Capítulo 5: Por que homens não sentavam para fazer xixi?
Em ”Otávio e Marina, uma história de desamor na quarentena”, algumas coisas pareciam estar chacoalhadas a ponto de talvez nunca mais voltarem ao lugar. Acompanhe na Tpm
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Quarentena, dia 8
Otávio estava deitado no sofá-cama com uma mão dentro da cueca mexendo no pau mole e a outra atrás da cabeça olhando o teto do quarto. O sol tinha acabado de baixar a linha do horizonte e ele sentia um tédio que parecia inédito em sua vida. Faltavam dois dias para sair da super-quarentena a qual Marina o havia submetido e ele não via a hora de poder circular livremente pelo apartamento que gostava de chamar de seu. Morava nele há sete anos e sem dúvida nenhuma era mais apegado à casa do que Marina.
Estava bastante feliz com a forma como havia se comportado nesses oito dias. Conseguiu se manter no quarto por horas a fio, saiu apenas quando sentiu fome, e não tinha sentido muita fome, ou quando precisava ir ao banheiro – que, aliás, estava limpíssimo porque ele havia se apegado a sentar para fazer xixi. Por que mesmo homens não sentavam para fazer xixi? Se todos sentassem suas bundas na privada os banheiros públicos seriam mais limpos. Mas homens faziam de pé e mulheres faziam se agachando, então não havia como manter os banheiros limpos se a cada mijada a privada voltaria a ficar suja.
Otávio não sabia exatamente o que estava se transformando nele, mas algumas coisas pareciam estar chacoalhadas a ponto de talvez nunca mais voltarem ao lugar. Estava sem sintomas e também sem medo de pegar a doença. Deveria ter medo? Quando abria o computador e passava alguns minutos vendo o noticiário, as imagens pareciam de um apocalipse. Médicos vestidos como o protagonista de Breaking Bad, manchetes com o número de mortos em letras enormes e negritadas… E ainda assim ele estava calmo.
Teria se curado da hipocondria ou apenas alcançado um nível irrecuperável de alienação? Para onde iria quando tudo passasse? Viajaria? Alugaria um canto no meio do mato para passar um tempo? Pensar que ficaria longe de Marina causava nele uma mistura de alívio e receio. Alívio porque estaria livre do controle dela e receio porque estaria aprisionado a um mundo onde não havia o controle dela. Escutou a voz de Marina na sala falando com alguém pelo telefone. Ela estava insegura e triste. Sabia disso porque quando Marina ficava vulnerável ela se tornava mais agressiva. No que tanto ela trabalhava se o mundo estava parado? Que tipo de cliente estaria fazendo campanha publicitária na pandemia? Ele não conseguia imaginar o que poderia estar deixando Marina tão ocupada. E, mais estranho ainda, insegura.
Marina nunca teve medo de nada, era ela que matava as baratas na eventualidade de uma aparecer, era ela que cuidava dele quando ele ficava doente e dizia que estava com medo de morrer. Ela raramente ficava doente, raramente dizia estar triste, parecia tão inabalável. Por que ele não a escutava falar com uma amiga, com os pais? O que estaria acontecendo com Marina? Ele sabia que quando ela não estava bem tendia a se fechar nela mesma, a não deixar ninguém acessá-la, nem mesmo ele. Foi nesse exato instante que ele escutou Marina tossir. Uma tosse seca e contínua. Pegou o celular e mandou uma mensagem para ela: “Tudo bem com você?”. Nenhuma resposta chegou, mas a tosse de repente parou.
Marina estava exausta. Dormia mal, dormia pouco e trabalhava muito. A agência, embora pequena, estava ativa, talvez mais do que antes da pandemia. Alguns clientes acharam o momento adequado para ajustar as mensagens sobre o novo mundo que dava as caras, manter o diálogo aberto com o consumidor, mostrar que eram “humanos”, e Marina não queria reclamar do trabalho porque sabia que, ao contrário dela, muita gente estava sem renda, sem produzir, sem perspectiva.
Joana tinha criado a agência há quinze anos para trabalhar com negócios cujos donos fossem negros como ela e Marina era das poucas que não eram negras. Joana e ela eram amigas de adolescência e Marina não iria falhar agora e deixar Joana na mão. Precisava aguentar, precisava ser forte e, principalmente, não ficar doente. Não sabia quantas horas passava em reuniões, nem quantas horas gastava nas redes sociais lendo e vendo o que podia sobre o vírus e sobre como ele estava impactando o mundo.
Estava movida pela convicção que o micro-gerenciamento que fazia da crise no ritmo do minuto a minuto era importante para o futuro da humanidade. Marina era considerada pelas amigas uma das pessoas melhor informadas do mundo. Como falava três línguas, lia os mais variados jornais, e era para ela que amigas ligavam quando tinham dúvida sobre assuntos da atualidade, mas era para Otávio que telefonavam quando queriam divagar e delirar sobre a vida. Eram quase seis da tarde quando Marina, ainda em reunião, deu um gole na garrafa d’água que deixava ao lado do computador e, sem prestar atenção no que fazia, engasgou magnificamente a ponto de achar que teria que abrir a porta do quarto de Otávio e pedir ajuda. Quando finalmente conseguiu voltar a respirar notou que ele havia mandado uma mensagem: “Tá tudo bem com você?”. Decidiu não responder. Que ele achasse que ela estava morta.
Esta história continua. Acompanhe os próximos capítulos na Tpm.
Créditos
Imagem principal: Manhã Ortiz