Caco Galhardo escreve sobre Maria Casadevall

por Caco Galhardo
Tpm #164

’Ela é um acorde de shamisen, uma gueixa enigmática e a personagem de um romance japonês’

Maria Casadevall veste peças que servem para meninos e meninas e vai na contramão de tudo que se espera de uma mulher. Sim, Maria é tudo – menos o óbvio 

Origem
Shamisen é o nome daquele antigo instrumento musical japonês, parecido com o baixo do Paul McCartney, só que bem mais fininho e comprido, uma caixinha de madeira, um pedaço de pau e três cordas. Lembrou? Os melhores tocadores de shamisen no Japão do século 19 vestiam seus exuberantes quimonos, sentavam no tatame e começavam aquele ding-ling-dong até a galera entrar em transe. Em uma dessas noites, em Okinawa, a mítica ilha da Casa de Chá do Luar de Agosto, o melhor shamiseneiro japonês do pedaço estava inspiradíssimo, o quimono era o mais belo e colorido de que já se teve notícia, cravejado de pedras raras e diamantes. O velho fechou os olhos, tocou um acorde impressionante e desse acorde nasceu a Maria Casadevall – há 28 anos –, já pulando e dançando. Nasceu voando. Saltitando pelas nuvens, piruetando no tempo e no espaço, até pousar no centro de São Paulo.

Centro
Conexão direta com a praça Roosevelt. Isso mesmo, aquele antrinho de malucos, artistas, travestis, bares e teatros alternativos. Vampiragem forte. Mas, apesar da vasta noite, os malucos se alimentam mesmo é da luz que vem dos palcos empoeirados. E quanta luz tem Maria. Foi ali, no teatrinho dos Satyros, que a meteórica carreira de atriz começou pra valer. Caiu nas mãos do diretor e dramaturgo Rodolfo García Vázquez, especialista em pinçar os talentos que brotam espontaneamente em meio à riquíssima fauna da praça. Botou os olhos na gueixa doidinha e a recrutou no ato. Abre parêntese, se Maria não tivesse nascido de um acorde de shamisen, nasceria algumas décadas depois, no romance O país das neves, de Yasunari Kawabata, no lugar da misteriosa e maluquete gueixa Komako. Recomendo muito a leitura. Voltando, bom… rolaram algumas peças, veio a Globo – primeiro a série Lara com Z (2011) e logo a novela Amor à vida (2013) e depois I love Paraisópolis (2015) – e deste ponto em diante todo mundo já sabe. Maria é uma mulher de mil facetas e uma das mais interessantes é a sua relação visceral com o centro de São Paulo. Ela ama o centro, mora lá, não arreda o pé. Assim como os malucos se alimentam de sua luz, ela também se alimenta dos malucos, do visual acachapante, do incomum, dos restos das baladas esquecidos pelas ruas de manhã, quando ela gosta de sair pra um rolê.

O gesto
Conheci Maria há dois anos, ela foi convidada pra fazer Lili, a ex, minha série que está na segunda temporada no GNT. Ela chegou com aqueles óculos enormes, cabelo meio preso, original em tudo, olhinhos curiosos e aquele jeitinho de menina espevitada, mas séria, compenetrada. Resumindo, linda. Em cinco minutos o papel já era seu. Ela simplesmente veio com a personagem pronta. Luis Pinheiro, herr diretor, disse que pensava muito em Gena Rowlands no filme Uma mulher sob influência, de John Cassavetes. Na hora, Maria reproduziu um gesto da Gena no filme. Olhei pra cara do Luis e a gente só ria. Tínhamos a atriz. O gesto está lá, nas duas temporadas.

Produzir uma série de 13 episódios dá um trabalho da porra. Um ano escrevendo em salas de roteiristas e três meses com uma equipe numerosa, enfiados em um estúdio. A história é de uma mulher que se muda para o apê vizinho ao do ex-marido – interpretado por Felipe Rocha – e inverte o olho mágico dele. A gente tinha um desafio: fazer com que essa ex-mulher não fosse uma mala sem alça e que as pessoas gostassem dela. A Maria que se virasse! No set, ela é pura concentração, passa a maior parte do tempo no camarim, fechada em seu mundo, lê muito. Figurino, cabelo, maquiagem e lá vem ela fazer a cena. Em todas, a entrega sai melhor que a encomenda. Ela faz a comédia acontecer, faz rir e coloca uma energia no chamado subtexto, naquilo que não está aparente, que é só dela. Fora o carisma. Termina e volta pro camarim, sob os olhares admirados dos técnicos – são todos doidos por ela. No final da diária, ela está exaurida, vou me despedir e ela me chama de “meu maluco favorito”. Gosto de chamá-la de “força da natureza”.

Gueixa enigmática
Na primeira temporada, Maria fez uma cena muito intensa com Felipe. O diretor rodou uns quatro takes, até sentenciar o famoso “valeu!”. A equipe técnica então entra em modo formiguinha, desmontando o set e preparando toda a parafernália para a nova sequência. No vaivém dos técnicos, Sofia, a assistente de direção, conferindo os pormenores do set, abriu a porta do elevador falso que compõe o cenário, e deu de cara com a Maria, sentada no chão chorando. O que deu errado? Maria, sussurrando, tratou de acalmá-la: “Não esquenta, não é nada, é só parte do meu processo, tá tudo bem”. Sofia fechou a porta, deixou-a lá e isolou a área, aliviada. Passou um tempinho e Maria, recomposta, voltou pro seu mundo no camarim, sem que ninguém notasse. Gueixas doidinhas, nascidas de acordes de shamisen, também sofrem muito e por razões que a gente nunca vai entender direito.

*Caco Galhardo é cartunista e roteirista. Autor de três peças teatrais, escreveu a série Lili, a ex (GNT)

Créditos

Imagem principal: Mariana Maltoni

Estilo: Marcio Banfi

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