram a entender que precisavam montar uma equipe feminina. E foi criada uma equipe, com meninas de idades totalmente diferentes porque não tinha base, mas já era alguma coisa. E aí, ao longo dos anos, fui trocando de equipes e ganhando experiência.
Como você encarava a questão da sexualidade durante a infância e adolescência? Eu sempre fui uma menina muito tímida, muito quieta. E minha família não conversava sobre nada. Eu não vivi aquilo de a mãe sentar, explicar todas as coisas, do sutiã, primeira menstruação, sexo. E aí lá para os 18, 19 anos foi quando esse interesse pelas meninas começou a aflorar mais em mim. E tinham duas questões. Primeiro, eu tinha um preconceito tão grande que nem eu me aceitava. E, além disso, também tinha o medo. Eu pensava: o futebol feminino já é mal visto, se eu falar que eu sou lésbica, aí que eu não vou ter contrato com ninguém nunca na minha vida. E, por conta disso, por muito tempo eu tive essa parte mais retraída ao falar sobre a minha vida, sobre a minha sexualidade.
Como foi a reação da sua família quando você disse que era lésbica? Eu não precisei falar para a minha mãe, acho que essas coisas são perceptíveis. Com o meu pai foi mais difícil, pela época que ele viveu, a forma como as coisas eram. Mas, com o amor e o respeito que a gente tem um pelo outro, ele passou a entender.
E a decisão de falar sobre isso publicamente? Eu comecei a falar publicamente sobre isso quando deu uma virada de chave e as próprias marcas perceberam que as pessoas enxergavam positivamente a diversidade. E, conforme fui falando sobre isso nas mídias sociais, percebi que outras jogadoras começaram a se identificar com a minha história e perder o medo de falar sobre isso também. Porque, como eu falei, eu tinha esse medo. Quando eu fui assinar contrato com a minha marca de material esportivo, eu sentei com eles e a primeira coisa que eu falei era quanto eu estava feliz. Primeiro porque durante muito tempo eu não tive patrocínio de material esportivo – em 2016, 2017, eu cheguei a disputar a final da Champions League com a chuteira que tive que comprar. E, segundo, porque meu maior medo era esse preconceito, de não conseguir fechar com as marcas, de ser mal vista. E hoje eu me sinto muito segura para falar sobre o assunto. Acho que quanto mais os anos se passam menos você tem medo de se expor e mostrar quem você realmente é.
Como foi o processo para chegar na Série A e na Seleção Brasileira? Eu saí da escolinha para a minha primeira equipe profissional – que na verdade não era profissional porque o futebol feminino não era considerado profissional nessa época. Fui para o Juventus da Mooca. Aos 14 anos saí de casa, fui morar no alojamento, estudar lá. E aí em 2001, quando eu tinha 15 anos, a Fifa fez o primeiro mundial da categoria de base feminina. Desse campeonato consegui ir para a Seleção de base e, aos 16, subi para a Seleção adulta. Então eu pulei as etapas, tanto porque não tinham tantas etapas na época quanto porque eles viram que tinha um talento ali que dava para ser lapidado. Foi tudo muito rápido.
Desde o início você sentiu as dificuldades do futebol feminino? Mais ou menos, porque na época nós não sabíamos o que era essencial para praticar o esporte. Por exemplo, eu só fui fazer academia com quase 18 anos, porque eu nem sabia que academia era essencial para a atleta ganhar massa muscular, não se lesionar. Eu não recebia também, jogava sem ganhar nada. Foi com o tempo, quando fui para a Seleção Brasileira, que as coisas mudaram. Mesmo assim, nas primeiras convocações para a seleção eu recebia 20 reais de diária, e achava que estava rica, porque não tinha noção. Não tinha o glamour que os meninos já tinham na época. Para a gente era puro amor, o que viesse era lucro.
Até hoje acontecem situações parecidas? Existem várias situações horríveis. Na pandemia, por exemplo, a CBF [Confederação Brasileira de Futebol] fez um repasse financeiro para ser distribuído entre as atletas, para ser uma ajuda, digamos assim. E teve clube em que o presidente ficou com o dinheiro para ele e largou as meninas sem nada. Como não tinha nenhuma cláusula que punisse a equipe, ficou por isso mesmo, já que não é muito divulgado. Até porque se alguma menina falar ele pune, dá um jeito de mandar embora. É engraçado que, mesmo com pouco patrocínio, a gente tem aqueles [presidentes de clubes e patrocinadores] que realmente amam a modalidade e os que começaram a amar agora, porque de certa forma dá algum recurso financeiro.
O caminho no futebol feminino é muito difícil. Você já pensou em desistir? Acho que o único momento em que eu quase parei foi quando eu tive depressão. De resto, em nenhum momento. Eu comecei dentro do esporte sem nada, sem mídia, sem material esportivo, sem patrocínio, sem dinheiro. Tudo era movido por amor. Mas eu sempre tive esse negócio de acreditar que uma hora ia dar certo. De pensar que uma hora alguém ia me olhar, eu ia conseguir ganhar dinheiro, eu ia conseguir realizar o sonho de comprar a casa dos meus pais. E acho que isso sempre me moveu, assim como moveu outras meninas que não pararam. É por amor mesmo.
Recentemente, a Formiga fez um post no Instagram falando sobre a falta de patrocínio no futebol feminino. Ainda existe uma discrepância muito grande? Eu não posso falar muito sobre o que a fez escrever esse texto porque eu não vivi essa última convocação com as meninas. O que eu posso dizer é que dentro do futebol feminino nós não queremos receber o salário dos homens. A gente sabe o patamar em que está o futebol masculino, em termos de anos, e o atraso da modalidade feminina. Mas um exemplo de problema é quando às vezes bate um patrocinador em tal equipe e oferece 50 mil para patrocinar o futebol feminino. No entanto, o clube quer 200 mil porque tem um rombo feito pelo futebol masculino. Aí o patrocinador vai embora mesmo. Por isso eu acho que precisa ser criada um caixa para o futebol feminino separada do masculino. Por mais que a gente vista a camisa que vem do masculino e isso traz visibilidade, seria o ideal. Hoje eu vejo mais problemas como esse do que a falta de apoio e de incentivo, apesar disso também existir. Temos a Série A, Série B, vai começar a Série C, a maioria das meninas remuneradas. Eu brinco que a gente comia o osso e as meninas de hoje comem um pouquinho de carne já. Porque hoje elas tem campeonato de categoria de base.
A Copa do Mundo de 2019 foi muito importante para a popularização do futebol feminino. Ao que você atribui esse marco? Eu acho que é muito por conta das mídias sociais. Porque nós já tínhamos duas medalhas olímpicas, medalha de Copa do Mundo. A gente já tinha um baita currículo de conquistas, tanto coletivas quanto individuais, que as pessoas não tinham nem noção. Eu, por exemplo, já tinha ido para a Fifa como terceira melhor do mundo três vezes. Com essa divulgação nas mídias sociais e os jogos passando em canal aberto – que também foi fruto de muita cobrança – deu aquele boom. A maneira como a gente jogou, como a gente impôs, acho que isso também atraiu o brasileiro. As pessoas viram que não eram só meninas jogando futebol, existia vontade, prazer, talento.
O que você achou de mais legal na experiência da Copa? A gente fez a mulherada, que sempre acompanhou os jogos do masculino, ir para o bar, se reunir no fim de semana para assistir nossos jogos. E isso é muito legal, porque a gente sabe que tem muita mulher que consome o futebol e que às vezes acaba não indo para o estádio porque é assediada, sai uma briga. Com os nossos jogos elas conseguiram enxergar que elas podem ir, podem torcer sem ninguém ficar enchendo o saco. Além disso, muitos pais que tinham preconceito com o futebol feminino acompanharam a Copa do Mundo de 2019 e pensaram: "Nossa, poderia ser minha filha ali", e começaram a incentivar mais as meninas.
Como ocorreu a decisão de não competir na Olimpíada de Tóquio? Foi difícil, porque não foi uma decisão minha. Geralmente, é pedido para cada atleta alguns dados, algumas metas que ele precisa alcançar. E eu alcancei todos, inclusive com números até melhores do que os da Copa do Mundo, que eu fui convocada. Então me deixou bastante chateada a maneira como foi, porque eu sabia que tinha condições de compor o grupo, tinha experiência pra isso. Mesmo que eu ficasse no banco, acho que faria diferença. Porque quando você tem um histórico dentro do esporte, você traz uma preocupação maior para as equipes com as quais você está competindo. Mas, infelizmente, as coisas fugiram dos meus planos. Teve até gente que disse que eu estava fora porque eu fui mãe, mas não foi nada disso.
Existe algo ou alguém em especial que você acredita que tenha ajudado nessa decisão? Nem tudo tem como ser falado, porque se você expõe, as pessoas acham que você está com dor de cotovelo porque não foi convocada e por isso está falando mal. Então prefiro segurar, deixar as coisas se encaminharem e, no momento em que eu tiver que explicar, isso vai ser explicado. Mas as meninas que foram para a Olimpíada são ótimas e super competentes.
Como foi a experiência de ser comentarista do SporTV na Olimpíada de Tóquio? E a sensação de ver de fora daqui a seleção feminina ser eliminada nas quartas de final? Eu já tinha participado da transmissão, no jogo entre Holanda e Estados Unidos na final da Copa do Mundo de 2019. Acho que dessa vez eu fui bem melhor porque, conforme os anos foram passando, fui aprendendo a me comunicar melhor. E daqui de fora é bem mais fácil, né? A visão de quem está vendo o jogo é muito diferente de quem está lá dentro. E conhecendo as meninas, sabendo um pouco sobre elas, eu acredito que posso dar algumas opiniões legais. Foi tenso porque eu sei a capacidade que as meninas tinham de ganhar aquele jogo. De ganhar jogando, sem precisar chegar aos pênaltis. Eu tive a mesma sensação de derrota que elas tiveram, porque foram quase 20 anos de seleção vivendo isso com as meninas.
Quais foram os motivos que levaram a seleção a esse resultado? Foi na bola mesmo. Na minha opinião, acho que foram tomadas decisões erradas, atletas com total condições de jogarem bem em suas posições que estavam improvisadas. E aí obviamente você acaba não rendendo muito, porque não dá pra estalar os dedos e falar: "Você é zagueira e agora virou lateral". A gente não é como as europeias, que desde criança são criadas para fazer várias posições. Precisa ter um pouco mais de sensibilidade sobre isso quando estamos falando do Brasil. Ver essa improvisação sabendo da qualidade das meninas me deixou um pouquinho chateada.
Ter uma técnica europeia como a Pia Sundhage interfere, então? Cada treinador tem uma visão diferente e nós temos que respeitar todos os profissionais que trabalham com a gente. Normalmente, o treinador vem com um plano que ele acredita ser ideal e ambos os lados têm que se adaptar. Só que eu senti que não teve tanto essa sensibilidade do outro lado. De entender: "Caramba, não vou improvisar você, a sua qualidade é essa, eu consigo tirar o melhor de você nessa posição". Acho que esse lado de improviso não usou 100% da qualidade das meninas que temos na seleção.
Mesmo no futebol feminino, existe muita presença masculina? O futebol é feminino, mas eu sempre falo que parece que tem mais homens do que mulheres. Isso porque essa área nem era oferecida para nós aqui no Brasil. Quando eu entrei na seleção, no início dos anos 2000, países como Estados Unidos e Alemanha já tinham treinadoras mulheres. E pra gente, naquela época, era até estranho. Nós demoramos a ter essa inclusão, os cursos necessários, o espaço que a mulher precisa. Mas isso vem mudando. Durante os últimos anos, as ex-atletas passaram a se especializar mais. Eu quero ver muito mais mulheres treinadoras, preparadoras, até para que a gente tenha oportunidade de trabalhar na área quando parar de jogar.
Você acredita que o machismo no futebol masculino interfere no futebol feminino? O futebol masculino tem essa coisa do homem que grita, do homem másculo. É praticamente impossível, por exemplo, você ver um atleta no Brasil se assumir homossexual. Ele sabe que qualquer coisa que ele fale sobre o assunto a torcida vai cair matando em cima, vai fazer pressão em cima do clube para demitir. Ele pode ser o atleta 100%, o que chega primeiro, o que vai embora depois de todo mundo, se dedica, não se lesiona, não tem vícios, mas infelizmente ele vai ser punido nesse sentido. No feminino, não. A gente acaba se sentindo mais confortável de falar, de se expor. Acho que até rola um pouco do contrário, de explicar que a menina não precisa jogar bola porque ela é lésbica, nem vai "virar" lésbica por estar ali. Se ela for lésbica, simplesmente ela pode trabalhar em qualquer outra área e vai continuar sendo. A única diferença vai ser que você não deixou sua filha realizar o sonho dela de jogar futebol.
Nessas Olimpíadas, a decisão da ginasta Simone Biles de não participar de algumas provas levantou uma discussão importante sobre a saúde mental dos atletas. O que você achou dessa situação? Quando você é atleta, você já se exige muito para não errar, para acertar o tempo inteiro, para não ter lesões. As pessoas esquecem que a gente carrega esse peso. Quando você está dentro de um clube, de uma seleção, a sua cobrança pessoal se mistura com a expectativa de quem vai te assistir. E aí você não pode errar um passe, não pode fazer um jogo ruim que é como se você não valesse nada. É ir do céu ao inferno. Você pode ser a heroína em um jogo, resolver tudo, e no outro você está em uma fase ruim, que é natural, e pronto: você não sabe jogar bola, não presta, tem que se aposentar, tem que dar a vaga para outra pessoa. Você tem que ter uma baita de uma cabeça para saber lidar com tudo isso, porque os mesmos que falaram que você é incrível são os que te destroem. E é muito doido porque às vezes as pessoas não enxergam que o esporte é uma diversão para elas, mas pra gente é o nosso trabalho. Imagina você estar construindo um prédio e as pessoas gritando: "Cai, seu burro" ou "'Tá tacando cimento no lugar errado". As pessoas não têm essa sensibilidade de se colocar no lugar do outro, pensar que são seres humanos com sentimentos, com problemas pessoais.
Eu acredito que a Simone Biles fez a coisa certa. Porque é automático, se você está com a cabeça ruim, seu corpo vai reagir igual. E aí você corre o risco de ter uma lesão grave, que te afaste por muito mais tempo, ou pode ter uma depressão profunda, porque gera-se uma expectativa muito grande que você tem que conseguir. E ela foi muito corajosa, porque dificilmente você vê um atleta falando que não vai competir porque não está bem mentalmente. Principalmente em uma Olimpíada, que acontece de quatro em quatro anos. Foi muito importante o posicionamento dela.
Como você lida com essa pressão? Geralmente nós temos uma psicóloga no clube, que fica disponível para todas as atletas. Mas eu também tenho muito o apoio da minha família. Eu já tive depressão, já vivi esse sentimento de não querer mais nada da vida, de querer largar o esporte. E eu tive a ajuda das pessoas à minha volta, que me incentivaram, que estiveram junto comigo.
E como você lida com os haters e com os comentários negativos? E já fui muito de responder, de brigar. Mas aí comecei a ver que não adianta, essas pessoas sempre vão existir. Por exemplo, eu não fui para a Olimpíada. O que teve de gente que foi nas minhas redes sociais só para tirar sarro, falar "bem feito"... E eu fiquei pensando que essa pessoa deve estar muito frustrada a ponto de parar para vir tirar sarro de uma coisa que eu não consegui – e que é o meu trabalho, então você está me desrespeitando como pessoa. Então eu aprendi a apagar e bloquear, porque essa pessoa não merece resposta.
Falando um pouco da vida pessoal, como foi a decisão de se casar no meio da pandemia? Eu e a Ana já tínhamos programado nosso casamento, mas a pandemia veio e pegou a gente de surpresa. E aí, com o tempo, a gente percebeu que dava para fazer mesmo com os familiares de longe, mandando foto, fazendo vídeo. Além disso, nós já tínhamos o planejamento para a Ana engravidar, e pra passar por esse processo nós tínhamos que estar casadas, não é possível fazer esse processo solteiras. Então resolvemos fazer nesse momento também para conseguir fazer o processo da inseminação e ter esse gatinho aqui em casa.
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Você sempre teve vontade de ser mãe? Na verdade, eu fui tendo essa vontade com o tempo. E aí eu conheci a Ana e tudo bateu, nossas vontades, nossas ideias. A questão era o período para isso acontecer, porque já existia a vontade de engravidar, mas depois da Copa do Mundo as portas começaram a se abrir para mim, não tinha como. Eu nunca tinha vivido tantas coisas legais e tinha um medo dessas oportunidades irem embora logo. Eu falo que a minha vida mudou depois dos 30, é bizarro. E aí na pandemia a gente teve essa ideia. Como a Ana trabalha em home office, e eu querendo ou não preciso do meu corpo para trabalhar, a gente acabou optando por ela engravidar.
Você consumiu muito conteúdo sobre maternidade antes da chegada do Bento? Não, a gente foi mais na cara e na coragem. Sobre as coisas que a gente tinha uma preocupação, a gente dava uma lida ou perguntava para as nossas mães, mas não teve muita preparação de ler, pesquisar sobre. Óbvio, rolou um receio porque ele era bem pequenininho, então tinha esse medo de dar banho, o jeito de pegar. Mas fomos aprendendo as coisas diariamente, entre a gente e junto com ele.
Como tem sido a experiência de conciliar a maternidade com a vida profissional? Difícil. E a gente ainda pensa: "Se para nós duas já é difícil, imagina para uma mãe solo que não tem as condições financeiras necessárias para a criação de um filho?’. Na internet tem uma galera que romantiza demais a maternidade, e é muito difícil. Difícil porque às vezes você tem que parar tudo para ir dar de mamar, fazer parar de chorar, trocar. Ana estava trabalhando agora, aí ele chorou e ela foi lá dentro para dar de mamar e fazer ele dormir. Eu ainda treino dois períodos, viajo para jogar no fim de semana, é super corrido e cansativo. Eu falo que essas mães que aparecem nas redes sociais saindo do salão todo dia, desculpa, mas não está ficando com o filho. Porque é 24 horas. A Ana acaba acordando muito mais que eu porque, como trabalho com o meu corpo, preciso ter um descanso um pouco maior ou isso reflete dentro do campo. Então ela está muito mais ali do que eu nesse sentido. E realmente, é muito intenso, mas maravilhoso. Você acordar com um banguelinha dando risada sem precisar nem de despertador é muito bom, é muito gostoso.
Você acredita que viver a experiência da maternidade ao lado de uma companheira mulher é diferente? Eu só posso falar com base nos relatos de conhecidas ou de amigas que têm os seus parceiros. Mas é muito doido porque é um processo muito grande que a mulher que engravida passa. A gestação, o puerpério, todos esses momentos pedem delicadeza, sensibilidade, companheirismo. E eu via relatos de homens que traíram na gravidez, no puerpério. Eu só falo para as minhas amigas que querem engravidar que, independente do sexo, é preciso ter uma cumplicidade muito legal com seu parceiro. E eu e a Ana temos muita.
Vocês têm vontade de ter outros filhos? Sim, a gente tem esse plano. Eu quero engravidar, mas mais para frente. Até porque tem todo o lado da retomada da vida da Ana, o Bento super novinho ainda. E tem toda a questão do meu trabalho também, que envolve o corpo. O planejamento é que eu ainda tenho uns quatro anos para jogar bola. E aí mais para frente a gente pensa sim em dar uma irmãzinha ou um irmãozinho para o Bento.
Você tem compartilhado um pouco dessa nova fase da sua vida pessoal nas redes. Você acredita que sua história pode servir de inspiração para outras mulheres? Eu fui percebendo isso conforme as coisas foram acontecendo. Hoje, inclusive, eu tenho hoje mais seguidoras mulheres do que homens. E é bacana, porque a gente gosta de passar um pouquinho do nosso dia a dia, contar nossas histórias. Já recebi relatos de outras meninas falando que a nossa família abriu a cabeça da família dela para que a aceitassem, para que ela pudesse construir uma vida com outra mulher. E eu brinco que a gente abriu as portas, porque hoje uns quatro casais de amigas querem engravidar. A gente recebe muito mais carinho do que ataque por ser um casal de duas mulheres com um filho. Nós estamos mostrando para muita gente que é possível.
Por último, o que você diria para meninas que sonham hoje com uma carreira no futebol? Primeiro, que acreditem nelas mesmas, mais do que qualquer outra pessoa. Acreditar nessa vontade, nesse amor pelo futebol. E para os pais, que incentivem suas filhas, seja dentro do futebol ou em qualquer outro esporte. Se torna muito mais fácil quando você tem os seus pais do seu lado, porque você tem um amparo, uma força, alguém que está caminhando com você. Não vai ser fácil – eu já logo falo que não vai ser fácil. Mas, se você tiver o prazer de jogar, vale a pena.
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