As minas dos coletivos feministas das torcidas de futebol driblam, tocam e chutam pro gol contra o assédio e preconceito dentro e fora dos estádios
Poucos ambientes são tão machistas quanto um estádio de futebol. “É um espaço em que ainda somos vistas com estranhamento, como se não devêssemos estar lá”, afirma Aline Medeiros, 38 anos, torcedora do Atlético Mineiro. Inconformada com a impossibilidade de ver seu time jogar sem ser assediada, ela se uniu a outras mineiras apaixonadas por futebol para organizar um encontro regional do movimento Mulheres de Arquibancada (MDA), que combate o machismo nos estádios por meio de diferentes ações.
Uma delas, idealizada pela ex-deputada estadual Manuela D’Avila, ganhou o nome de machistrômetro. Trata-se de uma cartilha informativa distribuída nos estádios para ajudar a identificar os diferentes tipos (e graus) de violência contra a mulher. As situações descritas são bem comuns e vão desde questionar se a mulher entende mesmo de futebol até aproveitar o momento de comemorar um gol para passar a mão nas minas.
Além do MDA, outros movimentos de torcedoras de 15 clubes de norte a sul do Brasil já estão unidos em uma campanha nas redes sociais. “A ideia é integrar as torcedoras e promover ações conjuntas focadas nas mulheres que gostam de futebol. Juntas conseguimos ter mais voz", acredita Julia Moreira, integrante do grupo Vascaínas contra o Assédio.
O primeiro passo para combater o machismo nos estádios é aumentar o número de mulheres nas arquibancadas e todos os movimentos têm iniciativas nesse sentido. As mais comuns são marcar pontos de encontro e organizar caronas e vans para ir ao jogo em grupo e conversar com pais que proíbem as filhas de ir ao estádio, como contou Rafaela Inácio, 23, do movimento Santa Cruz Coralinas, organizado por torcedoras do time pernambucano Santa Cruz Futebol Clube.
Outra iniciativa é criar encontros fora desse ambiente, como faz o VerDonnas, ligado ao Palmeiras. "Nos reunimos uma vez por mês para falar de futebol e, como nem todas podem pagar o preço dos ingressos, organizamos de ver alguns jogos em um bar próximo ao Allianz", explica Renata Paciência, 22.
Viajar em caravanas para jogos fora de casa é das ações mais complexas. Nessas situações, os risco são maiores e a quantidade limitada de ingressos faz com que os homens sejam ainda menos receptivos com as interessadas na partida. A questão é tão clara que muitas vezes nem o policiamento está preparado para a presença feminina. “Já aconteceu de sermos paradas na estrada e não tinha policial feminina. Ninguém me revista, né”, disse a vascaína Júlia, repetindo história vivida por quase todas as torcedoras ouvidas pela Tpm.
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Cobrar os clubes também é necessário e tem ajudado a combater situações bastante inconvenientes, como é o caso de torcedores que insistem em usar o banheiro feminino dos estádios. “Uma vez um cara não gostou que uma de nós reclamou da presença dele e mostrou o 'instrumento' para a menina”, diz Rafaela. Agora o local passou a ser vigiado por um segurança, mas as condições seguem desfavoráveis para as mulheres. "Papel higiênico é coisa rara, pra não dizer inexistente. Temos que trazer de casa", conta.
No quesito preparação para acolher as meninas no estádio, o exemplo mais bem sucedido é o da Bahia. A Ronda Maria da Penha tem sido deslocada para os jogos justamente para evitar crimes contra a mulher, um avanço único no país. “A gente sentia falta dessa proteção, desse olhar voltado para nós, mulheres”, disse Júlia Fraga, 19, da Tricoloucas, torcedoras do Esporte Clube Bahia. Além da proteção com as companheiras da torcida, essa rede envolve todas as mulheres do espaço: gandulas, cheerleaders, bandeirinhas, jornalistas, torcida adversária e jogadoras (em partidas da modalidade feminina).
Para a pesquisadora Leda Costa, o estádio tem fama de ser um lugar onde se pode tudo.“É inseguro para a mulher. Se ela não estiver com um namorado não será legitimada e será vista como ‘Maria chuteira’. Além disso, é um espaço cheio de códigos e regras que na verdade ensinam as pessoas a não lidar com a diferença, exclui e abre espaço para a LGTBfobia”, analisa a pesquisadora.
No último Corinthians x São Paulo, o Movimento Toda Poderosa Corinthiana (MTPC) publicou nas redes sociais um pedido para as meninas não gritem “bicha” no jogo contra o rival. A postagem teve o aval do Coletivo Democracia Corinthiana, que não é feminino. No jogo, os gritos ainda foram ouvidos. O processo é lento.
As infiltradas
Alguns grupos feministas têm conquistado espaço dentro dos clubes. No Internacional, por exemplo, Najla Diniz, 42, se tornou conselheira. Hoje ela é a única mulher na direção do clube. Seu presença ali fez com que o Inter adaptasse sua linguagem. Agora, em vez de falar em “torcedor” colorado, eles dizem “torcida colorado”. Além disso, instituíram a campanha do Cartão Vermelho Contra o Machismo, em parceria com a ONU Mulheres.
“Minha grande pauta sempre foi a da inclusão. Seja social, de gênero ou por incapacidades físicas. Pude fazer do conselho deliberativo palco para essas demandas. Já me mandaram lavar a louça, já me disseram que a mulher não participa porque não quer, já me afirmaram que essas coisas de gênero são perda de tempo”, disse, indignada.
O movimento feminista é forte também no Corinthians. Entre as vitórias das minas no Timão estão a criação da ouvidoria exclusiva para as mulheres no estádio de Itaquera e a exigência da produção de um modelo feminino de camisa. Cobram ainda a implantação de trocadores de bebês nos banheiros masculinos e a presença de uma Delegacia da Mulher no estádio.
No início deste ano, elas foram decisivas na ação que levou ao afastamento do diretor de marketing do Corinthians, Luis Paulo Rosenberg. O cartola comparou o Corinthians a uma esposa perfeita, que definiu como alguém que tem dotes culinários e MBA no exterior.
No post em que se posicionou, o MTPC disse: “Ao tratar a mulher como esposa perfeita a ser aceita pelo marido pelos seus dotes, o diretor coloca a mulher na posição de objeto avaliado pelo interesse masculino. Mais uma vez, somos tratadas de acordo com nossas qualidades, atendendo ou não às expectativas do homem, como um adorno ao casamento e à satisfação masculina”.
Pressionado, Rosenberg pediu demissão. O posicionamento das corintianas já vetou também a contratação de um jogador jovem, que havia sido acusado de agredir a namorada, movimento semelhante ao feito pelo Comando Feminino do Atlético-MG, que exigiu a saída do jogador Robinho, condenado por estupro. Os avanços estão sendo conquistados na raça pelas mulheres e cada passo é comemorado como um gol contra o assédio. Vai que é tua! Ou melhor, nossa.
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