Pelas margens do São Francisco
A viagem da designer de acessórios Paula Ferber pelo nordeste em busca dos mestres artesãos e de inspiração para suas coleções
Há mais de dez anos faço essa viagem, mas em fevereiro passado ela coincidiu com a pesquisa para a minha próxima coleção de verão, inspirado no trabalho em couro do sertanejo, e a preparação para o lançamento da minha linha casa.
Chegando em Aracaju (Sergipe), saímos em direção à Ilha do Ferro, povoado do município de Pão de Açúcar, em Alagoas, em pleno sertão. Pela estrada, acompanhamos as diversas nuances do bioma local, da Zona da Mata à caatinga, chegando à cidade ribeirinha, onde o sertão é mais próspero.
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Tenho uma casa na ilha, comprada há 14 anos, com uma vista linda para o rio São Francisco, cercado por sua cultura e seu silêncio. Anos atrás, comecei a me relacionar com os artistas locais, que eram poucos: o Seu Fernando, o Aberaldo e a Cooperativa de Bordado de Boa Noite. Inspirados por eles, outros artistas foram chegando e a cidade foi virando uma grande galeria a céu aberto.
Seu Fernando teve um papel fundamental na ilha. Foi seu primeiro grande artista e fez a região se tornar o que é hoje. Sua filha, Rejiania, Presidente da Associação das Bordadeiras, é outra preciosidade local. Ela vem mantendo com todas as outras bordadeiras da cidade a famosa técnica do Boa Noite.
Selaria
Seguindo pelas margens do São Francisco, subindo em direção ao sertão de Pernambuco, mergulhamos no mundo da selaria, passando por Garanhuns e chegando a Cachoeirinha. A cidade é voltada para o trabalho de artefatos de couro e ferragens para selaria.
Toda quinta-feira, Cachoeirinha se mobiliza para receber visitantes da região, de outros estados e até de fora do país, com uma feira de artigos de couro e ferragens. Fabricantes, artesãos e lojistas oferecem o que há de melhor no trabalho artesanal em couro, com uma identidade muito particular nas misturas de técnicas e cores. Lá, encontramos o ambiente perfeito para a pesquisa do tema da próxima coleção: a selaria brasileira.
Há uma moda singular na selaria, nos chapéus, nas botas e nos costumes dos vaqueiros do sertão. A maneira com que o sertanejo se ornamenta e usa o couro conta a sua história e sua maneira de viver.
Beto Seleiro, de Pão de Açúcar, é um grande mestre da selaria, que estendeu seu trabalho e sua técnica para peças de mobiliário, numa pequena loja em uma das travessas da principal avenida da cidade. Ele cria selas, coletes, chapéus, cadeiras, mesas e baús de couro. Foi nosso guia na viagem a Cachoeirinha, apresentando carinhosamente seus fornecedores e amigos.
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Já Cicero Alves dos Santos, conhecido como Véio, vive nos arredores de Nossa Senhora da Glória, uma importante cidade do sertão de Sergipe, com aproximadamente 50 mil habitantes. É um sertanejo incomum, que fez da preservação da memória de sua gente a razão de sua existência — e memória não é nostalgia. Este ano ganhou uma retrospectiva de sua obra no Itaú Cultural (São Paulo).
Na estrada para Ilha do Ferro, avista-se o sítio Estrelo, onde as obras de José Petrônio Farias dos Anjos estão enfileiradas no caminho para a entrada. É um mundo imaginário de criaturas de bocas enormes e olhos arregalados. Ele aprendeu o ofício com o já falecido Mestre Fernando Rodrigues, artesão da ilha, famoso por suas cadeiras de troncos retorcidos e importante incentivador da arte com a madeira. Em 2014, Petrônio foi eleito artesão do ano pelo Museu Théo Brandão de Antropologia e Folclore, em Maceió.
Seu filho Yang dedica-se também à escultura. Busca uma caixa para nos mostrar seus trabalhos e de lá saem bonecos fininhos, quase bailarinos, com as mãos para cima, uma das pernas ao alto, as cabeças redondas, os olhos bem abertos e as bocas miúdas. “Esses bonecos são minha assinatura. Nas oficinas com madeira, ensino como fazer quase tudo, mas não como criar esses bonecos, eles são a minha arte”, conta.
Em um povoado às margens do rio São Francisco está Aberaldo Santos Costa Lima. Filho de um fabricante de canoas, começou a trabalhar com a madeira desde muito cedo, mas não seguiu a carreira do pai. Foi com a arte figurativa que Aberaldo se tornou um escultor prestigiado. Cria bonecos, barcos, cobras e pássaros em mulungu e outras madeiras de textura mole. Sua marca registrada é a figura humana com corpo deformado e uma expressividade no rosto.
André ou simplesmente Dedé, da Ilha do Ferro, é aberto e curioso como poucos sertanejos, mas esperto, hábil e elegante como a maioria deles. Dedica-se a receber e apresentar o sertão aos turistas — muitas vezes despreparados para toda sua aventura — e possui grande habilidade como artesão. Provavelmente é o único que faz bancos, mesas e prateleiras com sustentação de galhos da árvore Pereira, acrescidos de partes de canoas recicladas do rio São Francisco. São madeiras que enfrentaram o tempo e contam a história do rio.
De Maceió, Maria Amélia Vieira e Dalton Costa são artistas contemporâneos. Maria cria telas, esculturas e cerâmicas inspirados em conchas e ouriços do mar. Já Dalton viaja em solo firme: em suas obras utiliza ex-votos, que são esculturas de madeira devotas a divindades como forma de agradecimento por um milagre. O casal fundou em 1985 a galeria Karandash, na capital alagoana, que abriga um acervo de mais de 2 mil peças de arte popular.
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Uma das séries preferidas que tenho em minha coleção é Habitando o Outro, uma fruteira em que a madeira e o barro se abraçam, criada à beira do rio São Francisco pela mesma Maria Amélia e o marceneiro Petrônio Farias. Ele trouxe a madeira e ela, a cerâmica.
Depois da viagem, peças de Petrônio, Yang, entre outros artistas, estão à venda na minha loja. Objetos feitos com tressê, macramê, crochê, bordado, que contam com o trabalho de artesãos de Muzambinho (MG), estarão na minha linha casa, que será lançada em agosto. País adentro, mãos habilidosas produzem trabalhos artesanais que alcançam o estágio máximo da sofisticação: a simplicidade.
Vai lá: paulaferber.com
Créditos
Imagem principal: Paula Ferber